Essa gente diferenciada e suas religiões nada cordiais

Em política costuma-se dizer que evangélicos podem eleger bancadas fortes nos parlamentos, mas não conseguem chegar ao executivo; porque ainda são minoria, e porque na hora H o resto da sociedade — católica, atéia, xintoísta — se une contra eles. Marcelo Crivella deve ter algo a dizer sobre isso.

Lembro disso porque me incomoda ver alguém falando em “vida dura de ateus”, como neste texto da Eliane Brum republicado pelo Milton há alguns dias. Alguém — não lembro quem nem onde, infelizmente; mas um comentário do Matheus Lopes a esse post no Milton diz basicamente a mesma coisa, e este post do Gravataí Merengue deixa tudo mais claro — já disse que nunca viu um ateu ser perseguido ou espancado por ser ateu. Eu também não vi. Ateus não andam por aí com estrelas amarelas pregadas na roupa. Além disso, ateísmo é praticamente a outra religião da classe média brasileira, muitas vezes disfarçado sob agnosticismo.

Eu gostaria apenas que todas as mulheres que apanham de seus maridos e não podem fazer nada por causa de suas famílias, os negros que nascem pobres e estão condenados a morrerem pobres, e os homossexuais que apanham e morrem apenas porque algum enrustido tem medo do reflexo de si próprio que vê neles tivessem uma vida igualmente dura. Quem entrou na justiça contra o direito de alguém ser ateu, assim como entram contra as cotas, sociais ou raciais? Quantos ateus andam apanhando de uma hipotética Brigada São Tomás de Torquemada, como gays em todo o país estão apanhando?

Isso é mimimi de classe média que está desacostumada ao contraditório, ainda que medíocre, porque ficou fácil defender as idéias de sempre.

Esse, no entanto, não é o ponto principal. O que me impressionou de verdade no texto da Eliane Brum foi o quanto há de preconceito de classe nele. Porque o problema com os evangélicos não é propriamente religioso. É social. O crescimento dos evangélicos assusta em grande parte porque representa a ascensão das classes mais baixas, e cada vez mais o desconforto da antiga classe média é impressionante. Aquela gente feia e brega ocupando sua poltrona nos aviões, lotando os shoppings no dia posterior ao pagamento, causando com seus carros — ônibus não devia ser suficiente para eles? — congestionamentos cada vez maiores; tudo isso tem gerado na velha classe média uma sensação de desconforto e de insatisfação que muitas vezes parece não ter causa definida.

A impressão que o texto me deixou foi essa, a de que o neopentecostalismo incomoda mesmo porque é a religião pouco sofisticada de gente diferenciada, que agora resolve se sentir superior à classe média.

Afinal de contas, a vida naquele táxi foi dura por quê? Porque o sujeito tentou fazer proselitismo? Porque ele demonstrou ter uma certa “pena” por ela ser atéia? — a “superioridade” que ela percebeu em sua atitude a incomodou o bastante para ser notada no texto.

Ele não bateu na jornalista, não a xingou, não a obrigou a fazer nada. Riu. Discutiu, expôs suas idéias, por pobres que sejam. Pelo que li, também posso dizer que o taxista foi respeitoso. Tentou ser simpático e a convidou para se juntar a ele na tal Igreja. Grande parte do que a jornalista inferiu (“O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida”) exsuda um paternalismo e um senso de superioridade tão grandes (além do fato de que elogio em boca própria é sempre estranho) que é difícil não ver, nisso, o mais básico preconceito de classe. É quase como se o taxista, além de ser burro por ser evangélico, tivesse esquecido qual o seu lugar ao se achar melhor que uma atéia de classe média.

Crenças, quaisquer que sejam elas, fazem isso com as pessoas. Evangélicos no entanto não estão sozinhos nisso; ateus também costumam se sentir superiores aos pobres supersticiosos que ainda acreditam numa noção de sobrenatural criada na pré-história, assim como uma certa elite cultural se julga superior a quem gosta de Calypso — que por sua vez despreza essa elite que “não sabe se divertir”.

