Deve estar fazendo por esses dias dois anos que a CosacNaify fechou.
Na época, achei engraçadas as reações desoladas das pessoas, lamentando o final da editora e até fazendo parecer que ali terminava, também, a grande aventura editorial brasileira. Me lembraram imediatamente as pessoas que volta e meia lamentam o fechamento de um ou outro cinema de rua.
Acontece sempre, seguindo invariavelmente o mesmo roteiro: ninguém ia mais àquela joça, porque uns preferem os cinemas de shopping e outros, como eu, descobriram os prazeres torpes e baratos da pirataria numa TV de tamanho suficiente. Mas todos parecem querer que o cinema vazio continue ali enfeitando a cidade, como se por um passe de mágica e ainda que caindo aos pedaços, e agora choram como se perdessem um grande amigo; no caso, um amigo pobrinho que não viam há décadas e do qual mal lembravam o nome.
Se uma editora fecha não é apenas porque as contas não batem, porque normalmente já passaram desse estágio há tempos: mas porque a situação se tornou insustentável. Editoras — todas elas, sem exceção — são antes de tudo o resultado do trabalho de abnegados. De gente que ama livros, que se realiza na labuta editorial e quer compartilhar esse amor com outros. Gente esperta que quer dinheiro vai para o mercado de ações, vai vender tomate na feira; o mercado editorial é o reduto de dons Quixotes que têm uma visão própria, necessariamente elitista do mundo — mesmo quando esse elitismo se traduz virtuosamente na oferta de bens culturais melhores para as massas.
Nisso o papel do Charles Cosac, como o de qualquer outro editor, é invejável e necessário. Mas é preciso também lembrar que ele está longe de ser o único, ou mesmo tão importante assim.
Contei agora os livros da CosacNaify que tenho. Não chegam a dez, sem contar alguns que comprei para dar de presente e dos quais ainda lembro. A maior parte é Faulkner; a Cosac foi a sua melhor editora no Brasil, sem nenhuma sombra de dúvida, soltando edições impecáveis dos livros mais importantes do cachaceiro sulista. Eram bons a ponto de me fazer substituir algumas das antigas edições da Nova Fronteira que eu tinha.
Porque o cuidado da CosacNaify com o produto final era impressionante. Não apenas com a apresentação material, com o visual, as capas e contracapas, o papel e a tipologia — qualidades estéticas que, desconfio, eram o principal atrativo para as carpideiras de agora; um livro da Cosac na mesinha de centro chama mais a atenção dos visitantes incautos. O que realmenet interessa é outra coisa: um livro de Faulkner editado por ela não contém erros, traz a melhor tradução possível e uma revisão rigorosa. Não se pode pedir nada mais de uma editora.
Mas havia uma diferença gritante e fundamental entre a CosacNaify lançando uma nova edição de “Este Lado do Paraíso” com um cuidado editorial invejável, papel tão legal, capa dura com um projeto gráfico moderno e elegante, e Monteiro Lobato reinventando o mercado editorial brasileiro, ou Ênio Silveira ousando publicar Ulysses em português. Assim como há uma diferença entre a Martin Claret possibilitando o acesso a obras clássicas e Alfredo Machado investindo no mercado de massa. Nomes como José Olympio, Ênio Silveira têm uma importância infinitamente superior na formação de um mercado editorial brasileiro, pelo pioneirismo e, sim, pela ideologia que os motivava. Por legal que a CosacNaify fosse, seu legado não é realmente tão importante quanto a coleção “Cantadas Literárias” da Brasiliense nos anos 80.
E então lembrei dos anos 80, os bons anos 80 — na verdade anos de merda, mas o tempo passa e doira o passado, então a partir de hoje essa década miserável passa a ser “os bons anos 80”.
Naqueles bons anos 80, a editora que me apaixonava era a Companhia das Letras — pelo menos até o início dos 90, e eu certamente não estava sozinho nessa admiração. Acho que o impacto produzido por ela em seu tempo foi muito maior do que o da Cosac. O volume de boa literatura que a Companhia das Letras trouxe a partir do seu lançamento é impressionante. Não tenho nenhuma dúvida de que foi a editora mais importante desse tempo — mesmo lembrando que a Brasiliense oferecia à juventude da época um material inestimável, em muitos aspectos mais ousado. Depois a Companhia das Letras se tornaria uma editora grande, e isso acarretaria as escolhas comerciais necessárias que a colocam em outro patamar. Mas naquele momento, editando Edmund Wilson, John Cheever, Dorothy Parker, Georges Perec, uns tantos por aí, a editora do Luiz Schwarcz era invejável e fundamental para o cenário cultural do país.
Basta compará-la à CosacNaify para entender o óbvio: a Cosac era uma editora elitista demais. E não pretendia ser outra coisa. Isso nem longe a desmerece; ao contrário, se se deixar de lado o tanto que há de demagogia populista naquela tal de literatura para as massas, há que se reconhecer que uma editora como ela é necessária.
