Mesóclises

O Serge e o Thiago, nos comentários ao post anterior, me fizeram lembrar de alguns aspectos da língua escrita nas revistas em quadrinhos d’antanho. Por uma dessas coincidências da vida, andei pensando nisso ultimamente.

Nos últimos anos baixei o que pude de revistas antigas digitalizadas. Principalmente do final dos anos 70, início dos 80, e principalmente da Disney — porque essa, antes de tudo, é uma viagem nostálgica. Mas também de outras épocas, anos 50 e 60 e 2000, e me impressiona a maneira como os diálogos mudaram.

Nos anos 50 e 60 a linguagem era excessivamente dura. Não acho que tenha visto um “cáspite” nas revistinhas que baixei, porque isso era coisa do Tex, se lembro bem; mas tenho certeza de que havia um sem-número de ênclises. E não duvido que até mesóclises pudessem ser encontradas numa fala simples do Pato Donald.

O mais grave é que eu acho mesóclises bonitas. Quase passei a gostar do Temer por causa delas. Neste blog, se elas aparecem, é certamente de maneira irônica, porque eu sou um frouxo incapaz de desafiar as normas da escrita conscientemente (só inconscientemente, mas isso tem outro nome: ignorância); mas elas são bonitas, porque a língua não precisa ser simples, sempre. Ela precisa dar ao menos um espaço possível para ir além. É a diferença entre a Sétima Sinfonia do alemão surdo e a Melô do Não Sei Qual do Bonde do Sei-Lá-o-Quê. E que concisão: um ato, um objeto, um tempo contidos no mínimo espaço necessário. Em vez de “você vai fazer aquilo”, “fá-lo-ás”.

Nos anos 70 a linguagem nas revistinhas começou a se soltar. Volto a elas daqui a pouco. E a partir dos anos 80, assim como enfiaram o Zé Carioca num boné com a pala para trás, também aderiram de maneira decisiva ao coloquial. Quadrinhos mais adultos, tipo super-heróis, ousaram muito mais, mas eles se dirigem a outro público. O que interessa é que a linguagem utilizada então, se ainda correta, já não diferia tanto da língua falada por gente comum.

Quando deixei de ler revistas Disney elas ainda se mantinham nesse nível. Não sei como estavam até deixarem de ser publicadas em Pindorama. As revistas mais recentes que li, geralmente de super-heróis, abusam da informalidade, da tentativa de transcrição da língua das ruas. E usam um bocado de palavrões.

Eu realmente tenho problemas com o uso excessivo de palavrões. Acho que são desnecessários. É engraçado ver essa pudicícia em mim mesmo: escrevendo isso, fico me achando um daqueles sujeitos que é contra a legalização do aborto mas enfia Cytotech na namorada quando ela engravida. Eu falo palavrões o tempo todo, tenho uma das bocas mais sujas que conheço, e para mim qualquer substantivo e qualquer adjetivo podem ser substituídos por algum deles. Na verdade eu não acho que não se deva usar palavrões nunca na língua escrita; só acho que devem ser usados com moderação. A força do palavrão está na sua transgressão, em sua imprevisibilidade.

(Claro, um gramático lexicógrafo semântico semiótico desses tipos novilíngua poderia dizer que isso é a língua em transformação, que o palavrão de ontem é a moeda corrente de ontem. Foda-se.)

E aqui voltamos aos pontos levantados pelo Serge e pelo Thiago.

Eu não aprendi a ler com os quadrinhos; foi minha mãe que me ensinou, antes do tempo normal. E não tenho certeza de que eles colaboraram demais para o pouco que entendo de português. Colaboraram, e muito, para a minha cultura geral; mas quanto à intimidade com a última marafona do Lácio eu realmente não sei, porque nessa época havia um bocado de livros de que eu gostava e dos quais não esqueci até hoje. Talvez esteja sendo injusto com o Tio Patinhas, talvez queira lembrar de mim mesmo lendo mais livros do que realmente li. Eu não sei.

Mas acho que a linguagem utilizada nos anos 70 ainda respondia a algumas das âncoras do português culto sem deixar que elas a prendessem a um passado que, se existiu realmente, já fazia muito tempo. As ênclises eventualmente estavam lá. E tenho certeza de que quem as lia tinha mais facilidade em falar e escrever corretamente.

