O horário eleitoral gratuito — e a Voz do Brasil entrando de gaiata

As respostas à pergunta do último post me surpreenderam.

Esperava que mais gente fosse contra o horário eleitoral gratuito. Esperava até que alguém dissesse “ah, mas você é a favor porque vive disso”, como se o fato de ser gratuito ou não fizesse alguma diferença.

A posição, na minha opinião, mais equivocada é a do André Kenji. Ao dizer que “Se o horário político fosse pago, os políticos teriam que pagar ou arranjar alguém disposto a fazê-lo, e não teriamos tanta gente brincando de ser candidato.” Ele pode não saber, mas é justamente a necessidade de ganhar eleições falando o que um amigo chama de “a linguagem do Maranhão” que gera o caixa 2 e outros pequenos problemas políticos brasileiros. É assim que se assumem compromissos. Algo qeu o Roberto Jefferson explica com uma simplicidade que chega a ser cândida.

O horário eleitoral gratuito é uma das maiores garantias da sociedade de que vai ter acesso à informação política. De que não são apenas os partidos ricos que vão conseguir fazer propaganda.

Em um Brasil em que os partidos comprassem o seu horário na TV, o que aconteceria seria simples: apenas os partidos mais ricos conseguiriam divulgar decentemente suas propostas. O resultado seria o fim da alternância no poder — idéia defendida com certo desespero eleitoral pelo PSDB nos últimos meses. Seríamos parecidos com os Estados Unidos, aquele lugar onde um partido só assume dois nomes diferentes e se mantém eternamente no poder.

Dando alguns exemplos: com a força cada vez maior da televisão, se não houvesse horário eleitoral é bem provável que hoje, 21 anos depois do fim da ditadura, o cenário político brasileiro ainda se dividisse entre PMDB e PDS. Talvez existisse já o PFL, que afinal apenas respondia a uma exigência histórica, mas dificilmente o PSDB sairia do PMDB. E, como lembrou o Eduardo, o PT dificilmente teria crescido.

O modo como os partidos utilizam seu horário são outros quinhentos. Pode-se ter desde programas brilhantes como os de Lula, na última eleição, a aberrações anacrônicas como os do P-SOL ou PSTU — sem falar no Eymael. Mas o nome disso é democracia. Se o PSTU insiste no 3×4 agressivo defendendo propostas anacrônicas, problema dele. O que cabe ao Estado não é definir o que os partidos — que representam necessariamente algum segmento social — devem falar, mas sim que tenham o direito de falar.

Graças ao horário eleitoral gratuito, as pessoas vêm aprendendo a votar. Podem comparar propostas, e aos poucos vêm aprendendo a separar o joio do trigo. Têm acesso de delírios protofascistas com os de Enéias a propostas concretas e razoáveis como as do PT e PSDB. E sim, também podem bobagens como as ditas por Clodovil. Mas é justamente essa a força do horário.

***

Outra surpresa foi o fato de tanta gente lembrar da Voz do Brasil, provavelmente por causa de sua compulsoriedade similar.

E quanto a essa, eu já não tenho tanta certeza.

Até há alguns anos, eu seria o defensor mais ferrenho do radiojornal. Em muitas regiões do país, era o único informativo a que as pessoas tinham acesso. E apesar da imagem chapa branca, é um excelente programa, que vale a pena ser ouvido.

O problema é que as antenas parabólicas mudaram um pouco esse panorama. Mais e mais gente tem acesso a outras fontes de informação. A Voz do Brasil ainda é necessária, mas muito menos do que há 15 anos.

Curiosamente, para muitas rádios no interior a Voz do Brasil é, sim, algo desejável — é o único programa jornalístico que têm condições de transmitir. Na verdade, os grandes defensores da sua extinção são as grandes rádios das capitais, que podem produzir seus próprios programas jornalísticos, e querem uma hora a mais em sua programação para faturar com publicidade. É fantástico que uma rádio seja uma concessão pública, mas que seus concessionários não queiram dar a contrapartida social necessária.

Talvez fosse viável apostar na opcionalidade da Voz do Brasil. Talvez ela deva, ainda, ser obrigatória.

Mas, independente disso, posso contar uma coisa por experiência própria: a Voz do Brasil é excelente para se ouvir em carro alugado sem tocador de CD, se você precisa dirigir entre as sete e as oito da noite.

Cangaço

Há algum tempo o Erik contestou este post nos seguintes termos:

Ainda hoje, nos sítios mais isolados do Nordeste, é comum encontrar pessoas que já se debateram com o lobisomem. Até já vi pessoas com cicatrizes das marcas das unhas do bicho. Nem por isso você vai acreditar nessas histórias. O imaginário popular é assim. Ainda hoje, no Amazonas, existem mulheres que dizem terem sido engravidas pelo boto.

Faltou um pouco mais de pesquisa ou, pelos menos, seriedade para falar de um problema tão complexo como foi o cangaço, muito mais complexo que a violência nos morros do Rio, hoje em dia.

