Sempre achei essa história de “pobre do país que precisa de heróis” uma estupidez. Um país sem heróis é um país sem referência e sem identidade, porque são eles que encarnam, de maneira simples e intuitiva, os melhores valores de uma sociedade. A França tem Carlos Martel, Carlos Magno e Joana d’Arc, os ingleses inventaram o rei Arthur e Robin Hood, Portugal tem seu dom Sebastião já há muito atrasado em sua volta.
O Brasil tem uma característica curiosa — não exclusiva, mas bem forte nestas plagas: temos o dom da iconoclastia absoluta, a necessidade atávica de destruir heróis e ídolos, de apontar seus defeitos antes de qualquer coisa, de desmerecer o que fizeram e dizer que olha, as coisas não são bem assim. Mas os tempos de redes sociais e neo-colonialismo cultural criaram também outro fenômeno, a defesa histérica e algumas vezes totalitária dos valores de grupos inconciliáveis, a seleção de umas lendas em detrimento absoluto de outras.
Quem reclama que o 7 de Setembro ou Tiradentes são figuras de importância histórica criada a posteriori pode dizer o mesmo de Zumbi dos Palmares, fenômeno burilado a partir dos anos 70 para atender à necessidade, então nascente, de um herói negro.
Por isso, o que se sabe de Palmares é muito pouco. Era uma confederação de quilombos espalhados por uma área bem razoável em Alagoas, liderada por Zumbi e destruída por Domingos Jorge Velho depois de anos de confrontos — e isso é quase tudo o que se pode dizer com absoluta certeza.
Aparentemente, seu primeiro grande líder foi Ganga Zumba que, já velho, entendeu o óbvio — eles não poderiam ganhar aquela guerra — e tomou uma decisão que acabaria se revelando fatal: negociou um acordo com Portugal, em que devolvia os escravos fugidos mas garantia a liberdade daqueles nascidos no quilombo, que viveriam em terra própria.
O que ele não entendeu é que o sistema econômico da colônia, baseado na monocultura da cana e na mão de obra escrava, jamais poderia tolerar voluntariamente a existência de um quilombo tão grande (embora fosse obrigada a conviver com quilombos em vários níveis diferentes quando não havia jeito): os senhores de engenho sabiam que Palmares se tornaria uma Xangri-lá, um foco de resistência negra e uma ameaça constante e cada vez mais forte à estabilidade da economia colonial. Além disso, é possível imaginar a resistência a um acordo desses dentro do próprio quilombo; os que seriam devolvidos não estavam muito felizes — e por isso há uma versão de que Ganga Zumba foi envenenado pelo próprio quilombo.
O trato foi feito para ser descumprido, e o quilombola pagou a sua ingenuidade com a vida ao ser atraiçoado pelos portugueses. Zumbi teria se oposto ao acordo e, legitimado pela morte de Ganga Zumba, passou a liderar a resistência.
Mas Ganga Zumba tinha razão: era impossível manter Palmares. O quilombo tinha se tornado grande demais para continuar existindo. O acordo de Ganga Zumba não era desprovido de sentido, mas lutar contra a história é sempre tarefa inglória e com fim trágico para o lado mais fraco.
Depois da destruição de Palmares, Zumbi conseguiu se esconder por dois anos, até que foi finalmente capturado. Sua cabeça foi cortada, salgada e exposta em Recife, para tranquilizar a população e servir como recado aos escravos que caíssem na besteira de sonhar com a liberdade.
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Eu tinha 11 anos quando ouvi falar de Zumbi dos Palmares pela primeira vez. Uma prima, Celina, me emprestou um livro de história — dele só lembro que era volumoso, em A4, e que o texto vinha em duas colunas. Ele trazia a história do líder quilombola que, depois de resistir por anos às incursões dos portugueses, se jogou de um precipício para não ser capturado com vida, fazendo da Serra da Barriga uma espécie de Masada do novo mundo. Um herói maior que a vida, que demoraria três séculos para ser resgatado do oblívio.
