A revista Náutica de setembro passado trouxe uma matéria sobre Thor Heyerdahl e sua famosa expedição Kon Tiki. A revista dá a entender que a teoria que Heyerdahl defendia era válida e provável. Aí lembrei de uma National Geographic antiga, de janeiro de 1971, que traz na capa um relato da viagem do Ra II, também construiído por Heyerdahl.
A viagem do Ra II foi feita para que Heyerdahl tentasse provar uma das teorias curiosas que costumava elaborar: como egípcios e mesoamericanos construíram pirâmides, deveria ter havido algum contato entre eles antes da descoberta da América por Colombo. Para provar essa teoria Heyerdahl construiu um barco de junco e viajou até a América. A primeira não deu certo e ele afundou a 600 milhas náuticas de Barbados. Construiu um novo barco, o Ra II, e aos trancos e barrancos conseguiu chegar à ilha, com o barco fazendo água e meio submerso.
Com isso, Heyerdahl mostrou que a sua teoria era possível.
Mas ele já era famoso muito antes disso. No final dos anos 40, tentou provar que a Polinésia foi povoada pelos sul-americanos. Partiu do princípio de que ventos e correntes marítimas favoráveis, no sentido leste-oeste, tornavam a sua teoria mais plausível do que a ideia normalmente aceita, de que as ilhas do Pacífico Sul — a última região do globo povoada pelo homem, há coisa de pouco mais de mil anos — foram povoadas no sentido oeste-leste. Apontou uma série de indícios linguísticos para embasar sua teoria. Precisava provar também que era possível à tecnologia dos nativos incas da época navegar em direção ao oeste através do maior oceano do mundo. Com a expedição Kon-Tiki, construiu uma balsa para provar sua teoria. Depois de pouco mais de 3 meses no mar acabou dando nas ilhas Tuamotu.
Assim como provaria mais tarde com o Ra II, ele mostrou que era possível, disso não há dúvida. O problema é que nem tudo que é possível é provável. Heyerdahl esqueceu do óbvio: toda a história da exploração por mar se dá no contravento, ou na certeza de sua existência. Não há outra maneira possível.
A explicação é muito simples: velejar contra o vento — especialmente antes da invenção da vela latina, aquela triangular — era a única garantia que qualquer explorador tinha de que conseguiria voltar, caso sua busca não desse em nada. A viagem mais difícil seria a de ida; e quando a comida e água começassem a terminar, era só dar meia-volta que chegariam rapidamente em casa, dentro de um período de tempo facilmente demarcável — e muito menor que a viagem de ida.
Resumindo, um explorador só saía mar afora tendo a certeza da volta.
Colombo só velejou rumo à América, achando que ia encontrar a China, porque já conhecia o regime de ventos do Atlântico Norte, com ventos de leste à altura das Canárias e de oeste um pouco mais acima. Cabral só chegou ao Brasil porque tentava refinar a descoberta de Vasco da Gama de que, afastando-se da costa da África, havia a garantia de ventos melhores — ele apenas afastou-se demais. Os vikings e os irlandeses só chegaram à Islândia, à Groenlândia e à Terra Nova porque conheciam os ventos e a geografia da região e sabiam quais seriam as condições de volta. Um dos tantos motivos que impediram que os chineses, muito mais avançados em navegação do que os europeus até o século XVI, chegassem à América foi a dependência confortável do regime de monções do Índico, que garantiam vento de popa na ida e na volta em um espaço perfeitamente delimitado e que lhes trazia lucros suficientes no comércio.
Nenhum navegador, por melhor que fosse, sairia Pacífico afora a favor do vento, porque isso seria garantia de morte certa. Esse era o principal elemento lógico que tornava a teoria de Heyerdahl fantasiosa. Se a matemática favorecia os sul-americanos, já que a ilha de Páscoa é mais próxima do continente, esses outros fatores se revelavam muito mais importantes.
