Ben-Hur

Eu realmente não sei por que insisto em cometer os mesmos erros, vez após vez.

Ben-Hur”, filme lançado em 2016 e devidamente esperado mim com, digamos, cautela, dava todos os sinais de ser uma pequena tragédia. E mesmo assim, mesmo intuindo o que me aguardava, eu assisti a ele.

Refilmagens são problemáticas quase por definição. O primeiro problema está no seu tempo. O significado e a importância histórica que um filme como, por exemplo, “Psicose” teve em 1960 jamais poderiam ser repetidos em 1999, quando o insano Gus Van Sant cometeu a imprudência de refilmar a obra de Hitchcock. Além disso, contar novamente uma história impõe riscos quase imponderáveis.

A coisa é mais grave quando se trata de um clássico absoluto. Como “Os Dez Mandamentos”, “Ben-Hur” está naquele panteão de épicos que definiram o gênero. Curiosamente, o próprio filme de Wyler é uma refilmagem. A primeira versão, de 1925, foi o filme mais caro feito até então e um sucesso absoluto. Mas tratava-se de um filme mudo e, considerando-se que ainda não havia DVD ou video on demand, provavelmente largamente esquecido trinta e poucos anos depois; no máximo visto apenas por cinéfilos em cineclubes obscuros e esfumaçados, se é que essa espécie degenerada já existia. Nessas condições, uma refilmagem podia fazer algum sentido. Você provavelmente não lembra de Ramon Novarro, o ator que fez Judá Ben-Hur naquela primeira versão (bem, talvez conheça a história do seu assassinato). Mas certamente sabe quem é Charlton Heston.

Deve haver algo de muito grave com as novas plateias, uma corrosão do quociente de inteligência e de discernimento crítico. É só assim que consigo explicar as decisões tomadas pelos produtores e roteiristas dessa refilmagem. Quando vi o trailer do filme, adivinhei pelo que ele deixava antever que seria mais uma idiotice do novo cinema de entretenimento. Eu achava que a única maneira de fazer uma refilmagem fazer sentido seria explorar a natureza homossexual possível na relação entre Judá ben Hur e Messala — ah, a cena do duelo das lanças túrgidas e latejantes… —, um favor que Gore Vidal fez questão de deixar nas lembranças de todo cinéfilo. Poderia, por exemplo, dar outra dimensão à relação de Judá com Quintus Arrius, por exemplo, mais ou menos como Antonino e Graco num filme melhor de um diretor de verdade.

Em parte eu estava errado. Havia outras possibilidades: aprofundar mais a questão da resistência à ocupação romana que serve de base para o filme, ou ainda investigar e dar mais nuances ao tratamento do cristianismo nascente.

De qualquer forma, eu podia ter seguido a minha intuição e evitado assistir a um filme que eu sabia que não poderia estar à altura do recordista de Oscars durante quase 40 anos.

Talvez o primeiro comentário a ser feito seja a respeito da mediocridade de todos os atores. Jack Huston e Toby Kebbel, até há pouco ilustres desconhecidos para mim e a partir de agora nomes a serem inscritos num caco de telha e jogados numa urna, interpretam sem nenhum brilho os personagens principais — uma tarefa especialmente inglória, talvez até injusta, para Huston, condenado a reprisar o papel que um dia coube a Charlton “Cold, Dead Hands” Heston. Rodrigo Santoro faz um Jesus insípido, menos por sua culpa do que pelo papel insignificante que lhe deram, e Morgan Freeman faz o seu arroz com feijão.

Desta vez, “Ben-Hur” começa antes do reencontro do protagonista adulto com Messala. Agora eles são irmãos adotivos, e Messala é apaixonado por Tirzah. Mas ele não é um rebotalho plebeu qualquer; seu avô foi um dos assassinos de Júlio César, porque no mundo cinematográfico de hoje todo mundo tem que ter algum pedigree (num filme quase tão repulsivo, o “Robin Hood” de Ridley Scott, transformaram o velho ladrão em filho do ghost writer da Carta Magna e leal ajudante de ordens dos barões). No entanto Messala é rejeitado pela mãe de Judá, e assim, qual um Julien Sorel de saiote, vai para a campanha da Germânia fazer sua fama e fortuna.

