Fui assistir ontem a “Star Wars – O Despertar da Força”.
Primeiro, uma sensação estranha: a projeção digital deixa a imagem absolutamente limpa. Vão longe os tempos em que arranhões e sujeira davam uma personalidade gauche a um filme, especialmente às cópias mais antigas e surradas. Isso é certamente o sonho realizado de qualquer cineasta ao longo dos últimos cem anos, mas ao mesmo tempo torna a experiência de ir ao cinema, que há tempos vem se tornando uma estranha para mim, mais asséptica. Cada vez mais, ver filmes na minha TV se torna não apenas desejável, mas equivalente.
Por ser uma sessão tardia num domingo, e um tempo razoável depois da estreia, o cinema não estava cheio. Havia fileiras inteiras vazias. E isso me privou — ou poupou — dos gritos aos primeiros acordes do tema de John Williams, daquelas manifestações de emoção coletiva que ajudam a definir e distorcer nos espectadores a percepção de um filme.
Star Wars é um fenômeno muito curioso. Como arte cinematográfica o primeiro era simplesmente ruim. Trama medíocre, atores fracos (com exceção de Alec Guinness se perguntando em cada cena o que fazia ali, enquanto tentava dar dignidade a diálogos que jamais se elevam acima do clichê), Star Wars nunca foi mais que um pastiche óbvio de 50 anos de filmes de aventura. Não tem sequer a dignidade do arquétipo bem consolidado.
Mas um filme não se resume ao que está no celuloide. Mesmo ruim, Star Wars consolidou o processo de renovação do cinema como indústria e comércio, revigorando um setor que até então vinha lidando muito mal com a concorrência da televisão.
Acima de tudo, ele tinha algo único e novo. Deu início a uma nova era, a dos efeitos especiais e da estética como principais elementos do filme: a primazia absoluta da forma sobre o conteúdo. Sua importância jamais poderá ser superestimada.
Star Wars é ainda mais curioso por ser um fenômeno de construção a posteriori. Com o seu sucesso estrondoso e a possibilidade de extensão em novos filmes, novos elementos foram introduzidos com o carro andando; em “O Império Contra-Ataca”, Darth Vader se tornou pai de Luke Skywalker; em “O Retorno de Jedi”, Leia se tornou sua irmã. Mais tarde, quando Lucas percebeu que o filão era maior do que ele pensava, virou uma trilogia desde criancinha e logo depois criou-se a ideia de que deveriam ser nove filmes. Apareceu também um verniz de Joseph Campbell para dar algum pedigree intelectual a uma mera cópia de filmes B. Tudo isso foi possível porque, como história, Star Wars era tão rarefeito que admitia camadas e camadas de novo reboco teórico. É admirável: Star Wars é uma obra em andamento.
(É talvez o mais espantoso na legião de fãs de Star Wars: a maneira como acreditam no grande caô inventado aos poucos por George Lucas, ou como se referem à inspiração em Kurosawa como algo único, como se o japa não estivesse presente em tantos filmes, principalmente de estudantes de cinema como Lucas. Mas nestes tempos a cópia se tornou valor digno e mesmo louvável.)
Então chegamos a “O Despertar da Força”, caminhando célere para se tornar a maior bilheteria da história. Vai conquistar esse marco mesmo sendo um filme ruim.
A história é conhecida, porque é a mesma. Começam da mesma forma: uma mensagem secreta dentro de um robô que não fala. O resto é basicamente adaptação de um velho roteiro aos novos tempos. A atriz principal agora é uma mulher — ou melhor, pelo menos dos próximos filmes, porque este é um filme de transição e por enquanto Harrison Ford ainda é o astro — e o outro é negro. Há mais diversidade no elenco. Há mais cuidado com as piadas e com a representação das minorias. A Disney, louca para recuperar logo o investimento na Lucasfilm, coloca o velho para introduzir o novo: Han Solo ainda pilota sua nave e Luke Skywalker virou Yoda. E no que é talvez o único personagem minimamente decente do filme, Darth Vader Kylo Ren é um millennial torturado e mimado que, quando contrariado, prefere dar chiliquinhos e quebrar tudo a estrangular pessoas. Mesmo vilões de alma negra têm sentimentos complexos hoje em dia.