Ou seja: era possível chegar à ilha de Páscoa com a tecnologia disponível na época. O problema era ter a vontade e a falta de juízo para fazer isso. Heyerdahl só fez essa viagem porque sabia que havia terra a oeste. Difícil seria fazer uma bobagem dessas sem saber absolutamente nada além da certeza de que seria extremamente difícil voltar.
Essa é a principal razão pela qual americanos em geral não tinham absolutamente nenhuma tradição de navegação. A terra e a navegação costeira lhes oferecia tudo de que precisavam; e o regime de ventos e correntes marítimas como a do Brasil não incentivavam muito esse tipo de exploração. Era exatamente o contrário do que acontecia com os polinésios, com pouca terra, condições favoráveis e a mais fantástica habilidade marinheira de toda a história da humanidade.
Foi contra isso que Heyerdahl se “insurgiu”. Quando se defende a sua teoria boba, a única razão é o que parece ser uma certa arrogância europeia, ainda que extremamente sutil. Parece ser um raciocínio curioso: como é o que os incas, maias e astecas chegaram a civilizações tão imponentes e não se aventuraram no mar? É mais ou menos como se perguntar por que portugueses e espanhóis esperaram até o século XV para atender ao que parecia ser a sua vocação natural, e transformaram a Europa de um continente vagabundo e atrasado na civilização que dominaria o mundo nos séculos seguintes. Heyerdahl parecia acreditar que grandes civilizações como a europeia necessariamente dariam grandes exploradores. A tese de Heyerdahl era burra e arrogante — a começar pela idéia de que a Europa era “grande” naquele momento, o que não condiz com o desprezo com os orientais receberam um Vasco da Gama andrajoso, sujo e mendicante –, e é impressionante como ainda hoje tantas pessoas, provavelmente entusiasmadas com a aventura em si do Kon Tiki, digna de todos os elogios possíveis, celebram essa teoria.
A página em português da Wikipedia, de uma mediocridade assombrosa, não contesta a tese de Heyerdahl. A versão em inglês é mais completa; lembra que a comunidade científica nunca levou a teoria do norueguês muito a sério, e que pesquisas de DNA recentes provaram que a teoria de Heyerdahl é só uma grande bobagem bonitinha.
O triste é precisar de exames tecnologicamente sofisticados para provar que uma bobagem é só uma bobagem.
a noruega é tão carente de heróis que colocou o nome de heyerdahl e de fritjoff nansen (um diplomata) em dois dos seus principais navios de guerra.
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mudando de assunto, imaginei que talvez você pudesse falar alguma coisa sobre a putanheirice histriônica de berlusconi. 😛
Victor, é que eu me sentiria mal falando algo bom de um filho da mãe como o Berlusconi. 😉
Uau. Que grande post. Tão completo e objetivo que minha ignorância não consegue encontrar nada para comentar. Só lhe dar parabéns.
eu queria era que falasse mal mesmo.
Mas Victor, eu falando mal de putanheirice?
Tá difícil. 🙂
Acho que apesar da teoria de Thor não ser claramente provada, não pode ser descreditada pelos critérios apontados neste post. A questão do velejar contra o vento é valida, porém não se pode descartar que existiam e ainda existem muitos “loucos” que sairiam sim “sem rumo” pelo mar. Não é difícil imaginar um velejador antigo que sonhava em ir além do que era conhecido pelos seus ancestrais.Um dia com certeza alguém entrou num barco sem um mapa, pelo menos o indivíduo que fez o mapa original, então há precedentes. Na ilha de páscoa atualmente existe uma “família”com pele clara e propensão a ter cabelos ruivos(traços tipicamente brancos). A teoria não pode ser confirmada ainda, porém vejo que existe uma “pressa”ao descartar um possível grande feito do homem branco em detrimento de sensibilidades culturais de outros povos. Veja por exemplo o caso dos megaliths na américa do norte e as múmias brancas encontradas em várias partes do mundo(até na china).