“O Leitor” é um ótimo filme. Dirigido por Stephen Daldry, diretor de “As Horas” e Billy Elliot, é uma daquelas poucas boas obras produzidas por Hollywood nos últimos anos — talvez por apresentar qualidades estéticas típicas do cinema europeu, talvez por partir de um roteiro enxuto baseado em um livro que se presta bem à adaptação cinematográfica.
Não há excessos na direção de “O Leitor”: não há longos travellings, cenas propositadamente melodramáticas. Stephen Daldry desempenha a sua função com concisão e economia admiráveis, sem que em nenhum momento isso possa ser confundido com pobreza estética. Kate Winslet, como Hannah Schmitz, a ex-guarda de campos de extermínio que tem um caso amoroso com um garoto 20 anos mais jovem, está esplendorosa. É uma atriz de coragem, essa Winslet. Sua personagem consegue passar a dureza e a pobreza espiritual de sua personagem sem maniqueísmos nem pieguice.
Mesmo assim, nos últimos dias o filme vem sendo alvo de uma pequena polêmica. Ron Rosembaum, em artigo na Slate, pediu que não se dê um Oscar a “O Leitor” e o classificou como o pior filme já feito sobre o Holocausto.
Rosembaum, aparentemente pronto a defender com unhas e dentes a propriedade inalienável da Solução Final, não consegue sequer entender que o filme não é sobre o Holocausto.
“O Leitor” é, antes de tudo, um romance de formação em tempos difíceis, uma espécie de Billy Bathgate sem o lirismo idílico de “Houve Uma Vez Um Verão”. Mas é também, e principalmente — e é isso que lhe confere grandeza –, um filme sobre o desconforto alemão em lidar com o próprio passado nazista.
Esse desconforto está explícito na dificuldade com que Michael Berg, interpretado na idade adulta pelo ótimo Ralph Fiennes, lida com a mulher que foi o seu primeiro amor, a partir do momento em que conhece o seu passado. Aquela relação o marcaria para sempre, e sobre ela pode-se ter várias leituras. Uma delas, no entanto, é a que realmente interessa: o garoto incauto e ingênuo como representação do povo alemão, seduzido por algo maior e incompreensível — Hannah como materialização do nazismo — e os dilemas que enfrenta diante da necessidade de, mais tarde, encarar esse passado.
No entanto, em nenhum momento o filme pretende desculpar os alemães pelo nazismo. Isso não tem desculpa, e a essa altura ninguém espera que tenha. Sob essa ótica, “Operação Valkyria” é um filme muito mais nocivo, ao retratar aristocratas alemães como combatentes valorosos do nazismo (sobre isso já escrevi aqui: minha posição é a de que a esses “super-homens” alemães falta o estofo necessário aos verdadeiros heróis). Mas é preciso entender como o nazismo se desenvolvia em seus muitos níveis. Ninguém é estúpido o suficiente para achar que o que motivava a colaboração de um camponês era o mesmo que motivava Albert Speer — que por sua vez não estava lá pelas mesmas razões de Goebbels.
Ao mostrar uma mulher que não abriu as portas de uma igreja em chamas porque era preferível que os prisioneiros sob sua guarda morressem em vez de ter uma chance de fuga, Daldry não está pedindo que simpatizemos com ela. Pelo contrário: em nenhum momento a personagem de Kate Winslet é mais desprezível e abjeta. Mas nós podemos compreender a lógica simplória do seu raciocínio. E com isso, Daldry apenas retrata a estupidez e a crueldade de uma parte do povo alemão em um momento atroz de sua história.
O equívoco desse pessoal que acusa o filme de leniência em relação ao nazismo é que eles não conseguem compreender que o problema aqui não reside em ela aceitar em levar a culpa isolada pelo crime. Está no fato de que ela participou daquele ato, fez uma escolha aterrorizante, ainda que coletiva, e isso não é desculpável. A decisão de Hannah em assumir a culpa pela morte daqueles prisioneiros para não revelar que é analfabeta é, provavelmente, o momento mais fraco do filme. Mas o analfabetismo de Hannah não entrou em questão quando ela cometeu o seu crime. É irrelevante.
Como a ficcional Hannah Schmitz, milhares de alemães colaboraram em atrocidades de guerra sem muitos questionamentos morais. Em certa medida, isso é parte do próprio caráter germânico; em outra, maior e mais importante, é representativa do anti-semitismo generalizado na sociedade alemã. Eu e milhares de outras pessoas conseguimos compreender isso. Rosembaum não consegue porque sua agenda limita sua capacidade de ver a realidade.