A maneira como o filme representa o contexto político é vergonhosa, ainda mais medíocre do que o primeiro. Toda e qualquer esperança de coerência e verossimilhança política foi abandonada. A tal Resistência, numa excrescência única, parece ser uma espécie de poder paralelo com vida própria, que não faz nenhum sentido num tempo de República restaurada — República que por sua vez parece só existir em um planeta e se acaba quando ele é destruído, coisa que até agora não consegui entender. Nesse aspecto, os filmes feitos entre 1999 e 2005 são melhores. Por precisarem explicar em três episódios um final já conhecido, deram uma certa densidade narrativa ao processo que resultou em Darth Vader. Neles a instalação do Império, inspirado na Roma Antiga, faz mais sentido que a ascensão da tal Primeira Ordem. Uma República tão incompetente merece mesmo ser varrida do mapa, junto com esses Jedis que não fazem nada direito — se alguma lição pode ser tirada de um filme tão acéfalo, é a de que a Força só se realiza mesmo no seu lado negro.
Enquanto o primeiro Star Wars, em toda a sua mediocridade, trazia uma série de novidades, “O Despertar da Força” é uma Hollywood esgotada, em sua pior forma. Representa o abandono total do esforço por novas ideias e faz do que deveria ser um filme de verdade uma tentativa canhestra de apenas reembalar um produto antigo para um novo público.
Seu problema não está apenas na falta absoluta de alguma criatividade. Está principalmente no fato de que a adaptação aos novos tempos é medíocre, inferior ao que se faz hoje em dia.
Em 1977 não havia nada como Star Wars. Mas o passar do tempo trouxe inovações no modelo instituído por ele, e pode-se ver o clímax atual desse processo no último Mad Max: argumento parco, exuberância visual, ritmo incessante. “O Despertar da Força” sequer consegue se alçar a esse patamar. É mais um entre tantos filmes de ação de praxe, e seu sucesso baseia-se apenas na vontade dos fãs de serem enganados a qualquer custo.
Claro que cinema é isso, é escapismo, é indústria. É manipulação de emoções. Mas deve ser também arte, ou pelo menos ter alguma ambição além de vender; este filme não é nada disso. Não há nenhum valor artístico em “O Despertar da Força”. Há o clichê elevado ao décimo grau, há a cópia ruim, uma peça que parece ter saído de uma linha de produção de segunda e concebida por um comitê pouco brilhante em sua crença de que tecnologia substitui ideias. A única coisa realmente boa é que, pelo menos, aqui não há mais os bonecos de Jim Henson que ajudaram a fazer de “O Retorno de Jedi” uma espécie de Muppet Show espacial.
“O Despertar da Força” recebeu elogios de uma crítica que se diferencia cada vez menos de meros reprodutores de press releases. Ainda assim, as coisas parecem passar dos limites quando as pessoas se emocionam com um esquema tão rasteiro, tão pasteurizado.
Dizia o barbudo que a história se repete como farsa. Mas não sei se ele, algum dia, imaginou quão felizes e anestesiadas, embrutecidas, as pessoas viriam um dia a embarcar nessas farsas.
Gosto da expressão “opinião é ‘que nem’ cú, cada um tem o seu”. Nada mais perto de um cú do que essa visão distorcida do que é Star Wars para o cinema, para a literatura, para o comércio (licenciamento de produtos) e para a mitologia do Campbell, que foi, sim, consultor das trilogia original. Medíocre é a internet e seu culto à opinião amadora.
Isso pra não falar dos comentários. Essa internet é uma coisa. Mas, ahn… Você disse “literatura”?
“Como filme, o primeiro era simplesmente ruim.” Muito obrigado.
No jargão hollywoodiano, o novo filme está mais para ‘reboot’ do que ‘sequel’. Convenhamos que o o ritmo da trilogia original é lento demais para prender a atenção do público atual (no qual me incluo). Precisavam de algo mais acessível para renovar o público da franquia – e nisso o filme é obviamente um grande sucesso: honra o original como “indústria e comércio”.
Eu havia comprado o ingresso 1 mês antes da exibição…, chorei ao ver as icônicas letras subindo…., mas o filme foi ladeira abaixo….
Star Wars VII foi reciclagem ao máximo.
E preparem-se, pois a Disney vai fazer pelo menos 1 filme por ano dessa franquia.
E a pipoca ainda estava murcha.
Gostei da sua crítica. E de fato, você foi certeiro: inaugurou um cinema onde a forma está acima do conteúdo. Não é arte, é o mais puro divertimento juvenil.
