Salman Rushdie, 20 anos depois

Tenho a impressão de que esse pessoal mais novo não sabe de verdade quem era o Aiatolá Khomeini.

Na minha época Khomeini estava nos jornais praticamente todos os dias. Era o equivalente ao Osama bin Laden de hoje. Foi o sujeito que derrubou Reza Pahlevi, que humilhou os Estados Unidos na crise diplomática com os reféns na embaixada americana em Teerã (e indiretamente ajudou a eleger Ronald Reagan presidente). Khomeini era o cão chupando manga. Sua imagem era a de um contraponto sombrio e quase diabólico a outro velho: de um lado, o simpático vovô atleta João Paulo II, trazendo um sopro de renovação à imagem da Igreja Católica; do outro, o Khomeini malvado de turbante, pregando a revolução islâmica e levando o Irã, antes tão ocidentalizado, a uma nova era de trevas. Pelo menos era essa a imagem que tínhamos dele.

Mas o mais importante, mesmo, é que ele era o homem que declarou uma fatwa contra Salman Rushdie.

Foi há 20 anos, completados no último sábado. Rushdie tinha acabado de lançar um livro polêmico, The Satanic Verses — que imediatamente ficou conhecido aqui, graças a uma imprensa pouco afeita a pequenos detalhes da língua do bardo, como “Os Versos Satânicos”. O aiatolá Khomeini achou o livro ofensivo à figura de Maomé e decretou uma sentença de morte sobre Rushdie. Essa foi a grande notícia internacional do início de 1989. Não houvesse a queda do muro de Berlim e a implosão dos regimes socialistas no Leste Europeu, no fim daquele ano, e talvez ela tivesse sido a grande notícia de 1989.

(Essa foi a grande sacanagem de Khomeini: lançar a fatwa e morrer logo depois. Fatwas só são revogáveis por quem a decretou. Embora já há mais de 10 anos o governo do Irã venha desencorajando o cumprimento da sentença, em tese Rushdie continua condenado à morte. Felizmente o tempo passa e juras enfraquecem; hoje, e já há algum tempo, o próprio Rushdie vive uma vida bem razoável, embora eu tenha a impressão de que ele ainda acorda com medo à noite.)

Aqueles eram os tempos de antes da Amazon e, no Brasil, nenhuma editora quis lançar o livro. Talvez por dificuldades na negociação dos direitos autorais; talvez por uma bem justificada cautela. A primeira edição brasileira só seria lançada, pela Companhia das Letras e com o título que já tinha sido consagrado pelo uso popular, aí pela metade dos anos 90, quando a comoção já tinha passado e ninguém mais levava a sério a fatwa de Khomeini — ou, melhor dizendo, ninguém mais achava que corria o risco de ir pelos ares pelo crime de editar um livro.

Mas uma editora portuguesa teve a coragem de lançar o livro no meio de todo esse furacão: a Publicações Dom Quixote lançou o livro no final de 1989, inclusive com uma sobrecapa igual à original inglesa. Sabe-se lá por que vias, essa edição chegou ao Brasil. Comprei a minha no final de 1990. Foi quando passei a ver o livro e Rushdie com outros olhos.

O principal problema do livro estava explícito já nas primeiras páginas: ele era realmente ofensivo. Deliberadamente ofensivo. Basicamente transformava um personagem que era indiscutivelmente inspirado em Maomé em um demônio, com pés de bode e tudo. Era ainda mais ofensivo quando lembramos que a edição portuguesa traduzia corretamente o título do livro: “Os Versículos Satânicos”.

Viver costuma ensinar algumas poucas lições realmente importantes. Uma delas é a de respeitar os valores do próximo, ao menos quando ele está próximo, e nunca cutucar onças com varas curtas. Rushdie sabia o que estava fazendo ao escrever aquele livro narrando a queda de Maomé. Não é como se um sujeito do interior da Paraíba xingasse o marido de Kadidja. Aquela era a sua cultura, ele sabia exatamente do que falava, e sabia ao que estava exposto.

