Estou impressionado com o fato de The Beatles: Eight Days a Week – The Touring Years, de Ron Howard, estar sendo considerado por jornais no mundo inteiro — inclusive alguns que respeito como o Guardian — como um dos bons filmes do ano. Devem ter visto um filme que eu não vi.
Para quem acompanha a história dos últimos 25 anos de lançamentos em vídeo da Apple Corps., Eight Days a Week não traz novidades além de algumas imagens inéditas, incluindo uma versão porcamente colorizada do primeiro show nos EUA, em Washington. É a versão sanitizada e embelezada que os Beatles decidiram deixar para a posteridade, um filme superficial que apenas reconta pela milésima vez a versão oficial.
É uma oportunidade desperdiçada. Com um pouco mais de rigor Eight Days a Week poderia fazer uma análise da evolução — ou retrocesso — da banda na estrada. Poderia lembrar, por exemplo, que em 1966 as pessoas já não lotavam completamente os grandes estádios que uma banda que não mais fazia sequer questão de tocar certo encarava com enfado e às vezes medo.
Em vez disso Eight Days a Week tenta cumprir o seu papel na mitificação absoluta banda, enfatizando, por exemplo, a sua recusa em tocar para audiências racialmente segregadas. É talvez o único ponto positivo do filme, ao lembrar que, ao contrário do silêncio de praxe que eram obrigados a fazer sobre questões polêmicas, como a guerra do Vietnã, os Beatles se pronunciaram ativamente contra a segregação nos EUA. Obviamente, tudo é tão inflado que chega a passar a impressão de que a segregação só acabou porque os Beatles queriam.
Um documentário decente sobre esse período jamais poderia deixar de dar ao menos um vislumbre do lado sombrio, pouco recomendável das turnês. Das autoridades locais que eram obrigados a bajular, as pequenas humilhações a que precisavam se submeter. Ou, principalmente, das orgias de sexo e drogas que tinham lugar nas excursões, e a que Lennon se referiu em sua fase iconoclasta como uma cena de “Satyricon”. Dos “pedágios sexuais” que tietes pagavam a roadies e managers para terem uma chance de dormir com os seus ídolos — naquele momento, para aquelas pessoas, eles eram os reis do mundo, mais famosos que Jesus Cristo, e a fé requer sacrifícios. Faltam até mesmo anedotas clássicas, como George Harrison na Mansão Playboy levando duas coelhinhas para o quarto — o rapaz tinha bom apetite.
O filme sequer menciona Jimmy Nichol, o baterista que substituiu Ringo, doente, em alguns shows na Austrália. A essa altura, acreditando piamente na versão que vieram construindo ao longo dos últimos 45 anos, Ringo sequer deve se lembrar do medo que sentiu ante a possibilidade de ser substituído definitivamente, como Pete Best antes dele. A julgar pelo filme, esse medo nunca existiu porque ninguém jamais ouviu falar de Pete Best.
Esse é o problema mais grave desse conto de fadas póstumo: a tentativa de obliteração total da presença de Pete Best, seu primeiro baterista, da história da banda.
Pete Best foi defenestrado em agosto de 1962, quando George Martin, depois do primeiro teste na Parlophone, avisou que iria usar um baterista de estúdio nas gravações. A história diria que a banda tomou essa decisão porque Best não combinava com aquele monstro de três cabeças que, naquele momento, eram John, Paul e George; porque Ringo era melhor baterista; e porque havia algum tempo que queriam tê-lo na banda.
Tudo isso é verdade; mas não foi o fator determinante. Os Beatles chutaram Pete — sem sequer terem a decência de falar isso a ele: confiaram a tarefa a Brian Epstein — porque entenderam que naquele momento ele estava atrapalhando o seu caminho para gravar um disco. Botaram o coitado para fora para poder entrar no mercado fonográfico, e dificilmente o teriam expulso se não houvesse aparecido a oportunidade e a justificativa. Lennon e McCartney não podiam vender a mãe porque elas já tinham morrido; venderam Pete Best.
Ao negar a Pete Best seu papel na história dos Beatles e ignorar a sua existência, ou admitir esse ponto ético tão baixo, Eight Days a Week falseia a história dos Beatles. Porque Best era quem estava nas baquetas quando os Beatles definiram sua formação definitiva (bateria, um baixista canhoto e dois guitarristas) e desenvolveram o seu estilo, tocando oito horas por dia em Hamburgo. Foi ele quem passou por todo o processo de aprendizado ao lado de John, Paul e George (e de Stu Sutcliffe, também deixado de lado pelo filme). Não interessa o que digam agora: Best era tão beatle como Lennon ou McCartney, para todos os efeitos. Foi em protesto contra a sua saída que os fãs no Cavern deram a George o olho roxo que ele ostentou envergonhadamente na gravação de Love Me Do.
As pessoas vivem perguntando quem é o quinto beatle. A resposta é simples: Ringo. O quarto foi Best.