Eu não concordo, nunca, com aqueles que adotam uma postura de absoluto laissez faire em relação à língua, que dão validade excessiva aos falares mais incultos. Uma coisa é respeitar o sujeito que fala “nós vai”; outra, completamente diferente, é tentar me convencer que ele está certo. No fundo, isso é reflexo de um paternalismo extremo. Lá está o sujeito que passou por sei lá quantos doutorados, que reconhece na educação formal e no reconhecimento de códigos um valor importante, tentando convencer o sujeito que mal cursou o ginasial que o jeito dele falar “estrupo” é aceitável. Então tá. O que chamam de respeito eu chamo de perpetuação da dominação.

Resumindo, eu acho que são necessários padrões. A função da língua escrita é, principalmente, possibilitar que alguém seja completamente entendido por outros. Agora imagine um texto todo escrito com expressões e termos exclusivamente gaúchos lido por um sujeito do interior do Piauí.

Por outro lado, é cada vez menos incomum para mim achar um sinônimo de algumas palavras mais facilmente em inglês do que em português. Isso não é sinal de proficiência em inglês, é sinal de deficiência crescente no portuga velho de guerra. Como o filho do português que, ao emigrar para Londres — no meu caso, a internet e a Netflix —, não aprendeu o inglês e estava esquecendo o português.

E por tudo isso eu fico cada vez mais pessimista em relação ao futuro da língua. De um lado, uma geração que simplifica em excesso os códigos que nunca dominou e torna aceitável a ignorância. Do outro, uma classe que se aproxima do inglês com a veneração de um melanésio diante de um caixote largado em suas cabeças. Isso não pode dar certo.

5 thoughts on “Mesóclises

  1. Caro Rafael,

    Lá vou eu dar pitaco em coisa que não entendo. Mas tenho alguns amigos linguistas e com eles aprendi algumas coisas (você gosta de inversões também, além das mesóclises? eu gosto). Até onde sei, os linguistas, ou linguistas sérios, implicam com quem implica com os registros fora da norma culta principalmente porque aqueles não percebem (ou não querem perceber ou aceitar) que se trata de formas de comunicação tão válidas quanto a dita norma culta. Estão interessados em conhecer a comunicação humana em suas várias manifestações e, mais interessante, o que todas têm em comum. Se é percebido como paternalismo, é porque não foram bem compreendidos. A intenção é justamente tirar da norma culta a aura de “culta” no sentido de “melhor que as outras”. Pelo menos no quesito *comunicação*.

    Essa visão, que eu acho que é a dominante na linguística, não tem nada a ver com deixar de lado as implicações sociais que determinados registros carregam dentro de si. Falar “nós vai” em vários contextos só vai te ferrar. E é por isso que é uma tremenda sacanagem não ensinar a norma culta a todos, mesmo que continuemos a usar outros registros em nossa intimidade, em bares, campos de futebol. Disso, creio eu, ninguém honesto discorda: a norma culta é capital social.

    Pelo menos, foi isso que aprendi. E talvez eu esteja pregando para convertidos, mas quis deixar registrado.

    • Eu só não gosto de inversões quando elas são usadas como último recurso para uma rima, como naquelas canções da Jovem Guarda. Claro que, como tudo, para mim deve ser usada com moderação.

      Quanto ao resto, acho que você tem razão

  2. Rafael:

    Apenas para constar, você escreve: “Eu não aprendi a ler com os quadrinhos; foi minha mãe que me ensinou, antes do tempo normal”; ressalto que eu, assim como você, também não aprendi a ler com os quadrinhos. Aprendi a ler com mais ou menos 3 anos, com um tio, irmão da minha mãe, que morava em casa e tinha mania de ser professor. Os quadrinhos Disney, apenas melhoram muito o meu português e o meu modo de me expressar, pelo motivos que já citei no outro post.

    No que tange ao restante do seu post, que basicamente trata dessa moda de aceitar ignorância como evolução da língua, eu assino embaixo, pois, esse negócio de ter que ignorar a norma culta e se adequar ao errado pra não ser acusado de disseminar a “moléstia do preconceito linguístico”, também não é comigo. Abraço!

  3. Complemento: por outro lado, utilizar a norma culta do português de forma pernóstica, com termos inusuais, para se fazer de importante, ou especial, também não é o desejável. Minha filha é bacharel em direito e no seu TCC (ou monografia, como se dizia) ela trata justamente do excesso de “juridiquês” pelos magistrados nos tribunais, o que dificulta o entendimento dos processos e decisões pelas pessoas leigas.
    Alias, existe palavra mais pernóstica que a palavra pernóstica?

    • Falando em adevogados, eu tenho a impressão de que esse pernosticismo está ficando demodê entre eles. Era hora.

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