É facil falar em liberdade de expressão e em valores ocidentais, quando se está no Ocidente. Essas garantias são tão inquestionáveis para nós que acabamos pensando que são universais. Eu posso xingar Jesus e o máximo que vou receber em troca serão reclamações e ofensas — no máximo uma excomunhão, que hoje em dia não vale absolutamente nada e poderia até ser ostentada como prêmio por alguns. Mas “Os Versículos Satânicos” não está inserido nesse contexto isolado, e por isso ofender deliberadamente um povo que é, digamos, bastante suscetível a palavras ditas por ocidentais é não ter aprendido a lição da vara curta. Talvez não seja exagero achar que o Alex concordaria comigo: quem sabe da ofensa é o ofendido.

Não é que Rushdie merecesse a fatwa, ou que nós, ocidentais, não tivéssemos o dever de defendê-lo. Mas ele sabia com o que estava brincando, e isso deve ser sempre levado em consideração.

Toda a polêmica, toda a indignação, no entanto, deixaram de lado um detalhe importante: ninguém dizia se o livro era bom ou ruim. Até porque a qualidade do livro não parecia importar àquela altura. E é por isso que eu devo muito a “Os Versículos Satânicos” e a Salman Rushdie.

O livro era ruim.

Até uma bela noite do início de 1991, eu tinha um comportamento um tanto calvinista calvinista em relação à leitura. Se tinha comprado um livro, eu deveria chegar até o final, não importava se fosse bom ou ruim. Nem sempre eu conseguia, claro; mas quando era forçado a abandonar um livro, eu o fazia com uma sensação de culpa e de fracasso.

“Os Versículos Satânicos” foi o primeiro livro que joguei de lado com convicção e com a alma leve. Foi com esforço que superei as primeiras 100 páginas; mas o esforço, depois que desisti do livro, valeu a pena. Aquela seria a primeira vez em que eu disse para mim mesmo “Eu não vou ler esta merda”, e não me senti mal por isso — pelo contrário, me senti aliviado, livre de um peso que, a cada página, se tornava cada vez maior.

De vez em quando penso em retomar “Os Versículos Satânicos”. Ele coleciona tantos elogios por aí que de vez em quando me pego admitindo a possibilidade de que eu é que não consegui ver as qualidades do livro, ou que a tradução portuguesa me causou alguma estranheza. Mais de 18 anos depois, talvez eu conseguisse ver o que tanta gente parece ver no livro: as qualidades de um grande escritor. Mas quando penso nisso, é por pouco tempo: porque o que devo a Rushdie é muito maior que isso: é o desenvolvimento de uma capacidade que até então eu não tinha. E isso vale mais que um livro provocador e mal intencionado.

11 thoughts on “Salman Rushdie, 20 anos depois

  1. comprei o livro antes do natal e comecei a ler, acho que passei da página 200, mas também parei em um capítulo qualquer. já li uns cinco outro livros depois, mas não consigo voltar a ler os versículos.

    será alguma síndrome?

  2. sei não, viu? mas que a dilma tá parecendo que vai ser nosso aiatolá, ah, isso tá parecendo sim. o ar autoritário é bem parecido