Pete Best foi um dos primeiros cadáveres que os Beatles deixaram ao longo da estrada em sua caminhada muitas vezes implacável em busca do sucesso; depois viria Mal Evans, e Brian Epstein morreu pressentindo que seria mais um deles.
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Acompanha o filme uma nova edição do Live at the Hollywood Bowl. O disco lançado à revelia da banda em 1977 (para enfrentar o lançamento, pela Lingasong, do The Beatles Live! at the Star-Club in Hamburg, Germany; 1962), tinha 13 faixas com canções gravadas em três shows diferentes, em 1964 e 1965, e uma capa elegante e simples. A reedição, naturalmente remasterizada, traz quatro faixas bônus, é apresentada mais ou menos como a trilha do novo filme e traz uma nova capa, a mais medíocre de toda a história da banda.
Apesar da remasterização ser excelente e o disco soar muito melhor agora, é um lançamento insuficiente em 2016. Dá para entender a escolha feita por George Martin em 1977, diante das limitações técnicas do material à sua disposição. Mas um relançamento do Hollywood Bowl, para fazer sentido hoje, poderia incluir os três shows na íntegra; até mesmo o de 29 de agosto, em que houve graves problemas com os microfones. Se você quiser ouvi-los, procure por The Beatles – The Complete Hollywood Bowl Concerts nas redes da vida.
Se preferir ver os meninos em ação, no YouTube alguém fez o impossível: juntou fontes diversas e criou um filme do show inteiro.
Mas solução ainda melhor seria fazer um novo disco, uma trilha real e adequada para acompanhar o filme. Algo mais abrangente, que cobrisse toda a trajetória dos Beatles em shows ao vivo.
O disco que eu faria seria simples. Começaria com uma gravação de Baby Let’s Play House, feita no dia em que Lennon conheceu McCartney. Algumas gravações de 1960 na casa de McCartney, como Hello Little Girl e I’ll Follow the Sun. Passaria para uma seleção de canções gravadas no Cavern em 1962: Kansas City, Catswalk, One After 909 e uma preferida minha, um ensaio de I Saw Her Standing There com John na gaita. Algumas faixas do Star Club, cujas gravações agora pertencem a eles. Depois, o show no London Palladium que marcou o início da Beatlemania. Daí para gravações do primeiro show nos EUA, e uma série de canções das tantas e tantas turnês de 1964 e 1965 — de preferência aquelas que nunca tenham aparecido em disco oficial, como If I Fell; incluiria, claro, Lennon insultando a audiência, como em Atlanta. Em seguida, algumas gravações dos shows no Budokan, no Japão, e canções do Candlestick Park, o último show da última turnê dos Beatles. Incluiria então as versões de Revolution e Hey Jude apresentadas na TV inglesa, e terminaria com os takes não usados do show no telhado.
Na verdade qualquer um pode montar esse disco, ou um mais adequado às suas próprias preferências. Todo esse material está disponível na internet. É o que faz esses lançamentos da Apple menos frustrantes. Por mais inepta que seja a maneira como estão lidando com o material disponível — por exemplo, adiando ao máximo o lançamento da versão restaurada do filme Let it Be, ou deixando de seguir a minha sugestão e dar o material bruto para o Scorsese fazer outro filme —, a internet nos redime.
Sempre leio com atenção seus posts sobre os Beatles. Só uma coisa que eu não entendi direito: por que Pete Best estava atrapalhando o caminho dos Beatles para gravar um disco?
Pensando bem, acho que exagerei um pouco. Não era exatamente empecilho para gravar um disco, ao menos o primeiro (até porque aquele já estava garantido, independente de Martin): mas para continuar gravando.
Quando George Martin disse que não importava como fizessem nos shows, mas nas gravações ele iria usar bateristas de estúdio, acredito que os Beatles sentiram que isso era um problema para o seu futuro. Acho que adivinharam corretamente que uma carreira que já começava assim não iria longe: iriam ficar à mercê do produtor. Se o preço para garantir o futuro da banda fosse chutar o pobre Pete, que assim fosse.
O curioso é que quando chegaram para gravar Love Me Do, Martin já estava com Andy White a postos. Martin acabou alternando os dois bateristas take após take. O resultado é curioso: White aparece na versão do LP Please Please Me, enquanto Ringo tocou na versão do single, que hoje está no Past Masters.)
Eles poderiam ter feito isso com Pete Best. Ele não era, nem de longe, um mau baterista, as gravações que sobreviveram mostram isso. Prefiro Ringo, claro: Best era meio chegado a uns floreios, enquanto Ringo estava mais preocupado em fornecer uma base sólida para a banda. MAs Pete era baterista suficiente para a banda.