Um dos grandes méritos de “O Leitor” está no fato de abordar o fenômeno do nazismo, do ponto de vista da sociedade alemã, de maneira razoavelmente objetiva, com uma compreensão razoável do caráter germânico e reconhecendo determinadas nuances da sua concretização. Um filme como esse deve incomodar pessoas com a mentalidade que se vê em Rosembaum porque admite a complexidade humana e tenta fugir de raciocínios simplistas.
O mais curioso é que essa linha de pensamento acaba fomentando o obscurantismo, ao evitar a discussão de complexidades daquele momento histórico. Eles não entendem que não basta admitir a maldade intrínseca e a excepcionalidade do fenômeno nazista. É preciso também admitir que o nazismo foi maior que o Holocausto, e tentar compreender os mecanismos que levaram àquela atrocidade. Olhar o nazismo como um fenômeno extemporâneo e isolado é um equívoco.
O Oscar pode ser negado a Kate Winslet e a “O Leitor”, claro. Mas que seja pelos seus defeitos como atriz e filme ou pelo interesse da indústria cinematográfica americana, e não porque alguns bobos acreditam que o filme não é panfletário o suficiente.
Nos comentários no reddit daquelas fotos coloridas da Alemanha Nazista (que o Hermenauta também linkou), tem uma citação do JFK que eu não conhecia: “After visiting Berchtesgaden, you can easily understand how that within a few years Hitler will emerge from the hatred that surrounds him now as one of the most significant figures who ever lived. He had boundless ambitions for his country which rendered him a menace to the peace of the world, but he had a mystery about him in the way that he lived and in the manner of his death that will live and grow after him. He had in him the stuff of which legends are made.” [JFK, summer 1945, from his European Diary]
Claro, depois tomou-se conhecimento da extensão do terror do Holocausto. Mas, ainda assim, a citação tem um valor de curiosidade.
Me pergunto o quê um Rosembaum da vida diria sobre ela 😉
Bacana esse post, concordo inteiramente com vc sobre isso. Existe uma espécie de medo irracional em alguns intelectuais de bom coração, de que humanizar o nazismo é perigoso, etc. Merda. Alias uma das melhores historias nazistas é justamente a relação de hitler com speer. vc leu as memorias de speer ou a bio de Gitta Sereny sobre ele? Elas sao fantasticas pq entre outras coisas mostram o nazismo de dentro de maneira sincera sem negar entretanto todos os crimes e massacres.
Considero o livro de Ron Rosenbaum muito interessante para entender o nazismo: “Para entender Hitler: a busca das origens do mal”. É uma espécie de super-resenha do que o século XX escreveu sobre o nazismo — o que foi escrito sobre essa época diz muito a respeito do que foi o século vinte (no fundo, a tese do livro). Contudo, não entendi por que ele fez tais críticas ao filme (não o assisti ainda, embora tenha tido várias opiniões favoráveis). Nesse sentido, concordo com sua crítica.
Amigo Rafael,
depois que vi uma associação de cegos americana reclamando de Ensaio Sobre a Cegueira cheguei a conclusão que há idiota para tudo no mundo.
É sempre bom lembrar que não foram os alemães sozinhos que fizeram o holocausto, e nem eram os alemães os únicos nazistas, e nem é meramente o “espírito” germânico capaz de tantas atrocidades.
Veja-se o caso recente da França tentando ajustar as contas com seu passado ainda obscuro. A Alemanha se adiantou bastante neste processo de revisão do passado, coisa que outros povos teimam em recusar.
O Brasil mesmo, tinha mais da metade do governo pró-nazista. E o presidente da “abertura” (general Dutra) tinha sido o líder da ala filo-nazista do governo Vargas.
Entender porque alguém é capaz de fazer o que fizeram as pessoas durante a guerra é uma questão que precisa ser enfrentada. Só dizer que são maus não basta. É preciso mergulhar nessa maldade que está dentro de todos, para só então exorcizá-la.
Vou esperar o filme sair em DVD para assistir…
Esse é um daqueles textos que eu gostaria de ter escrito.
Olá!
Passei aqui pra dizer que o seu blog ganhou selo de “Olha que blog Maneiro”!
Quando puder passa no Ponto Final para saber mais detalhes!
beijos e parabéns!
Aleluia, aleluia!
E o que dizer disto: http://www.interney.net/blogs/filmesdochico/2009/02/09/o_leitor/
HAHAHAHAHAHAHA