  3. Com todo o respeito vou discordar de quatro coisas antes concordar com uma quinta:
    1. Dizer que João Paulo II renovou a Igreja Católica porque praticava esportes é o mesmo que dizer que Fernando Collor renovou o estado brasileiro pelo mesmo motivo. João Paulo II era um conservador que fez de tudo para destruir a corrente progressista da Igreja e tinha Ratzinger como seu braço direito.
    2. Bin Laden e Komeini certamente se matariam se tivessem uma chance. Comparar os dois é como essa gente tapada que compara Hugo Chávez com Médici e Fidel Castro quando fala de América Latina.
    3. Um brasileiro dizer que a gente toma a liberdade de expressão por garantido no Ocidente é tragi-cômico por dois motivos. Primeiro, porque na Europa e nos Estados Unidos ninguém usa a palavra ocidente inlcuindo qualquer nação ao sul do Rio Grande, e, em segundo, porque a censura e a intimidação em nome do consenso à força fizeram parte do cotidiano brasileiro, latino-americano e mesmo ocidental como um todo. Se a inquisição parece muito distante também, fiquemos com Hitler, se Hitler já passou há muito tempo na sua opinião, fiquemos com Franco, e se os anos 70 são um passado assim tão distante, fiquemos com Berlusconi mesmo.
    4. Salman Rushdie é indiano, não é “ocidental” e já implicavam com ele desde sempre porque Rushdie sempre foi muito crítico com a lambança que foi a separação do Raj em Paquistão e Índia [e depois Bangladesh] por questões religiosas. Os ingleses são mesmo uns “gênios” [pode por na conta deles o Iraque e a Palestina também].
    5. Você tem razão: o livro é mesmo uma porcaria! Mas o primeiro livro do Rushdie “As Crianças da Meia-Noite”, eu recomendo.

  4. Paulo,

    1 – Você estava vivo em 1980? Se estava deve lembrar que a Igreja Católica apostou como nunca na imagem de João Paulo II — um velho bonito, simpático, esquiador, ator. Queira ou não, sua imagem de dinamismo renovou a imagem da Igreja e possibilitou que ela pudesse desempenhar um papel razoavelmente importante no combate ao comunismo — embora o post, se você prestar atenção, falasse de imagem, não de atuação política. Não é porque uma renovação não é de esquerda que ela deixa de ser renovação. Isso não é uma questão de ponto de vista.

    2 – Não interessa o que Khomeini e Bin Laden fariam. O texto fala de percepção de imagem. Assim como Fidel e Chávez têm imagens semelhantes para muita gente. De qualquer forma, não consta que Fidel e Chávez sejam exatamente antípodas. E suas diferenças não quer dizer que não sejam aliados.

    3 – Paulo, ninguém usa a palavra “Ocidente” no hemisfério ocidental pra se referir aos “cucarachos de acá”? Então quer dizer que eu não faço parte da cultura ocidental? O fato de ninguém ligar muito pra gente historicamente não quer dizer que tenhamos passado de repente a fazer parte da cultura oriental. De qualquer forma, digamos até que não use. O que isso muda? Além disso, acho que sua noção de “liberdade de expressão” é um tanto quanto estreita. O conceito de liberdade de expressão é, sim, tomado por garantido por estas bandas, principalmente quando ele é negado, o que nem sempre acontece no Oriente Médio. Não é à toa que regimes ditatoriais são conhecidos — em qualquer lugar do “Ocidente” — como regimes de exceção.

    4 – O fato de Salman Rushdie ter nascido na Índia não quer dizer que ele não seja ocidental — para todos os efeitos, ele é um escritor inglês e inserido na cultura inglesa, apesar de seus temas. De qualquer forma, é justamente essa proximidade com a cultura oriental que faz o livro ser provocador. Isso está no texto.

  5. Muito bom, Rafael, esse textos me deu o que pensar.

    Mas, se me permite: “por que” você detestou tanto Os Versículos Satânicos? Chato? Incompreensível? Idiota?

    É que Rushdie é um autor que tenho vontade de ler e gostaria de saber, assim informalmente, o que esperar dele.