É aí que entra o viés de classe, talvez não percebido pela jornalista. Um preconceito que fica ainda mais claro quando ela fala na tolerância da Igreja Católica ao ateísmo.

Associar as igrejas evangélicas à intolerância enquanto livra a cara da ICAR só pode ser brincadeira. Primeiro, porque em vários campos as igrejas neopentecostais são mais tolerantes que a igreja do papa Bento — costumam ser mais liberais em termos de costumes, por exemplo, aceitando divórcios e uso de preservativos. Segundo, porque basta olhar para as últimas eleições para ver que essa tolerância católica (procure no YouTube por “Dilma e aborto) não tem absolutamente nada de proverbial.

Uma coisa deve ficar bem clara: ao contrário do que diz o texto, o catolicismo não mantém, nunca manteve relação de tolerância com o ateísmo; aliás, tudo o que essas igrejas neopentecostais fazem é copiar procedimentos de evangelização dos primeiros tempos do cristianismo. Quem mantém relação de tolerância são os católicos. Não porque são católicos, mas porque são de classe média, educados em um meio sociocultural naturalmente tolerante, a não ser quando se sente ameaçado pela classe C. Na verdade — e isso os ateus que reclamam de perseguição costumam esquecer — toleram o ateísmo muito mais do que toleram outras religiões associadas às classes mais baixas, como o candomblé e, agora, o protestantismo. Ateísmo é religião de rico, que pode pensar e chegar a conclusões racionais, e essas coisas de rico são vistas com bons olhos pela classe média.

A condescendência com a Igreja Católica, clara no texto, é um dos grandes sintomas desse preconceito de classe disfarçado. Ela não incomoda porque, afinal de contas, faz parte do status quo. Não importa o quanto combata o direito ao aborto, o uso de camisinha, não importa que faça campanha para candidatos de direita — ela é tolerante porque é a religião de uma classe média pouco religiosa, e por isso não representa mal nenhum; afinal, essa classe média pode fazer aborto quando quiser.

Em vez de se alarmar com a “inevitável” destruição do brazilian way of life por essa horda de pobres evangélicos e evangelizadores, essa classe média iluminada devia se perguntar por que, afinal, as igrejas neopentecostais têm crescido tanto. Que respostas elas oferecem ao povo. O fato é que essas igrejas melhoram de verdade a vida dos seus fiéis. Não por causa de uma eventual noção de Deus, mas por causa do apoio de grupo que podem dar em um tempo de desagregação social. Talvez elas devolvam ao indivíduo um senso de propósito e senso de tribo, algo cada vez mais raro na sociedade da informação. Não sei. O que sei é que como antes se reclamava dos pretos macumbeiros, dos ebós no meio das encruzilhadas, e como os franceses hoje reclamam dos muçulmanos com suas burcas e véus, a classe média brasileira se apavora com o crescimento dessa religião de gente diferenciada.

***

Se em vez de ateísmo o tema em questão fosse tabagismo, por exemplo, o diálogo seria bem parecido:

– Esse cigarro no seu bolso… Você fuma?
– Fumo.
– Deus me livre! Para de fumar.
– Não, eu não quero. Eu gosto de fumar.
– Deus me livre!
– Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
– (riso nervoso).
– Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por gostar de fumar?
– Porque cigarro mata.
– E daí?
– A gente precisa viver com qualidade de vida. Se você não parar de fumar, não vai ter qualidade de vida.
– Mas eu não quero isso, eu quero fumar.
– Deus me livre!
– Eu não acredito nisso de qualidade de vida, porque qualidade de vida significa ficar contente como fico ao acender um cigarro. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.
– Acho que você é maratonista.
– Não, já disse a você. Sou fumante.
– É que o câncer não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
– Olha, sinceramente, acho difícil que o câncer vá me pegar. É mais fácil o enfisema. Mas sabe o que acho curioso? Que eu não queira fazer você fumar, mas você queira acabar com o meu direito de fumar. Não acho que você seja pior do que eu por ser anti-tabagista, mas você parece achar que é melhor do que eu porque não fuma. Não era Jesus que pregava a tolerância?
– É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto…

Milhares de fumantes em todo o país ouvem isso todos os dias. Nem por isso saem por aí dizendo que “o anti-tabagismo está destruindo a cordialidade brasileira”.