O que eu ainda não sabia é que naquele mesmo ano um jornalista chamado Décio Freitas publicava um livro com a história inédita de Zumbi. Ele dizia ter tido acesso a cartas de um tal padre Antonio Melo, que traziam detalhes que ninguém conhecia até então: sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi fora capturado aos 7 anos e criado como Francisco pelo padre Mello, que o ensinou a ler e escrever. Aos 15, fugiu e voltou para Palmares, onde se tornou seu último líder.
É uma história bela e romanesca, diriam alguns. Nesse caso, romanesco deve ter virado sinônimo de mentira, porque essa história era só isso: mentira cabeluda e desavergonhada, daquelas criadas com má fé e canalhice em nome de um ideal nobre.
Ninguém jamais viu essa carta. Ela é, até prova em contrário (e prova simples, um simples mostrar de um documento), uma invenção de Freitas. O fato é que os únicos registros contemporâneos sobre Palmares foram escritos por aqueles que o combateram, e isso quer dizer que mesmo os mais fiéis aos fatos refletem necessariamente a visão, os preconceitos e os interesses daqueles que tentavam destruir o quilombo.
Curiosamente, o próprio Décio, pouco antes de morrer, dizia que Zumbi era radical demais e que a solução de Ganga Zumba era a mais indicada.
Tudo isso, essas idas e vindas, essas versões e contra-versões, reflete muito mais que a rarefação de fontes históricas. Diz respeito à necessidade de fazer de Palmares e de Zumbi um símbolo perfeito para a luta negra, e é essa perfeição almejada o seu grande problema.
Historiadores e militantes de todo tipo tentam fazer de Palmares a concretização de seus sonhos. “Marxistas” se tornam socráticos e fingem desconhecer qualquer ideia de dialética, atropelando quaisquer indícios históricos e senso comum para apontar Palmares como um regime proto-socialista, como se os quilombolas fossem criar ali, do nada, um sistema social que não o que conheciam, na África ou no Brasil. Adeptos das religiões de matriz africana o pintam como um bastião da liberdade religiosa, o que é possivelmente verdade: havia igrejas no quilombo, e é lógico imaginar que não era muito diferente das senzalas; difícil é saber se e como um eventual conflito entre macumbeiros e cristãos se dava. Até o indefectível Luiz Mott resolveu levar Zumbi para “a irmandade”, dizendo ser óbvio que ele era gay, boy magia do tal padre Antônio Melo.
Eu sempre respeitei o Mott, mesmo no tempo em que ele batia boca com o Berbert de Castro nas páginas d’A Tarde. Seu “Sergipe Colonial e Imperial” é um bom livro, dentro do seu escopo; seu trabalho de pesquisa sobre família e sexualidade é elogiado; e sua militância pela causa gay é admirável. Mas o “Zumbicha” é apenas um delírio tropical, como uma fantasia de Clóvis Bornay. Não apenas porque é baseado na fábula de Décio Freitas, mas porque é essencialmente uma grande torção de fatos para que se adeque à agenda do Mott. Ladino, Mott percebe a necessidade de heróis ou, ao menos, de anti-heróis, e Zumbi é dos mais adequados ao atual zeitgeist. Ele o usa para chamar atenção à sua causa, e paradoxalmente acaba catalisando o preconceito de outras minorias, talvez um dos grandes problemas dessas militâncias identitárias.
A questão que incomoda é: o pouco que se sabe de Zumbi já é mais que suficiente para garantir o seu papel na história. Não precisa de invenções nem de falseamentos. Zumbi é um herói, um dos grandes deste país. Mas isso não parece suficiente para aqueles que tentam recriá-lo dentro dos parâmetros éticos e morais de hoje, e então ele precisa se tornar um super-herói moderno, um socialista que abominava a escravidão, livre de preconceitos e muito à frente do seu tempo. Do jeito que andam as coisas, não vai demorar para que se descubra que ele tinha um “pet” que alimentava com ração vegana super-premium.