Quanto à política do filme, se entendi bem o que li sobre as adaptações escritas do filme (como é “novelization” em português mesmo?) e outros materiais conexos, a tal Primeira Ordem é mesmo um vestígio do Império (pensemos na República de Salò) que assinou um pacto de não-agressão com a República reconstituída, que, por sua vez, cansada de guerra/ desejosa de aproveitar os dividendos da paz, decidiu não levar a Guerra até a rendição final das antigas forças imperiais. While England Slept, Peace for Our Time, etc. — eu enxergo aí verossimilhança (e quanto aos Jedis não fazerem nada direito, Tyler Cowen escrevera que nos prequels Anakin Skywalker realmente cumpriu a profecia de que ele traria equilíbrio à Força, afinal ele participou da eliminação dos Sith encrenqueiros e dos Jedis trapalhões, cujo grupo no final não é reconstituído e deixa de perturbar a Galáxia– aparentemente, a nova trilogia vai estragar isso também). Alguns ex-rebeldes da linha-dura, Leia Organa principalmente, decidiram criar uma força (a Resistência) para continuar vigiando e– quando necessário– combatendo a tal Primeira Ordem, com o apoio (às vezes mais que apenas) moral da Nova República, que claramente teve mais de um planeta (junto com os recursos econômico-militares correspondentes) destruído pela nova arma dos vilões. Confesso que não consegui entender durante o filme se (dados o nome Resistência, a impunidade com que os vilões fazem e acontecem, invadem, capturam e massacram civis e o desespero de todo mundo para achar Luke Skywalker) se afinal estávamos de volta à situação do primeiro filme, um punhado de rebeldes desvalidos enfrentando uma força do Mal imensa e aparentemente onipotente, ou se a maior parte do filme simplesmente se desenrola no território dominado pelos vilões por azar. Acho que a grande diferença entre os prequels e O Despertar da Força é que a política estava no centro daqueles, eles eram basicamente a história do putsch do Imperador e de como ele criou seu mais poderoso lugar-tenente enquanto que agora ela é só mesmo o pano de fundo para mais aventuras interplanetárias à Flash Gordon. A comparação mais justa talvez fosse entre o filme mais recente e a trilogia original, mas não só a situação nesta era simplíssima, ela era também meio simplória: no final, aparentemente, tudo que faltava era os Rebeldes acreditarem em si mesmos já que eles não só conseguiram montar um ataque fulminante à mais importante fortaleza/arma definititva do Império, matar o Imperador e boa parte dos outros líderes, mas–somos levados a supor no final– derrubar o Império, coisa que eles não tinham conseguido durante décadas de luta, mesmo quando o Império ainda não tinha Estrela da Morte nenhuma. Comparando com isso, O Despertar da Força é até bem realista (dá para imaginar uma dissolução mais ou menos organizada do Império, como aconteceu com a URSS, embora eu tenha a impressão de que os livros do Universo Expandido da série tratem de outras possibilidades, como guerras entre as facções do Lado Sombrio, clones do Imperador, etc., etc., etc.).
Enfim, como arte, deixa um bocado a dever (mas como o dono do blog não cansa de lembrar, a trilogia original também), mas, sem dúvida, deu aos fãs o que eles queriam. Em se tratando, de Hollywood com suas constantes decepções (os próprios prequels servem de exemplo), já é muito.
Rafael, dois pontos:
1- Eu não sou nenhum especialista em Star Wars , mas até aonde me lembro, na época ainda não se dizia franquia, o projeto de serem seis, ou nove, filmes sempre existiu, desde a estreia do primeiro.
2- Você escreveu: “Força só se realiza mesmo no seu lado negro.”. Ultimamente eu tenho achado que na vida real também é sempre assim.
Corrigindo: “A Força só se realiza mesmo no seu lado negro.”.
A esqueci; agora todo filme, serie e assemelhados tem que ter uma mulher fudidona, quando todo mundo sabe que mulher tem qualidades especiais, mas força física e agressividade não está entre elas, já que a vida real mostra isso todos os dias. Essa gente Hollywood parece besta querendo que uma linda menina, por mais preparada que seja, vá conseguir encarar um homem super forte na pancada. Façam o favor! Ainda se fosse uma especial vá lá, mas agora é em todos os filmes, ou serie , (Mad Max, The Blacklist, etc,) tem uma destas.
Esse escritores de Hollywood parecem retardos. Já reparam que em qualquer filme quando alguém chega perto de uma pessoa consertando um carro, por exemplo, a pessoa que está consertado sempre fala “me passe essa chave” e isso eu já vejo isso a trinta anos; vá ser debiloide assim lá longe.
Levando em conta que o Rocky Balboa derrubou o Ivan Drago, qualquer Chuck Norris da vida massacra o Exército do Vietnã todo, nenhum dos milhões de vilões geniais e psicopatas ainda teve uma ideia que fizesse a Gotham City um milésimo do estrago que bin Laden fez a NYC na vida real e ninguém ainda percebeu que Clark Kent é o Superman, acho que o desempenho das heroínas do cinema está mais ou menos no terreno da Suspension of Desbelief. Talvez o pêndulo tenha ido mesmo para um extremo ( http://www.precociouscomic.com/archive/copperroad/2010/03/04 ), mas confesso que engulo com mais facilidade do que os tempos em que uma das únicas personagens com superpoderes era deixada para trás ( http://thejrtthoughts.blogspot.com.br/2013/11/wonder-woman-messed-up-golden-age.html ) na hora de lutar. Na pior das hipóteses, a heroína de cinema média está para a mulher média como Batman (físico perfeito, conhece todas as formas de arte marcial, supercientista, “o maior detetive do mundo” e, claro, riquíssimo) está para nós, homens comuns.