14 thoughts on “Essa gente diferenciada e suas religiões nada cordiais

  1. Desculpe meu amigo mas primeiramente, sou atéi e POBRE, nunca tive tudo de mãos beijadas da minha mamãe e do meu papai.
    Outra coisa, se vc associa a religião às classes delas e os evangélicos são pobres pra vc PARABÉNS.
    Pois estão pobres por serem escravos de uma religião serva do capitalismo, onde vcs perdem seus bens materiais para darem a igreja. Igreja? Ou seus pastores? Vc sabe exatamente pra onde vai o dinheiro que doa?
    E outra coisa que queria dizer, vc está fazendo a mesma coisa que ela, eu não digo que concordo com ela por ser atéia, mas vc está parecendo achar que é superior á quem tem outras religiões.
    Ateísmo não é religião, e eu estou realmente muito triste por perceber que cada dia mais e mais existe INTOLERÂNCIA da parte de TODAS AS RELIGIÕES E NÃO RELIGIÕES.
    Quando li esse artigo quem não tolerou FUI EU, pq estou de saco cheio de tudo isso.
    NÃO ACHEM QUE VOCÊS EVANGÉLICOS SÃO DONOS DO MUNDO POQ NÓS ATEUS TAMBÉM ÃO ACHAMOS ISSO.
    Isso foi um desabafo de uma pessoa que é atéia, pobre, que rala pra ganhar o meu pão de cada dia e que nãofaz parte da elite capitalista.

  2. Péssima analogia. Fumar é comprovadamente prejudicial à saúde e, por isso, é um hábito socialmente combatido, inclusive pelo Estado. O mesmo, graças a Deus, não acontece com o ateísmo.

    No mais, acho que o texto erra completamente o alvo e faz diversas suposições completamente equivocadas. Destaco a mais gritante: “O crescimento dos evangélicos assusta em grande parte porque representa a ascensão das classes mais baixas, e cada vez mais o desconforto da antiga classe média é impressionante.”

    Não, Rafael, definitivamente não! O que assusta são as posturas políticas da bancada evangélica e não o grupo social a que pertencem seus eleitores. São pobres os eleitores da maioria do legislativo – por óbvio – já que vivemos num país de miseráveis. Há muitos “candidato dos pobres” muito embora todos – ou quase todos, incluindo os bispos – pertençam às elites. O que assusta, Rafael, é que a bancada evangélica está usando a influência e o dinheiro que possui para financiar uma política de retrocesso, de preconceito e de cunho evidentemente religioso. Nada além disso.

  3. Tabagismo é um mal científicamente comprovado, mude seu exemplo e talvez você ganhe mais credibilidade.

  4. o ateu, assim como o cara que fuma, não fica, s.m.j., querendo converter o outro. vc não vê o ateu batendo de porta em porta: “posso falar um minutinho com o senhor, o senhor já pensou bem que não existe deus nem nada, isso tudo é mito…”. fumantes não convidam não fumantes para reuniões para debater “o poder libertador da fumaça”. e talvez os católicos sejam mais simpáticos por não fazerem esse tipo de coisa hoje, não são tão (aqui vai um termo polêmico): intrusivos – eles ficam lá na igreja deles. assim, por observação, constato, novamente s.m.j., que ateus e fumantes são mais tolerantes e, assim, mais simpáticos.
    ;>)

  5. Rafael, adorei seu texto, até postei o link pra alguns contatos no facebook, pois, como quase tudo agora, a coluna da Eliane Brum já estava virando meme por lá e me foi muito providencial ter essa sua resposta.

    De tudo o que você disse, destaco o ponto de que essa alegada vida dura dos ateus é uma irrealidade. E é tão engraçado ver como ateus e crentes – católicos ou evangélicos – são iguais neste aspecto. Todos eles acham que estão sendo perseguidos por conta de suas convicções, mas, na grande maioria das vezes, um exame um pouco menos superficial nos mostra que se trata de uma espécie de “paranóia de classe”.

