Get Back, again

Então você acorda e dá de cara com esse novo clip dos Beatles.

Ele apenas parece a sequência original do filme Let it Be. Mas é a versão do Let it Be… Naked, que mistura os dois takes gravados no concerto do telhado. Embora eu prefira a versão original do filme, com Lennon naturalmente esquecendo a letra, este vídeo é fantástico — a dancinha de McCartney, por exemplo, é imperdível. Acima de tudo, tem um número enorme de cenas inéditas. E a qualidade da imagem é insuperável.

Mais que isso, ele faz pensar.

Descontando o disco Live at the Hollywood Bowl, que os Beatles tiraram de catálogo, o filme Let it Be é o último grande relançamento restante para a banda. Todos os outros já foram lançados em DVD ou BluRay; seus discos foram remasterizados; novas gravações vieram à luz do dia nos últimos 21 anos. Por isso, durante muito tempo acreditei que deveriam relançar o filme no formato 4:3 como foi gravado, acompanhado de um disco com extras, cenas que ficaram de fora, etc.

Eu estava errado. Ou melhor, não percebia que algo muito melhor era possível.

O fato é que Let it Be é horroroso. No fim das contas, em nenhum momento o diretor Michael Lindsay-Hogg consegue construir uma narrativa coerente: o que temos é basicamente um amontoado de cenas, praticamente sem nexo narrativo, seguindo de maneira frouxa e inconsequente uma certa ordem cronológica. É quase como se ele tivesse abdicado do papel de diretor.

Não foi culpa exclusiva dele. O clima caótico entre os Beatles não colaborava; e para piorar, a banda praticamente abandonou o projeto. Mesmo McCartney, que se envolveu um pouco mais, esteve distante. O primeiro copião tinha uma hora a mais e continha um bocado das discussões internas entre eles (você pode encontrar muitas delas aqui, um dos sites mais pungentes sobre a banda). Mais tarde tudo foi reeditado para tirar a lavagem de roupa suja. Como se não fosse o bastante, o filme, que tinha sido filmado em 16mm para a TV, foi expandido para 35mm e teve que ser cortado para se adaptar ao formato final, 1.66:1. Não deve ter sido fácil. Mesmo assim, diante de tanto material, pode-se especular que um diretor um pouco mais experiente, por medíocre que fosse, poderia ter feito um trabalho minimamente coerente.

Esse clip de Don’t Let Me Down me mostrou o óbvio: em vez de perder tempo tentando a salvatagem dessa tragédia, há material suficiente para que se faça um novo filme. Um que estabeleça melhor as três fases da história e conecte-as de forma mais orgânica: ensaios no estúdio Twickenham, gravações no estúdio da Apple, show no telhado. Bem dirigida, essa progressão poderia mostrar a evolução do clima entre eles (que odiaram gravar em Twickenham, gelado em todos os sentidos, e uma das condições estabelecidas por Harrison para voltar à banda foi a mudança para os estúdios da Apple; junto com a chegada de Billy Preston, isso contribuiu para que o astral geral melhorasse, levando à apoteose de entrosamento e bom humor que se vê no telhado).

Os lançamentos da Apple Corps. nas últimas décadas são um indício forte de que há muito material de qualidade nas suas estantes. O farto material disponível em bootlegs é a prova definitiva. O novo filme poderia incluir as tantas e tantas gravações de clássicos do rock, de velhas canções (esse take de Love Me Do, que eu utilizaria para fechar o filme, é ótimo).

Eu chamaria esse filme de Get Back. E pediria a Martin Scorsese que o dirigisse. Tenho a impressão de que Scorsese faria até de graça.

Mas é improvável que esse material seja lançado algum dia, ou pelo menos enquanto os Beatles restantes estiverem vivos. O filme original já foi restaurado há mais de 20 anos, e mesmo assim jamais foi lançado. Dificilmente será, enquanto McCartney, Starr e Ono estiverem vivos. Para os sobreviventes desse naufrágio, 45 anos depois Let it Be ainda é incômodo, talvez dolorido.

É uma pena. A trajetória dos Beatles já entrou para o domínio público da cultura pop. Uma nova versão do seu último ato apenas acrescentaria grandeza a uma história mítica, e encerraria uma saga que, quase meio século depois, ainda continua. Paul, Ringo e Yoko apenas deviam deixar estar.

9 thoughts on “Get Back, again

  1. Rafael:

    Esse vídeo da Don’t Let Me Down é muito bom, obrigado!

    Agora, falando em filme ruim dos Beatles, eu acho que esse é o único consolo que todo fã do Elvis tem: nem o mais mal feito filme do Elvis, e eles são muitos, é pior do que qualquer filme do Beatles. ah, há, há, há..!

    • Serge, vou fingir que não percebi a isca porque comecei a assistir Blue Hawaii nesse fim de semana e percebi um negócio curioso.

      Eu sempre relevei a falta de talento de Elvis como ator porque aquelas coisas que a gente vê como criança — e como negar o carisma absoluto de Elvis? — ficam pra sempre na nossa memória.

      Mas puta que pariu, que ator ruim. E que filme idiota.

      No dia em que Elvis fizer um A Hard Day’s Night (ou mesmo um Help!) a gente volta a conversar. 😉

      E toma aí um presente: Elvis estragando Hey Jude.

      • Tem razão Rafael, essa Hey Jude do Elvis é dose pra leão; credo! Só o Ray Charles não fazia isso com a música dos Beatles, porque o que o Frank Sinatra faz com Something e Yesterday também é um crime hediondo.

        • Lembro quando ouvi isso pela primeira vez. 86. A música começou a tocar no rádio e eu fiquei rindo, vendo como era ruim. Quando o locutor disse que era Elvis eu tomei um susto: aquilo não era possível.

          De modo geral eu acho que as versões que fazem das músicas dos Beatles são inferiores, porque eles conseguiam fazer arranjos extremamente adequados. Estava ouvindo Elvis cantando Yesterday ontem e entendi qual o erro: ele dá uma dramaticidade à música que ela não deveria ter, uma impostação desnecessária. Acontece o mesmo com Sinatra — que aliás detestava os Beatles.

          No caso de Ray Charles, eu concordo. Durante muito tempo achei que a sua versão de Eleanor Rigby era a única decente — além de uma versão em reggae da mesma música que eu nunca soube de quem era. Mas há coisa boa por aí.

          Agora, olha que coisa linda Elvis fez com Little Sister e Get Back:

          • É verdade, Little Sister e Get Back ficaram bacanas, pena que é no ensaio e curtinho. Deveria ter uma versão de estúdio.

            Sobre a dramaticidade exagerada da interpretação do Elvis em algumas musicas – principalmente no período Vegas – o Art Garfunkel também reclama disso na versão do Elvis de Bridge Over Troubled Water.

            • Rafael: esqueci de te falar. Uma coisa que eu achei legal neste clip acima é a voz diferente, mais aguda e com mais vibrato, que o George Harrison faz no dueto, deixando e musica, mais viva e diferente da gravação que eu conhecia.

  2. Eu li recentemente um livro sobre a lenta deterioração da relação entre eles e foi um troço muito complicado. Essa história tem que ser melhor contada mesmo.

    • Qual livro, Marcus?

      O mais engraçado é que esse processo durou pouco mais de um ano, ano e meio. Já vi casamentos que passaram mais de 20 nesse processo. 🙂

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