Até umas semanas atrás eu não fazia ideia de que compartilhava o mesmo ar poluído e os mesmos tempos estranhos com um jogador de vôlei chamado Maurício Souza. Agora não paro de pensar nele e na estupidez política que vem cercando uma frase sua.
Maurício Souza era um bolsominion insignificante e de intelecto limitado, me perdoem a redundância. Viu a notícia de que um Superman iria ser apresentado como bissexual e se manifestou nas redes sociais, lamentando o fato e torcendo o nariz para os rumos que a sociedade vem tomando. Na melhor reação a essa bobagem, ele foi chamado de “fiscal de cu de desenho”.
Até aí nada demais. Independente da definição e interpretação do crime de homofobia, Maurício não ofendeu diretamente ninguém. Apenas expressou uma visão de mundo preconceituosa e burra. Posso estar errado por não entender de leis, mas acredito que a ideia de liberdade de expressão, que vem sendo torcida à direita e à esquerda, se aplica a isso.
Mas Maurício caiu na mira dos justiceiros sociais, esse pessoal cheio de adjetivos fortes que parece passar os dias diante de uma tela procurando um alvo fácil na internet para linchar — ou “ressignificar”, não sei bem.
O que se viu depois parecia um retorno aos bons tempos do senador Joseph McCarthy e seus interrogatórios no Congresso americano, no fim dos anos 40. O jogador Fred, do Fluminense, curtiu o post — talvez por solidariedade de classe, talvez por comungar dos mesmos valores, não pretendo saber — e uma colunista do UOL pediu imediatamente o boicote dos patrocinadores do seu time, a demissão, o diabo. Pouco depois o filho de Tite se meteu no imbróglio e, imediatamente, ela fez a mesma coisa.
A moça parecia a Salomé, toda hora pedia uma cabeça.
Maurício perdeu o emprego e foi desligado da seleção brasileira de vôlei. Imagino que ela e os outros justiceiros tenham ido dormir felizes, limpando o sangue de suas cimitarras virtuais. O problema é que o mundo gira e eles não conseguem ver.
Agora Maurício, que tinha 200 mil seguidores no Instagram, tem quase 3 milhões. É procurado por partidos para se candidatar a um cargo político. Hoje, Bolsonaro o levou ao cercadinho onde o seu gado se espoja na baba da estultície.
A extrema direita ganhou um mártir da livre expressão, e ainda melhor, sem ter precisado fazer nada por isso. É essa miopia estúpida desses justiceiros que impressiona e preocupa.
Maurício é um idiota, mas não se deve esquecer que ele expressou o descontentamento de uma parcela significativa, se não majoritária, da população brasileira. Gente conservadora, incomodada com a conquista de direitos por minorias porque isso altera o status quo ou, mais importante, valores atávicos que acalentam desde sempre, passados de pai para filho ou adquiridos nos bancos duros das igrejas.
O busílis do bagulho é que essa gente é conservadora, mas não necessariamente se mobiliza contra o avanço social. É aquela grande massa informe que vê o progresso passar enquanto resmunga, desconfortável. Gente que oferece resistência mínima, nunca organizada, e que no fim do dia acaba aceitando de cara feia o mundo que a cerca.
Mas no caso do Maurício, 2,5 milhões de pessoas pelo visto acreditaram que ele simboliza não um direito dado a outros, mas um direito tomado deles, o de manifestarem sua opinião desde que não ofenda diretamente ninguém, e resolveram tomar uma atitude simbólica, dando apoio tácito a alguém que julgam perseguido.
O problema é que isso não vai ficar no simbolismo tão caro a esses justiceiros.
Maurício Souza não era nada em política. Se tudo correr como a direita espera, vai ser um deputado federal a partir de 2023. Um legislador. Um sujeito que propõe e vota leis. Se até semanas atrás era um cretino inofensivo que resmungava seus preconceitos no Instagram, no Congresso Maurício vai ser uma autoridade que votará contra leis que promovam direitos dos gays, contra o aborto, contra minorias de modo geral.
Ele foi “cancelado” porque não gostou do Superman gay. Agora, Maurício vai poder dizer que leis que protegem gays ameaçam a família brasileira, e ninguém poderá fazer nada porque ele terá imunidade para isso. Mais que isso não consigo desenhar.