Havia algo de imensamente lúdico nos livros dela. Comprei “Zazie no Metrô” numa das tantas promoções porque gosto do filme do Malle mas nunca tinha lido o livro. Depois de ler, acho um livro superestimado; mas o conceito gráfico desenvolvido pela Cosac, com a estética dos cartazes de rua da época intercalando as páginas (que me forçaram a malabarismos razoáveis, já que eu jamais cortaria o papel para ver o material gráfico — que energúmeno seria capaz de algo tão monstruoso?) dão um valor ao livro que, cá entre nós, o enriquece e o valoriza. Não é fundamental; mas acrescenta algo ao mundo.
Havia rigor técnico, uma vontade de fazer o melhor produto possível, algo que deve ser sempre aplaudido. E digo isso mesmo admitindo que, por ver livros de outra forma, seu material não me fazia ter vontade de gastar dinheiro demais. Lançaram uma bela edição de “Bartleby, o Escrivão”, com uma abordagem de manuseio que extrapola o “mero” ato da leitura? OK, mas isso não me faria comprar um livro que já li e que poderia ser comprado por uma fração do preço cobrado pela nova edição. Era simples assim.
Por essas coisas, durante anos não me importei muito com a CosacNaify. Para piorar, o primeiro contato que tive com ela foi através de uma entrevista numa dessas revistas semanais, provavelmente a Época, aí pelo final dos anos 2000. Um perfil do Charles Cosac mostrava um sujeito elitista além do socialmente aceitável, com uma visão de cultura que, digamos assim, extrapolava a minha. A partir daquele momento, vi no sujeito um esteta rico, meio delirante que podia se abandonar aos seus devaneios; ele me parecia um daqueles playboys cariocas dos anos 50, que passavam as noites na Vogue gastando um dinheiro que não ganharam e se tornavam a matéria da lenda do Rio de Janeiro. Ou melhor, uma visão extemporânea e deslocada de Des Esseintes, ou um Jacinto de Tormes.
(Charles Cosac me lembrava um artista plástico que conheci algumas décadas atrás. Pintava quadros de nítida inspiração clássica, o tal pintor. Ticiano antes de Modigliani, Rafael antes de Bacon. Parecia viver no século XVIII. E em seu primeiro vernissage lá estava ele, envergando um trench coat e uma echarpe em pleno calor aracajuano — senhora, senhor, o calor de Aracaju sabe ser parecido com o carioca quando quer, acredite no que vos digo —, empunhando uma bengala desnecessária e tendo ao lado um menino, vestido como pajem renascentista, que oferecia ao transeunte incauto os seus cartões de visita, tirados de uma caixa de madeira.)
Brincadeira de rico para deleite de rico, era o que eu achava. Mas recentemente, essa entrevista do Charles Cosac me impressionou. Mais que isso, me fez mudar de opinião, e de maneira radical. Vi no Cosac um sujeito necessário, consciente do seu papel. Mais recentemente, depois de ver outra entrevista sua, desta vez à Folha de S. Paulo depois de assumir a direção da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, vi nele um sujeito que o capitalismo moderno tornou redundante e arcaico, infelizmente: o esteta elitista que, paradoxalmente, tem algo a contribuir para a sociedade. E é esse arcaísmo que o torna mais necessário.
(Vi também um sujeito que, depois de esculhambar o Dória e a mulher e aceitar um convite para trabalhar em sua gestão, se saiu de uma pergunta capciosa com astúcia, classe e educação, sem perder o respeito próprio.)
Não é o bastante para me fazer comprar seus livros. Uma edição barata mas correta de Moby Dick, para mim, ainda tem o mesmo valor real que a bela edição da CosacNaify. Eu envelheço e tento me atualizar, talvez um dia até compre um Kindle, mas não preciso e não quero mudar tanto assim. No entanto, é o suficiente para que eu veja a pequena multidão carpindo o fim do seu período como livreiro com um pouco mais de respeito do que tinha até então.
Pelo que sei, as boas coleções de literatura que a Cosac Naify lançou foram ideia do administrador que o Cosac contratou pra dirigir a editora — não lembro o nome dele.
O cara foi contratado pra fazer a editora sair do vermelho e ela até teve uma melhoria financeira publicando literatura.
Pelo Cosac, seria uma editora de livros de arte e só. E nesse aspecto ela era imbatível. Ela publicou obras de altíssima qualidade que nenhum outro editor publicaria.
Depois que faliu, lembraram de uma outra faceta imperdível dela: os livros infantis. Realmente, uma amiga minha tem um sebo com muitas obras infantis dela e são de ótima qualidade. Também o tipo de trabalho que poucas editoras se interessam em publicar, porque tem material mais barato e de qualidade inferior.