Já em 1955, Ariano Suassuna, ao escrever o Auto da Compadecida, classificava o cangaceiro como “mero instrumento da cólera divina”, provando que a “romanização” do cangaço já vinha desde muito antes da invenção do Comando Vermelho. E não só Suassuna, como também os autores Jorge Amado, José Lins do Rêgo e outros já tinham a mesma idéia.

O temperamento extremante violento de alguns cangaceiros tem sim muito a ver com a estrutura social da época baseada no latifúndio. Desprezar isso é, no mínimo, desconhecer o alto grau de exclusão social gerado pelo feudalismo nacional.

O cangaço durou cerca de 200 anos, nele participaram milhares de pessoas e só acabou definitivamente com a anistia em 1495. Tratar todo esse complexo movimento histórico baseado apenas na figura, mais mítica do que real, de Lampião é um simplismo que beira a ignorância, você não acha?

O Erik começa mal. Dizer que o problema do cangaço era mais complexo que o moderno crime organizado do Rio de Janeiro é uma sandice. Enquanto o cangaço era composto basicamente de nômades, nunca passando de bandos errantes que sobreviviam fugindo da polícia, e nunca chegando a ameaçar a estrutura social da região, e que acabou não exatamente graças à “anistia de 1945”, mas ao fortalecimento do Estado republicano, o problema dos morros do Rio, com Estados paralelos virtuais é quase insolúvel. Não há comparação. O cangaço nunca mobilizou tanta gente como o tráfico, nem criou redes sociais tão complexas. Essa afirmação talvez seja reflexo de uma paixão excessiva pelo tema, sei lá.

Na minha opinião, esse é apenas um outro lado desse processo de mitificação do cangaço.

Ao contrário do que diz o Erik, não se desprezou, aqui, a estrutura fundiária como fator de alimentação do cangaço. Pelo contrário. Basta ler o post novamente. Mas justificar o que ele chama de “movimento” (traficantes também chamam sua atividade de “movimento”, a propósito) apenas pelo latifúndio é bobagem. Outras regiões com problemas fundiários mais graves que o sertão, como toda a área abrangida pela cana de açúcar — com a desvantagem do escravismo e da monocultura, que não existiam ou eram irrelevantes no sertão — não viveram um processo semelhante.

O cangaço sequer é tão original ou brasileiro. É muito parecido, por exemplo, com “movimentos sociais” ocorridos em toda a América Latina. Em países extremamente semelhantes ao Brasil, como o México, o banditismo corria solto na mesma época. Eventualmente esses movimentos, essencialmente criminosos, poderiam ter algum significado social — como aconteceu com Pancho Villa, para citar um. Normalmente eram apenas bandidos usando da força para garantir vantagens pessoais indevidas, como qualquer bandido comum.

O ranço pseudo-esquerdista e “sociologuês” está principalmente na justificação do cangaço por algumas das condições objetivas que o geraram. Na prática, é só um reflexo dessa atitude romântica e pseudo-esquerdista de uma parte da academia brasileira. Uma romantização de um processo histórico que era, sim, reduzido a criminosos.

E é estranho que o Erik defenda uma complexidade excessiva do cangaço e tente minimizar Lampião como “folclórico”, justamente o cangaceiro que conseguiu maior complexidade em suas relações com o Estado e com a sociedade — vide o Padre Cícero. O que deveria ser uma tentativa de desconstrução do post acaba desconstruindo seus próprios argumentos.

Minimizar, na minha opinião, é isso: “O temperamento extremante violento de alguns cangaceiros tem sim muito a ver com a estrutura social da época baseada no latifúndio .” Isso é óbvio, mas é redutor: todo o cangaço tem relação com o sistema. Ao usar o latifúndio para justificar o temperamento violento de “apenas alguns”, o Erik está reduzindo todo o sistema social a uma questão de temperamento individual, ao mesmo tempo em que diminui a própria ação deletéria do cangaço. E reduz a violência a “alguns”. Isso é desonesto. Ele parte do princípio da romantização, e é esse o problema da sua argumentação. No fim das contas, a questão continua: cangaceiros eram ou não bandidos?

Outra coisa: tratos complexos de movimentos sociais eu deixo para sociólogos, mesmo que eles criem mitos como o do Lampião herói nacional. O que se afirmou aqui é outra coisa: é que apesar de todas essas justificativas — e aí pode-se falar do sistema social como quiser, pode-se buscar as origens e etc. — o fato é que eram bandidos. Como traficantes encastelados no Borel não deixam de ser bandidos porque o capitalismo os oprime, nem meninos de 14 anos deixam de ser bandidos porque o mesmo sistema que os bombardeia com imagens de tênis da Nike os impede de tê-los. É simples assim.

Mantenho a afirmação: Lampião era um coronel sem terras, e cangaceiros não passavam de bandidos. Não há nada de revolucionário ou de transformador social neles. Eram apenas ladrões e assassinos. Em nenhum momento o cangaço propôs uma alteração da ordem das coisas — e nisso está atrás até de movimentos retrógrados e alucinados como o de Canudos. No fim das contas, Lampião e outros jamais poderiam ser comparados a um Zapata, no México. Na verdade, Lampião não chega sequer a ser um Pancho Villa. No máximo, poderia ser um Calvera, o bandido em “Sete Homens e Um Destino”. E olhe lá.