Andei fazendo as contas, noite dessas.
Eu vejo filmes há 40 anos. São mais de 14 mil dias. E assim cheguei ao número de uns 8 mil filmes assistidos.
É na verdade uma estimativa muito conservadora, mas segura. Lembro de tempos em que chegava a assistir a três filmes por dia, eventualmente até mais. Mas também lembro de períodos em que assistia a pouca coisa, ou de semanas em que não via nada, por impossível. Muitas vezes revi filmes que já tinha visto, e não foi só Casablanca; tem um número de filme bobos aí que eu não gostaria de lembrar.
Assim, 8 mil é um número razoável, garantido para não chegar ao exagero. Há números mais assustadores que esse. Devo ter passado mais de 40 mil horas desta ainda curta vida diante da TV, o que inclui, além dos filmes, seriados, desenhos animados, telejornais e até — credo em cruz três vezes — novelas da Globo.
Não lembro da grande maioria dos filmes que vi. Espontaneamente, devo lembrar de algumas poucas centenas. Diante de títulos e sinopses, talvez lembre de uns poucos milhares. Mas certamente há filmes de que jamais vou lembrar, mesmo que sente para assistir novamente, principalmente aqueles que deixaram impressão apenas mediana. São os males do excesso, é verdade, mas para que me enganar: é principalmente um reflexo da idade. O tempo passa e joga o desimportante fora. É muito tempo desperdiçado, tempo em que poderia ter lido Finnegan’s Wake, por exemplo, ou encarado “Guerra e Paz” com mais seriedade e sem apelar para mais momentos de leitura dinâmica do que jamais admitiria, e que não admito agora. (Woody Allen: “Fiz um curso de leitura dinâmica e li ‘Guerra e Paz’ em vinte minutos. Tem a ver com a Rússia.”)
Devem ser essas horas assistindo a filmes que me fazem ter a impressão de que o cinema morreu.
Já há alguns anos deixei de ir regularmente ao cinema, um passatempo maravilhoso do século XX que os anos 2000 tornaram desnecessário, às vezes até desagradável. Meu sonho sempre foi ser um velho chato, e certamente estou conseguindo. Infelizmente, uma das primeiras vítimas dessa ancianidade foi um dos hábitos de que eu mais gostava em meus verdes anos. Em grande parte, claro, isso aconteceu porque cinemas se tornaram ambientes menos ricos para mim. Mas principalmente porque acho que não há muita coisa que valha a pena aparecendo nos cartazes.
Como linguagem, o cinema parece ter se consolidado há muito tempo, mais ou menos como um revólver é uma máquina perfeita há uns 100 anos, sem possibilidade de avanços estruturais. Excelentes, até mesmo brilhantes filmes se fazem aqui e ali, porque afinal de contas cinema é, principalmente, contar histórias (que o finado Godard não me veja falando isso). Na verdade, o número de bons filmes lançados a cada ano não é, hoje, menor que há 60 anos. Se assim parece para alguns é porque eles esquecem que, para cada “Intriga Internacional” lançado em 1959, foram feitos dezenas de The Oregon Trail, e mesmo uns Plan 9 From Outer Space. Quem fala que “os velhos tempos é que eram bons” é idiota ou não sabe o que fala; na melhor das hipóteses é alguém que não consegue se desprender de padrões definidos quando ainda conseguia aprender alguma coisa. O resultado é um número justo de filmes melhores que a maioria na época de ouro de Hollywood, ou da França ou da Itália.
Mas quase por definição, não conseguem alcançar as alturas a que o melhor dessas épocas conseguiu chegar, ao menos em relação ao seu tempo e ao que veio antes.
O problema real é que há muito tempo não se vê, ao menos de maneira consistente, uma grande ruptura, algo que leve o cinema um novo patamar. O último filme que me impressionou nesse aspecto foi Dogville, em que o Von Trier reduziu o cinema ao que ele pode ter de mais básico, uma experiência fascinante que, paradoxalmente, só era possível porque não havia mais barreiras a serem quebradas; fora isso, o que se vê são apenas construções bem ou mal feitas sobre uma estrutura já secular. É possível ver hoje “A Paixão de Joana d’Arc”, de Dreyer, e encontrar nele o mesmo senso de frescor estético que se teve quando ele foi exibido há 90 anos, entender exatamente o que faz dele um filme revolucionário; não se encontra mais isso por aí.