A anormalidade social da escravidão é um fenômeno histórico recente na história humana, não tem quatrocentos anos. Ela não apenas fez parte de virtualmente todas as sociedades antigas, mas continuava legal em partes do mundo até este milênio. A escravidão no Brasil só foi possível porque primeiro os portugueses, depois os brasileiros encontraram na África um mercado secular de escravos que jamais houve em terras tupiniquins — mercado que negacionistas usam para desculpar a escravidão no Brasil, mais ou menos como um sujeito se desculparia por estuprar uma mulher alegando que ela já tinha sido estuprada antes.
Além disso, a escravidão no país seguiu caminhos que hoje parecem tortuosos, mas que na época eram perfeitamente normais. Quem se espanta por negros forros terem escravos, até mesmo escravos terem escravos, simplesmente não entende o mecanismo econômico que possibilita a escravidão nem as sutilezas sociais deste país e deste povo (embora isso tampouco fosse exclusividade nossa). Nós somos estranhos, e damos um boi para não entrar numa briga e uma boiada para ver como é que a gente ajeita as coisas depois.
Apesar do que os teóricos liberais apregoam, a escravidão não é incompatível com o capitalismo, nem com nenhum outro sistema econômico, e chega a ser quase uma exigência econômica nos setores primário e secundário da economia: lavouras extensivas como a cana ainda exigem mão de obra farta e muito barata para compensar o volume de produção necessário e o baixo preço das commodities — e basta pensar um pouquinho nos robôs que ocuparam as fábricas de automóveis para entender que a escravidão só foi superada porque a tecnologia permitiu a substituição desse tipo de trabalho por outro mais barato e mais eficiente. Os luditas perceberam isso imediatamente. Robôs são os novos escravos, e quando chegar a Inteligência Artificial Geral, se prepare que o pau vai comer.
Tudo isso é para dizer que talvez o maior crime que se comete contra a história deste e de qualquer país é tentar julgar o passado exclusivamente com os olhos do presente. É aplicar um determinado padrão moral ou ético anacrônico a situações que não podiam obedecer a ele. Para piorar, o crescente puritanismo que orienta a discussão social torna cada vez mais difícil falar da escravidão sem afetar, antes, um horror que se quer genuíno, um reboco emocional que é dispensável e até prejudicial. É o que faz gente “estudada” dizer que africanos foram escravizados porque eram negros, implicando um racismo que na verdade é consequência da escravidão.
Quando matilhas de militantes identitários atacam qualquer um que fale disso, elevando, por exemplo, pessoas como o jornalista Leandro Narloch a um patamar que eles não merecem, fazem um desserviço à história de Zumbi. Seria injusto exigir de um homem do século XVII a compreensão de mundo própria do século XXI. Fazer isso é tirar dele seu valor, é desconsiderar o seu papel histórico e sua grandeza em seu tempo, é quase como achar que, sendo o que foi, ele não podia ser um herói.
Mas o debate sobre racismo, cada vez mais tisnado por nuances identitárias nascidas num regime acadêmico cada vez mais insular e estrito, que distorcem (ou, se preferirem a nova queridinha vernacular, “ressignificam”) os objetivos finais da luta negra, e por uma progressiva infantilização potencializada pelas redes sociais, tem feito com que isso se torne cada vez mais um debate obscurantista para surdos.
Às vezes desconfio que isso acontece também porque, de outra forma, ficaria difícil acomodar tantas vozes. Todo mundo tem que ser ouvido, a opinião de todos — inclusive a deste velho blogueiro comunista que só entende mesmo de balançar na rede — vale alguma coisa. Ficou feio dizer que alguém não sabe o que está falando, ou que está falando besteira. E mais importante do que debater passou a ser a conquista da aceitação do maior número de pessoas possível dentro de sua bolha. Porque embora digam que a grande obra do Diabo foi fazer as pessoas acreditarem que ele não existe, a verdade é que seu pulo do gato foi fazer as pessoas acharem que sua opinião, qualquer que seja, importa.
Se até o “Jesus Cristo Deus” foi
inventado séculos após a sua morte, imagine o resto.
“a escravidão não é incompatível com o capitalismo, nem com nenhum outro sistema econômico”
Basta trocar a palavra “chicote”, por “salario mínimo”, que a compatibilidade aparece.