    Durante muitos anos frequentei uma denominação religiosa considerada radical e ficava pasma de ver como, no grupo, tudo o que acontecia de ruim era atribuído a uma suposta perseguição religiosa. O sujeito era extremamente pau no cu (pode falar palavrão aqui?), sem razoabilidade e chato, mas, se alguém reclamava, era perseguição, mesmo que não tivesse nada a ver com suas crenças.

    E, ao contrário do Alexandre e do Daniel, achei a comparação com o tabagismo perfeita. Isso porque, para alguém religioso, principalmente para o evangélico, o ateísmo é tão mortífero quanto o cigarro e, pior, enquanto o fumo traz a morte do corpo, o ateísmo te leva à morte espiritual, eterna. E não foi Jesus quem disse que a gente não deve temer o que mata o corpo, mas, sim, o que traz a morte espiritual? Pois então…

    E como fumante eventual, posso dizer que sou muito mais perseguida do que qualquer ateu. Se vou a um bar, não posso sentar onde quero, mas apenas juntos com os outros párias tabagistas. Já me disseram que sou fedida, já levei tapa na mão pra mó di meu cigarro cair e, pasme, meu namorado já ameaçou terminar tudo comigo caso eu não pare de fumar. E isso porque fumo menos de um maço por semana. Sim, não digitei errado, é menos de um maço de cigarros POR SEMANA.

    Credo, escrevi tanto que fiquei até com vergonha. Beijim.

  6. Opa, to aqui digerindo. Lembrei de uma coisa: ateus sempre foram rejeitados no Brasil, tanto que poucos políticos ousam se declararem ateus – sabem que podem perder eleiçòes. Isso pra quem quer ter poder e viver do poder, é muita coisa, brother. É o tipo da coisa que alimenta a hipocrisia. Fora isso, realmente, se declarar ateu não é nenhum sofrimento.

    Acho que você erra quando diz que evangélico é religião de pobre. Tem que ver isso aí… Ou não tá bem colocado no seu texto ou sei lá… Tem que ver isso aí… 😀

    Mas ó, o artigo é bom, sai do senso comum, faz pensar…

  7. Rafael, concordo com a maior parte do que foi dito. Há algum tempo, publiquei um texto tratando do mesmo problema em meu blog ( http://meueusadico.blogspot.com/2011/09/evangelicos-e-preconceitos.html ). A meu ver, pessoas extremamente conservadoras – católicos e ateus de classe média – atacam os evangélicos como se eles fossem a quintessência do obscurantismo, e se esquecem de perceber em si mesmas traços evidentes de reacionarismo.

    O problema sempre são os outros, ao que parece.

  8. O assunto está bom demais 🙂

    Sobre a tolerância dos católicos e não da Igreja Católica: este é o país dos católicos que vão a centros de divulgação da doutrina kardecista e vice-versa, este é o país em que, todo dia 23 de abril, milhares de negros vestindo branco e vermelho vão à Igreja de São Jorge, ali perto do Campo de Santana, no Rio, mostrar sua devoção a Ogum, e outros exemplos de sincretismo religioso que o bispado católico nunca aceitou, aceita e aceitará.

    Sobre evangélicos e pobres (mas que também pode ser sobre ateísmo e ricos), posso colocar um link aqui? Então: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/08/110823_religioes_fgv_pai.shtml , ou http://cps.fgv.br/ren pra quem quer ler na fonte.

  9. para mim é pior psicologicamente, deixar de fumar!
    enquanto o que diz das religioes, qualquer uma delas, acho que acabam com a fé!!!!
    tudo que é regla, ritos, leyes a seguir acabam volvendo as pessoa fanaticas!
    nao sou mto boa para comentarios, outro abraço e vou continuar vendo teu blo amanha!
    outro abraço
    sabe sou pintora se te interssa pode ver:
    http://www.myralandau.com

  10. O texto de Eliane Brum diz respeito tão somente a intolerância religiosa perpetrada por algumas correntes neo-pentecostais. O blogueiro, tendenciosamente, distorce o sentido inserindo a questão no contexto da luta de classes.

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