De certa forma, o último grande avanço tem a ver com o uso da tecnologia, e esse é talvez o maior indício de seu esgotamento. O CGI possibilitou o surgimento e consolidação dos filmes de super-heróis. Mas em pouco menos de 15 anos esse gênero se estratificou numa repetição constante de fórmulas e clichês, e ao menos para mim, hoje, acabam lembrando que o cinema oferece menos possibilidades de co-participação criativa do que os quadrinhos.
(Explicando: nos quadrinhos, grande parte da ação era criada pelo leitor. Entre um quadro e outro havia um vácuo que lhe possibilitava imaginar como o Batman ou o Superman ou o Homem Aranha tinha chegado ali. É isso que o cinema lhe entrega pronto, e a briga agora não é mais para lhe fazer ver o que você não tinha imaginado, mas lhe mostrar como isso foi feito de maneira como você não tinha imaginado. É a diferença entre o substantivo e o adjetivo.)
Cinema está cada vez mais chato, é essa a verdade.
De um lado, os blockbusters americanos repetem ad enjoum a fórmula do bombardeio insistente dos sentidos utilizando, para isso, as ferramentas possíveis: música repetitiva em tons menores e frequências estranhas, edição rápida, movimentos de câmera inovadores possibilitados pelos drones e ronins da vida, efeitos especiais cada vez mais próximos da perfeição. Do outro, outras cinematografias parecem tentar ainda realizar no cinema o equivalente a uma literatura que trata cada vez mais do minúsculo, que se esmera em investigar repetidamente as mesmas miudezas da vida porque a forma do grande romance clássico se esgotou ainda antes de Joyce.
Não é à toa que hoje se diz que a criatividade está na TV, nos seriados que os canais pagos exibem. Isso é apenas meia verdade: os seriados podem ser grandes exemplos de dramaturgia, mas a forma em si tem quase cem anos; não há realmente inovação, em nenhuma delas. Game of Thrones pode ser maravilhoso, mas o que há de revolucionário em relação aos seriados da Republic e às telenovelas, além do conhecimento, da tecnologia e das mudanças estéticas e narrativas acumulados paulatinamente ao longo dos tempos? O que é Mad Men além de uma novela bem gravada?
Eu sempre tive um orgulho bobo, como aqueles sujeitos que enchem o peito para dizer que conseguem comer 20 hambúrgueres, ou que podem mexer as orelhas: sempre fui capaz de dizer em que década um filme havia sido feito em menos de 3 segundos. Pela textura do filme, pela intensidade e espectro das cores, pela edição, pelos movimentos de câmera, pela música, ou pelas roupas, penteados e maquiagem. Mas isso não é mais possível, porque neste século parece que tudo isso foi uniformizado, e confesso que fui derrotado pelo século XXI, e agora vou ter que me contentar com alguma outra coisa, e estou pensando em me especializar em joguinhos de mesa de bar com palitos de fósforo.
Bom, é a vida – e a morte também. O romance, dizem, também morreu. O futebol. O xadrez. O comunismo. O liberalismo. O Cristianismo (sério, segundo um conservador americano, o Cristianismo, ou pelo menos a influência pública dele, morreu com a derrota da Confederação). Até Oscar Niemeyer morreu.
As histórias em quadrinhos, o jazz, os cinemas francês e italiano, a F1…
Eu sou mais ou menos da sua idade. De 2000 pra cá eu devo ter ido ao cinema umas vinte vezes. Ir pra ver filmes de super heróis ou na melhor das hipóteses um Woody Allen fazendo versões pioradas de seus clássicos? Tô fora! Mesmo o cinema italiano, que eu tanto amava, acabou. Só sobrou o Paolo Sorrentino, mesmo assim já se repetindo.