    Abraço

  6. Rafael,
    Discordo completamente. Khomeini era inicialmente visto pelo Ocidente como um homem santo, um redentor que iria apaziguar o Irã, até dizer a que veio, instalar o fundamentalismo islâmico. Não creio que o Ocidente tivesse qualquer idéia do que viria a acontecer. Os Versos Satânicos é um livro muito bom, e diria mesmo que o Salmon Rushdie tem uma qualidade literária que pouco vejo por aí e não inclui nada nos versos Satânicos que não seja a inserção de alguns versículos que adentraram a recitação e que não foram de inspiraçao divina, mas sim satânica, lembrando que Satanás na tradição muçulmana tem um peso bem menor do que na tradição católica, já que o mal tem que existir como contraponto necessário do bem, cumpre uma função. Em minha opinião, o livro é excelente e merece ser lido sim, embora seja muito intrincado, com vários temas se sobrepondo, várias amostragens culturais, já que o autor navega em várias culturas. O livro é denso mas imperdível.

  7. Eu era criança e ouvia muito falar do Khomeini devido a guerra Irã/Iraque que durou um tempão. Acho que toda a minha infância.

    Esta é uma discussão muito árdua por que envolve culturas, religiões e interesses economicos muito fortes. Concordo com Rafael em relação a João Paulo II no sentido daquilo que foi vendido para a massa, um velhinho inofensivo, simpático, que beijava o chão onde chegava para demonstrar uma humildade que não tinha. Funcionava.

    Estudos sérios sobre a biografia de Karol Wojtyla demonstra uma forte tendência ao conservadorismo e um passado de silêncio em relação ao Holocausto, de silêncio em relação aos massacres promovidos pelas ditaduras na América Latina, onde centenas de padres foram presos, torturados e mortos com o conhecimento do Vaticano, de uma posição de neutralidade quando era o chefe da Igreja Católica na Polônia durante o comunismo e de uma carreira politica que o levou ao papado com a clara condição de não haver nenhuma investigação ou punição aos rombos bilionários no Banco do Vaticano promovido pelo Bispo Paul Marcincus, aquele mesmo que lavava dinheiro da mafia italiana e que teria conspirado na morte do Papa João Paulo I, que ficou apenas 33 dias no cargo de Papa, e morreu misteriosamente.

    Rapaz, o assunto do post ficou em segundo plano. Depois então eu comento sobre o aiatolá.

    Sales Neto

  8. Gostei de “Haroun, O Contador de Histórias”. Nunc cheguei perto do Satânicos, vai que tem um fanático perto e me ataca de cimitarra.

    Você devia experimentar falar barbaridades sobre Jesus na saída de um culto evangélico para experimentar a tolerância ocidental.

    Falar em livro, esse outro post aí em cima, sobre O Leitor está bárbaro. No bom sentido.

  9. Roberto,
    Jé em 1980 Khomeini era o retrato da maldade, isso eu posso garantir. Em 1979 eu não tenho certeza, mas acho que sempre houve tensão.

    Neto,
    O fim da infância e a adolescência: a guerra Irã/Iraque, se nãome engano, terminou em 1988. O mais egraçado é que embora houvesse um bocadinho de guerras aqui e ali, aquela foi a primeira guerra de eu me lembro.

    Sergio,
    Experimente vir aqui neste blog falar mal dos Beatles. Ou ir num congresso de software falar mal do Linux. Ainda assim há uma diferença entre grupos e o Estado. É quando a gente tem que observar a lei da vara curta. 😉

  10. Rafael,
    Lembro-me com muita clareza dos jornais da época estampando na primeira página (sic) a foto de Khomeini como um homem milagroso e que seria a redenção do Irã, isso , é claro , sob a ótica ocidental de então. Deve ter sido em 1979, como voce diz, para , logo depois, todos sabermos que não coincidiam as expectativas mútuas, ou seja, Khomeini representou a salvação do ponto de vista eminentemente árabe ou da facção religiosa que ele representa, varrendo da Pérsia os vestígios ocidentais deixados por Reza Pahlevi, o qual, com cancer e em estado terminal, ficou vagando pelos ares do mundo até ser abrigado pelo Egito e não sei mais por quem (Panamá?), todos os países temendo despertar a fúria islâmica fundamentalista.

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