Hulk, quase 30 anos atrás

1979, Barra, Salvador, Bahia.

Nós — e por “nós” eu lembro de mim, de Jailton, filho de Joel, o alfaiate que ainda hoje dá expediente no edifício Monterey e é um dos meus mais antigos amigos, e de Pedrinho; mas talvez houvesse mais gente, talvez Marquinhos Moreno, que deixei com um olho roxo por semanas depois que ignorou meus avisos para me deixar em paz, talvez Marquinhos Louro, menino sempre tranqüilo — nós o chamávamos de Hulk.

Era um menino magrinho. Aparentava ter, como nós, 8, 9 anos, mas talvez tivesse mais, talvez fosse pequeno para a idade.

Eu não sei como começou. Mas acontecia assim: nos fins de tarde ele ia comprar pão na padaria que ficava na rua Presidente Kennedy, pouco depois da mercearia San Remo, de um italiano cujo neto mais tarde estudaria comigo, e do Chico Bar — o mesmo Chico Bar que até hoje tem o mesmo cheiro inconfundível e agradável, trinta anos depois.

Assim que a gente o via se aproximar, nós o cercávamos. E então começava a sua transformação. Ele repetia todo o gestual do Lou Ferrigno no seriado “Hulk”: grunhia, fazia poses de halterofilista, e então eu tentava prendê-lo com os braços. Não era briga, porque não se davam socos ou pontapés, e nem havia raiva. Para nós, pelo menos, era apenas uma brincadeira.

Gosto de pensar que ele realmente acreditava que se transformava no Hulk, pelo menos uma transformação interior, invisível a quem não tinha a sua imaginação. Talvez a repetição do mise en scène lhe despertasse uma força insuspeita. O Hulk tinha uma idade em que algumas coisas são permitidas.

Eu era bastante forte, mas ele sempre conseguia se soltar. E ia para a padaria vitorioso, provavelmente já tendo voltado a ser apenas David Banner. O Hulk sempre nos humilhava, principalmente a mim.

Mas um dia as coisas mudaram. Nós o vimos quando ele já voltava da padaria, carregando um saco de pão e um de leite. Nós o cercamos, como sempre. E nesse dia, não sei por quê, ele entrou em pânico. Nós não íamos bater nele; e ele devia saber disso, porque tudo aquilo já tinha acontecido tantas vezes antes. Mas ele ficou com medo, e correu.

Ele não percebia que isso é algo que não se faz diante de uma pequena matilha de crianças, porque quando sentem o cheiro do sangue elas se tornam piores do que o que são, e o espírito leve da brincadeira dá lugar a uma ferocidade divertida e mal-disfarçada. E nós corremos atrás dele, o cercamos como lobos cercam um alce doente. Desesperado, o Hulk tropeçou, se esborrachou no chão, o saco de leite rolou mas não estourou.

Então ele correu para a rua Oliveira Salazar, uma pequena rua ligando a João Pondé à Oito de Dezembro onde eu já tinha deixado um bom nacos de carne em uma queda memorável durante uma corrida de bicicleta — mas Bal tinha se dado pior, ele estava na minha frente e caiu primeiro, e se eu fiquei com o ombro em carne viva ele teve que tomar quatro pontos no queixo.

Eu não podia deixar passar a chance de saborear a vingança por tantas pequenas humilhações — como era que aquele magrelo raquítico se soltava tão facilmente de mim? — e corri atrás dele, nem um pouco disposto a soltar uma presa que sempre nos escapava. Ele entrou em um prédio, sempre comigo atrás dele, e fiquei sabendo onde ele morava. Subiu as escadas.

E então, no meio do caminho, ele de repente se desesperou completamente. Encostado à parede, ele chorava apavorado. Pedia que, por favor, eu não contasse à sua madrinha que ele estava brigando na rua, porque ela iria bater nele. A brincadeira já tinha ido longe demais.

O Hulk se tornou meu amigo até muito tempo depois, mesmo anos depois de eu me mudar. Da última vez que o vi, em 1983, ele ainda morava lá. Tinha crescido, já não era o mulatinho magrelo de alguns anos antes. Foi ele quem me reconheceu. Eu espero que ele tenha se dado bem na vida, porque era um bom menino. Muitas vezes, depois daquilo, me peguei pensando em como eram as relações dele com a madrinha, qual o seu papel naquela casa. E sempre lembro dele quando vejo alguém falar em escravidão e em sua herança, e lembro como eram complexas as relações de classe e cor na Salvador dos anos 70, e que aqueles americanos não entendem nada do que se passa abaixo do Trópico de Câncer.

2 thoughts on “Hulk, quase 30 anos atrás

  1. Seu texto está tão rico que me inspirou uma série de sensações: recordações de infância (nossas também), nostalgia, remorso, saudades, tristeza, compaixão e principalmente a sensação de que, em se tratando de vida humana, as coisas não parecem ter mudado muito.
    Um abraço
    pat

  2. às vezes, nossas lembranças (e às vezes nossos desejos de futuro) podem ser nossos carrascos, nossas nêmesis.

    não parece ser esse o caso aqui. é uma lembrança tão gostosa quanto o pôr-do-sol de minha infância.

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