Em Jerusalém, Simonide (que no filme de 1961 só aparece bem depois) trabalha na casa dos Ben Hur e sua filha Ester se casa rapidinho com Judá. É estranho: todo mundo mora em Jerusalém, inclusive um certo marceneiro mais tarde dado a pregações, que você deve conhecer pelo nome de Jesus de Jerusalém (é, aquele mesmo, daquela música de Antônio Marcos: “Vem, irmão / Vamos seguir com fé / Tudo o que ensinou / O homem de Jerusalém”).

O filme até se esforça para dar um pouco mais de profundidade política ao contexto histórico e político da Judéia da época, e esse é o seu único ponto positivo. Mas sem muito sucesso: fica a impressão de que isso serve apenas para explicar de maneira nova o acontecimento que muda os rumos do filme. Originalmente, o atentado ao governador romano foi um acidente; agora é uma tentativa de assassinato por parte de um zelote protegido pelos Ben-Hur.

No filme original, ao salvar do afogamento um tribuno romano que o adota em retribuição, Judá ganha seu salvo-conduto para a vida, o que lhe possibilita empreender sua vingança contra Messala. Agora ele vai direto para Ilderim, que da maneira mais rocambolesca e implausível o deixa na boca da corrida de bigas que, neste como no outro, é o clímax do filme. Para isso Judá volta para Jerusalém e vê que na sua ausência as tragédias não pararam de se suceder: sua mãe e irmã pegaram lepra; e como desgraça nunca vem sozinha, a pior de todas: sua mulher virou cristã.

(Rides, hypocrite lecteur? Não, não riais: imaginai a senhora vossa patroa dando a louca e entrando para a Universal e dando todo o vosso dinheiro ao pastor Genoíldes e para desgraçar tudo vos chamando de “abençoado”. Não, não riais, que de certas coisas não se deve fazer troça.)

Em 1961, a cena da corrida era incomparável. Dirigida magistralmente, editada com brilhantismo, significava um passo adiante na estética dos filmes de ação. Ainda hoje é impressionante; mas neste filme ignóbil é apenas mais do mesmo que se vê em qualquer filme com orçamento mediano. Nitidamente inferior a qualquer filme dos Vingadores, por exemplo, é talvez o melhor indicativo da mediocridade rampante de uma obra que deveria ser evitada como se evitava um leproso.

E a partir daí a coisa desce à sarjeta mais baixa. Tirzah e Míriam (que aqui tem seu nome modernizado para Naomi, sabe Jeová a razão), antes curadas da lepra pessoalmente por Nosso Senhor Jesus de Jerusalém, agora são curadas pela chuva de água benta que cai quando Jesus dá seu último suspiro, como um batismo coletivo desses que a igreja faz por aí.

Mas nada, nada, absolutamente nada pode lhe preparar para a cena final. Judá e Messala fazem as pazes, porque eles sempre se amaram, aquilo era só briguinha de irmão, e agora que o romano está perneta e seu orgulho foi para as galés, toda a raiva e ódio podem ser esquecidos: Ben Hur venceu e Messala só precisava ser humilhado e aleijado para virar gente. E o filme termina com aquela que é talvez a cena final mais abjeta de toda a história do cinema: Judá e Messala cavalgando juntos rumo ao futuro, dois garotos que deixaram o passado para lá e para os quais o futuro é belo e risonho.

Pela primeira vez em uma longa história de salas escuras e TVs de todo o tipo, um filme me deu vontade de chorar de raiva. Porque raras vezes vi tamanho desrespeito a uma obra como essa miséria que merece o opróbrio de toda e qualquer pessoa que goste de cinema ou de literatura, mesmo uma de segunda como a do governador Lewis Wallace. E à medida que os créditos subiam, minha mente se perdeu em vinganças imaginárias. Imaginei uma sequência em que aquela corja inteira morria no Coliseu, na boca dos leões ou no gládio de seguidores de Espártaco. É o único fim merecido para esses novos personagens.

Mas tenho que admitir: eu também mereci. Que isso me sirva de lição e de castigo eterno. Infelizmente não poderei desver, jamais, essa cena final. Mas eu sabia que nada de bom me esperava ali, e por meu próprio erro, pela minha própria inconsequência, pela minha recusa em ouvir o que Jesus de Jerusalém me dizia, decidi ver esse filme, como aquele garoto decide experimentar crack. A culpa é minha, só minha, e vou ter que conviver com ela até o final dos meus dias.