Mas há algo mais grave. Uma banda é uma unidade. Mais tarde, os Beatles ficariam conhecidos por serem impenetráveis até mesmo para Brian Epstein e o próprio Martin. Uma banda com mais hombridade naquele momento ficaria ao lado de Pete. Você não larga seus amigos à toa. 🙂
Rafael: você diz “Poderia lembrar, por exemplo, que em 1966 as pessoas já não lotavam completamente os grandes estádios” e isso é surpreendente vindo de um grande fã como você. Fora isso no decorrer do post você faz mais algumas declarações do mesmo calibre. Você sim é um verdadeiro iconoclasta, que aliado ao seu profundo conhecimento respeito da banda The Beatles da alta credibilidade todo material que você posta. Parabéns!
Complementando: eu nunca pensei, até pelo senso comum (Ringo: um mau baterista e o homem mais sortudo do do mundo), que o Ringo Star pudesse ser um baterista melhor o Peter Best, principalmente pra gravar em estúdio.
Tá, eu vou morder a isca. 🙂
Ringo é um excelente baterista. Tem pelo menos três qualidades fundamentais que o fazxem grande. A primeira é a solidez absoluta. Não importa quanto tempo a música durasse, ou quão diferente fosse: os Beatles saberiam que Ringo estaria lá, marcando o tempo com absoluta precisão, sem errar um compasso. A história diz que os Beatles raramente perderam um take —se perderam — por um erro de Ringo. E essa é a função primordial de um baterista. A economia e a contenção de Ringo foram fundamentais para manter a atualidade da maior parte das canções do Beatles, provavelmente a banda com o menor número de gravações datadas, paradas no tempo.
A segunda é um estilo e um som muito próprios. Talvez se deva o fato de ser um canhoto tocando um kit para destros, o que o faz inverter as mãos. Não sei. De qualquer forma, a maneira como preenchia as canções, o uso elegante dos pratos e chimbaus, representam um estilo bem próprio. De vez em quando bateristas dão workshops e utilizam as gravações de Ringo para mostrar como as canções dos Beatles soariam diferentes com outro baterista. Mais pobres, sempre.
A terceira é uma inventividade discreta mas surpreendente. Só como exemplo – há vários –, ouça A Day in the Life. Ringo dá uma série de pequenas viradas ao longo da música. Nenhuma delas é igual à outra. Ringo foi fundamental na definição de uma das maiores qualidades dos Beatles: a maneira como cada canção era encarada em termos de inventividade e necessidade, a maneira como eles sempre entenderam que a banda deveria se adaptar à canção, e não o contrário como em virtualmente todas as bandas de rock.
Acho, aliás, que deriva daí grande parte dessa avaliação comum e negativa de Ringo. Enquanto em outras bandas, como o Who, o baterista soltava fogos de artifício, Ringo estava lá, quieto, dando à canção exatamente o que ela precisava.
A gente pode compará-lo com dois bateristas considerados geniais, e certamente muito mais “efusivos” que Ringo: John Bonham e Keith Moon.
No caso de Bonzo, um baterista genial, há um pequeno problema: ele era previsível. Ouça pela primeira vez uma música do Led Zep e você saberá exatamente o que ele fará, na maior parte das vezes. Sabe onde fará uma virada e sabe como ela será. Isso não quer dizer que ele seja menor por isso: se eu tivesse a banda dos sonhos, seria Bonham o meu baterista.
Já Keith tem um problema grave: ele era incontrolável. O Who teria se beneficiado muito com um pouco de contenção e versatilidade de Moon. Pete Townshend certa vez comentou que nunca pôde escrever uma balada para o Who porque Keith não conseguia tocar daquela forma.
Agora procure por aí o que os ex-beatles falavam de Ringo.
Quanto a Pete Best e Ringo, é só ouvir as gravações existentes; há várias gravadas pelos dois, a começar por Love Me Do. Pete não tinha a solidez nem a criatividade de Ringo. E tinha vícios bobos, uns floreios desnecessários, um amor excessivo a rufar a caixa.
Rafael, não era isca, era realmente uma pergunta e você a respondeu com a sua exuberância cognitiva de sempre no que tange a The Beatles. Muito obrigado! Abs.
Eu fui influenciado, acredito que por ignorância pelo que você relata acima, pela resposta do John Lennon a pergunta se ele achava o Ringo o melhor baterista do mundo, ao que ele respondeu “eu não acho o Ringo nem o melhor baterista dos Beatles”. Segundo dizem, Lennon achava o Paul melhor baterista que o Ringo.
Eu também já acreditei nessa frase. Achava que ele tinha dito isso não como julgamento de Ringo, mas como espetada em Paul, cujas críticas foram um dos motivos que fizeram Ringo sair da banda em 1968.
Mas a verdade é que essa frase simplesmente não existe. É lenda da internet.
A propósito, eu ouvi com fone de ouvido, em estéreo, A Day in the Life e a bateria do Ringo executa tudo o que você disse com brilhantismo, e, além disso, o contrabaixo do Paul é matador neste música.