Era uma senhora velha, daquele tipo de velha cuja idade é difícil de ser adivinhada pela configuração singular das marcas no rosto. Tanto podia ter 50 anos quanto 80. Ela tinha um cortiço na Misericórdia no comecinho dos anos 70. E tinha um pretinho que criava e no qual batia todo dia. Todo dia.
Ainda estavam longe os tempos da recuperação do Pelourinho. Aquilo tudo era feio, mas era de verdade: a Praça da Sé era fim de linha de ônibus, as lojas de discos, as livrarias e a Primavera ainda não tinham cedido lugar às armadilhas de turista atuais. Turistas, sim, mas muito menos que hoje; nas calçadas o que havia era a gente da Bahia indo e vindo do trabalho, vivendo os últimos dias de uma província malemolente, os dias antes de Aratu e de Camaçari que eu não vi — só entrevi de longe, olhando para o que tinha restado deles.
Pela Misericórdia e pelo Terreiro de Jesus se espalhavam cortiços que estavam ali havia décadas. E das janelas daquela casa de cômodos da Misericórdia, aquela que ficava bem em frente à Igreja, moças jovens viam com olhos deslumbrados os casamentos requintados na Igreja da Misericórdia. Ali casavam-se os ricos, a nobreza baiana de sotaque mole e arrastado. É uma coisa da Bahia, esses casamentos em igrejas antigas de bairros decrépitos, que realçam o contraste entre a riqueza e a miséria que em Salvador é mais forte que em outros lugares.
E as moças que das janelas olhavam os casamentos da filha do desembargador, da filha do empresário — ah, essas normalmente não tinham se casado, tinham se amigado com o rapaz de conversa macia e brilho nos olhos que lhes fez ferver as carnes; e dividiam o cortiço de quartos apertados, quartos separados por paredes que eram apenas pentimento, décadas e décadas de tinta barata rosa, azul, verde se sobrepondo umas às outras. Dividiam-no com as meninas de coquinhos infinitos na cabeça amarrados com cordão; com as lavadeiras que estendiam no telhado as roupas das freguesas; com as prostitutas que dormiam pela manhã e saiam à noite para trabalhar no Maciel logo ali perto; com os comerciários que chegavam arrastando os pés no meio da noite, espalhando o bafo de cachaça por todo o corredor que rangia à sua passagem.
Mas isso é o que elas veriam se olhassem para dentro, e por isso olhavam para fora, para as noivas radiantes e a gente chique embonecada, as câmeras fotográficas espoucando à sua passagem. Não interessa que para quase todas elas o futuro não fosse tão brilhante, e que os momentos felizes talvez fossem ainda mais efêmeros que o brilho dos flashes dos fotógrafos d’A Tarde. Acho que talvez soubessem, no fundo, que aquele destino não podia ser para elas. Mas também acho que tinham uma certeza: a de que o seu futuro, seguramente, não seria como o destino da velha dona do cortiço.
Era uma velha muito branca, de uma brancura difícil de achar na Bahia, pelo menos difícil de achar num cortiço na Misericórdia. Usava o cabelo também totalmente branco bem esticado em um coque no alto da cabeça. Morava ali mesmo, no seu cortiço, e era velha de maus bofes e alma ruim.
Não devem ter sido um ou dois os que tentaram adivinhar a sua história. Eu tentei também, mesmo muitas décadas depois. Talvez tenha sido a sua ruindade que a fez ir ficando para trás, ir perdendo as chances de ser feliz de verdade, e a ela só restasse o cortiço que herdou do pai enquanto seus irmãos, se irmãos ela teve, foram em busca de uma vida melhor. Talvez, como a Mulher de Roxo que já vagava um pouco mais abaixo, nas lojas da rua Chile, ela tivesse sofrido uma desilusão amorosa e o seu coração tivesse se encarquilhado em fel.
O que importa é que os anos 70 começavam e ela ainda estava ali. Mas não estava sozinha. Ela tinha o pretinho dela.
Era um rapaz franzino de uns 18 anos. Devia ter sido criado por ela desde a infância. Era tão comum, isso, e seria até muito mais tarde. Mas aquele caso era especial, porque não dá para deixar de pensar na ingenuidade de sua mãe, coitada, mulher tola que um dia achou que o seu filho teria uma vida melhor se fosse criado pela filha de sinhô.
O pretinho dormia no quarto com a velha, provavelmente no chão enquanto ela ocupava a cama. Quando me contaram essa história eu perguntei mas então a velha pegava o menino? E me disseram que não, que não era isso, ele era só o menino que ela criava, e por ser preto isso lhe dava o direito de bater nele, bater como se bate em jumento teimoso.
“Ah, Rafael, você não perguntaria isso se visse o olhar que ele dirigia a ela. Era um olho diferente, era ódio. Ódio e impotência.”
No final dos anos 60, em Salvador, a escravidão ainda não tinha acabado de todo. A velha ruim dona do cortiço na Misericórdia e tantas outras mulheres, bem ou mal intencionadas, criavam pretinhos como hoje criam poodles. Uns eram bem tratados e a esses era dada a sorte grande, a esses a vida abria mesmo a chance de uma vida melhor. Mas outros tinham o azar desse pretinho da Misericórdia.
Isso foi há mais de 40 anos. É tempo demais. A velha ruim já morreu, não pode estar viva. Sua casa de cômodos deve ter ficado para um sobrinho, um sobrinho-neto, e sobreviveu sobre as lojas do térreo — como a “5 Irmãos”, loja de tecidos que ainda estava lá no final dos anos 80. Mas então as coisas mudaram, e a nova Salvador para turistas saneou o lugar dos pobres que deveriam se conformar em morar para lá de Pernambués, para lá da Calçada. O cortiço hoje é um pequeno conjunto comercial. Ali fica a loja da Fundação Pierre Verger, por exemplo. A Misericórdia é hoje mais bonita do que talvez jamais tenha sido, e atrai vendedores ambulantes ansiosos por tirar algum dinheiro dos turistas que se amontoam por ali.
Se alguém se der ao trabalho de perguntar, o mais provável é que ninguém mais se lembre da velha senhoria do cortiço, velha ruim que tinha um pequeno escravo que a odiava no início dos anos 70. E deve ser difícil recuperar a história do velho cortiço, essas coisas a cidade esquece, engole como uma lembrança ruim que deve ser obliterada porque cidades são sempre tão maiores que suas pequenas histórias. Mas o menino que ela criava deve estar por aí, prestes a se aposentar, e só ele sabe as cicatrizes que sua alma carrega dos anos que passou no cortiço da Misericórdia.
mas gente… como gosto de ler o que você escreve, benza deus!
Ótimo Rafael.
olha, suas crônicas sobre salvador dos anos 70 e 80 mudaram a forma que eu via essa cidade. devia ser uma coisa.
Rafael, você, provavelmente, tem o melhor texto da blogosfera nacional. Abraço!