Eu gostei e concordo com sua colocação Thiago. Realmente num universo onírico tudo é possível. É que eu dou aula de defesa pessoal para mulheres e sei o que é possível ou não e as vezes acho que o cinema é meio sem noção. Não estou falando de mulheres com superpoderes como a Mulher Maravilha ou a Mulher Gato, claro, mas as comuns. Mesmo a Gina Carano, ou a Ronda Rousey, (velozes e furiosos 6 e 7) que são lutadoras profissionais, não podem lutar com homens da mesma categoria e peso no ringue, imagina acima. Mas eu entendi, cinema é cinema. Abraço cara1
Aí é que está: a Mulher Gato (o mesmo vale para a Batgirl) na maior parte das versões é tão sem poderes quanto o Robin. No Universo do Batman, problemas psicológicos e uma fantasia são o bastante para transformar qualquer um em super-herói ou supervilão. Verdade que as façanhas dela (antes uma simples ladra astuciosa) foram ganhando contornos mais físicos, mas o Batman de hoje também é mais brigão (certamente, menos barrigudo) que o da série de 1966.
“que eu dou aula de defesa pessoal para mulheres”.
Nunca teria adivinhado. Deve ser muito interessante.
Abraços.
É interessante e muito útil sim Thiago, é algo como bater rápido e forte em lugares de alta sensibilidade e sair correndo e gritar muito pedindo ajuda. Já ouviu falar de Krav Magá?, é uma customização para mulheres.
Até aonde eu sei a Batgirl é igual ao Batman, mas a Mulher Gato recebeu super poderes dos gatos, tais como super agilidade, visão, etc. Posso estar engando mas… vide a Mulher Gato da Michelle Pfeiffer.
Pode bem ser, eu não me lembro bem do desempenho da Mulher Gato da Michelle Pfeiffer, pode ser que, além da identificação com gatos, ela tivesse mesmo superpoderes. No caso dela, nem sei isso a tornaria mais verossímil ou não, afinal, ela era uma secretária tímida e desengonçada que sofreu um colapso nervoso depois de ser atirada pela janela pelo patrão, foi acordada e despertada por um bando de gatos e, em vez de procurar um médico, um policial e um advogado trabalhista (de preferência, nessa ordem), foi fazer justiça com as próprias patas.
https://www.youtube.com/watch?v=UqStvc107-M Perto disso, o método Peter Parker de arranjar superpoderes parece mais lógico e seguro.
Acho, entretanto, que a maior parte das versões da Mulher Gato, nos quadrinhos, no cinema, nos desenhos, no seriado de 1966 etc. não possui superpoderes.
“Já ouviu falar de Krav Magá?, é uma customização para mulheres.”
Já ouvi, sim. Infelizmente, parece ser muito útil– adoraria poder dizer que não vejo motivo nenhum para uma mulher (ou quem quer que seja) querer tomar aulas de defesa pessoal, mas não dá, né?
“Acordada e despertada por um bando de gatos”, não. Eu quis dizer “ccercada e despertada por um bando de gatos”. Que, sei lá, podem bem ter dado poderes para ela (não assisti ao filme, mas parece que um gato deu poderes à Catwoman que Halle Berry interpretou no cinema), sinceramente não entendi a transição dela de vítima a vilã/justiceira– se foi a queda, o trauma psicológico, os gatos.
É isso ai Thiago. Abraço!
Abraço!
Não sou fã de Star Wars, apesar da trilha do Willians. Também não consigo ver referência de Kurosawa no filme, pelo menos não tão evidente como nos spaghetti westerns de Sergio Leone (desse eu gosto).
“Neles a instalação do Império, inspirado na Roma Antiga, faz mais sentido que a ascensão da tal Primeira Ordem.”
O Império pode até ser inspirado em Roma Antiga, embora a única semelhança pareça ser a tirania, mas o processo de instalação do Império, para a maior parte das pessoas, provavelmente se parece mais com a criação da ditadura nazista, aproveitando a luta entre facções políticas na Alemanha, a insatisfação das pessoas com a paralisia do governo e a fraqueza dos gabinetes, a existência de uma suposta ameaça às instituições (o comunismo), encarnada no incêndio do Reichstag, e a suposta necessidade de medidas centralizadoras (a Lei habilitante de 1933), e fazendo uso de ataques para eliminar simultaneamente vários elementos considerados perigosos (Noite dos Longos Punhais).