9 thoughts on “Ben-Hur

  1. Não vi o filme, então comento genericamente.

    Por mais que eu ame a Guerra nas Estrelas de George Lucas, e reconheça o talento de Spielbeg, coloco estes dois entre os responsáveis pelo emburrecimento do público. Esse novo formato de filme e de lançamento — arrasa quarteirão — mudou pra sempre o jeito do público assistir cinema.

    Tem outras coisas também, os confortos da tecnologia que prendem as pessoas mais velhas — que antes iam ao cinema — em casa.

    Resultado: agora a vida inteligente está na TV, e pros cinemas só vão os filmes pra garotada assistir sem muita exigencia de contexto.

    Sobre a questão da homossexualidade de Masala, bem, Hollywood conseguiu fazer um filme em que Aquiles é heterossexual…

    • Verdade, Lucas e Spielberg mataram um cinema norte-americano adulto e de qualidade que vinha sendo feito por jovens cineastas emergentes como Coppola, Scorsese, Friedkin, etc. Se bem que eu te diria que os filmes deles são obra de arte comparados aos lixos que se lançam hoje em dia…

      • Marcus e Wagner, eu tendo a concordar com vocês, mas acho que a questão extrapola o modelo blockbuster de Spielberg e Lucas, e a culpa deles é muito menor do que vocês fazem parecer. É bom lembrar, inclusive, que Spielberg fez um dos melhores filmes dos anos 90, “A Lista de Schindler”, além de um número até razoável de filmes de qualidade. Acho que o fenômeno do blockbuster se deve mais a uma resposta necessária da indústria à prevalência TV do que a alguns diretores.

        Quanto à geração de Coppola, Friendkin e etc., eu sou muito cético em relação a isso. Uns anos atrás eu tive uma discussão longa aqui com o Bia, sobre o livro do Biskind que fala deles: http://www.rafael.galvao.org/2010/05/easy-riders-raging-bulls/

        (Dei uma olhada no post. Está datado: de lá pra cá Scorsese parece ter se recuperado.)

        Também sou um pouco cético em relação à vida inteligente na TV e não no cinema. De modo geral acho que a linguagem se esgotou, e que algumas séries (num mar de coisa ruim) estendem essa linguagem por um pouco mais de tempo. Mas a última coisa a realmente me impressionar veio do cinema, Dogville.

        Quanto à homossexualidade em Hollywood, acho que a coisa é mais complicada ainda. Já faz algum tempo que Hollywood tem uma abordagem altamente progressista em relação ao tema. Eu acho mais fácil dizer que a abordagem é complexa como a sociedade que ela tenta alcançar.

        • Concordo com muita coisa que você escreveu naquele post. O autor em questão inclusive endeusa Bogdanovich, que eu considero um “one-hit wonder”.

  2. Não vi e já não tinha gostado antes de ler seu post, agora então… De modo similar, foi feito um remake de “Assassinato no Expresso do Oriente” pelo Kenneth Branagh. O filme de 1974, com Albert Finney, Ingrid Bergman, Sean Connery, Lauren Baccal e Jacqueline Bisset era bom, embora não excepcional. Para que refazer com um elenco anos-luz aquém? De fato, os produtores se aproveitam da ignorância abissal da nova geração. Será que daqui a trinta anos teremos remakes desses filmes debilóides de super-heróis que estreiam a torto e adireito?

  3. Um afterthought: será que alguém ousará refilmar o sublime “Testemunha de Acusação” dirigido por Billy Wilder e estrelado por Charles Laughton, Marlene Dietrich e Tyrone Power? Lembrando que “Sabrina” foi assassinada há cerca de vinte anos, com Harrison Ford, Greg Kinnear e Julia Ormond interpretando os personagens que haviam sido de Bogart, William Holden e Audrey Hepburn.

  4. Eu também sofro dessa mesma doença. Mesmo sabendo que o filme iria ser uma bomba eu fui assistir assim mesmo (e no cinema!).
    Resultado: o filme é tão ruim que nem lembro muito.

  5. Eu vou voltar aqui sóbrio. Parei na parte do Jesus de Jerusalém e juro que eu achei que você tava dizendo que Jesus era de Jerusalém. Sério. Levei uns dois minutows pra entender. Se beber, não leia, já dizia o poeta. Venho durante a semana terminar de ler.

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