Mas os justiceiros do alto do seu pedestal moral, a versão 2020 do “Deus está do nosso lado”, vão continuar acreditando e agindo como se duas linhas idiotas no Instagram e um voto efetivo contra direitos no Congresso fossem a mesma coisa. Dificilmente vão reconhecer que foi o seu totalitarismo, seu descolamento da realidade e sua total imbecilidade política que criaram um novo monstrinho. Para esse pessoal, o que importa é estarem certos e lutar o bom combate; para gente inteligente, o que importa é assegurar direitos de fato. O caso Maurício Souza é importante porque mostra que, mais que garantir avanços, a atuação desses parvos começa a gerar uma reação desnecessária e desproporcional. E também mostra que os tais justiceiros são o outro lado da estupidez generalizada que costumamos ver apenas nos outros.
Para ser sincero, não acho que o efeito prático seja tão grande assim, o que é uma questão diferente da do aspecto moral do cancelamento, que envolve a liberdade de expressão. Os fins não justificam os meios.
Quem não se lembra dos discursos citando Deus na votação do impedimento de Dilma? Todos os afagos na direita evangélica, todas as generosidades, verbas e jeitinhos (lembram-se da encrenca do Templo de Salomão, da bajulação à Record, de Crivella no Ministério?) foram desperdiçados porque os políticos conservadores veem a existência de um governo progressista como um crime de lesa-divindade que deve ser retificado o mais rápido possível. E, nisso, eles têm o apoio de seu eleitorado cativo.
É perfeitamente justo buscar não provocar desnecessariamente as suscetibilidades dos eleitores conservadores porque eles são seres humanos — e, portanto, até prova em contrário, merecem respeito –, são brasileiros — e, portanto, donos também deste país — e também porque eles votam, inclusive para presidente. É perfeitamente sensato buscar, onde possível, acordos e conciliação. Até porque a alternativa é ou o imobilismo ou uma guerra civil seguida de ditadura, de um lado ou de outro. Mas Maurício, se eleito, não vai ocupar a vaga de Voltaire ou de Jean Wyllys na Câmara, e não é só porque um foi francês e está morto e o outro foi eleito pelo Rio de Janeiro e é vivo o bastante para ter deixado o país.
“Uma autoridade que votará contra leis que promovam direitos dos gays, contra o aborto, contra minorias de modo geral.”
Bom, alguém acha que os potenciais eleitores de Maurício elegeriam um defensor do aborto ou alguém muito preocupado com as minorias em geral e gays em especial? A eleição passada levou à Câmara gente contra os anticoncepcionais! Aliás, tentar aprovar o aborto seria justamente a “provocação” ou o toque de avançar que a direita espera ansiosa para capitalizar. Basta ver o auê que o bolsonarismo fez com os esforços do sistema de saúde pública para manter, durante a pandemia, o atendimento dos casos em que o aborto já é legal. Alguém tem dificuldades de imaginar as mensagens exaltadas, atribuindo tudo ao comunismo, a Gramsci e a Paulo Freire? Alguém acha que o barulho seria menor do que o provocado pelo caso Maurício? Alguém tem dificuldades para imaginar o tipo de mentira que os Bolsonaros e o ecossistema de mídia criado e financiado pelo Palácio do Planalto espalhariam e que políticos de direita, desejosos de surfar de novo na onda da indignação moral, repetiriam?
Eu consigo imaginar várias razões para ninguém ser perseguido pelo que pensa, diz ou escreve, exceto em casos de clara e direta incitação à violência ou à violação dos direitos de terceiros (mas lembremos que dia desses Flávio Bolsonaro estava alegremente tuitando sobre propor uma lei que proíba a defesa do comunismo), mas não consigo imaginar nenhuma razão prática para achar que se os “justiceiros sociais” tivessem sido mais judiciosos a vida política brasileira estaria em condições mais saudáveis. Quem quiser aprovar o aborto ou leis em benefício de minorias que vá convencer os eleitores potenciais de Maurício que não há nada de errado com o aborto ou com os gays. Depois que tiver feito isso em Minas, faça o equivalente em mais um ou dois estados populosos da Federação, e Bolsonaro não se reelege.
Thiago, mas esse caso é justamente o de um efeito prático claro. Um nada pode virar deputado porque foi linchado nas redes.
Mas há um outro aspecto que abordei apenas superficialmente aí. O de os exageros identitários gerarem muitas vezes uma reação forte, que talvez pudesse ser evitada. O nível de polarização atual é um reflexo disso.
Do ponto de vista político, essa polarização só interessa mesmo à direita. É ela que tem a força real, emanada de um povo conservador e cada vez mais cansado de política. A tática identitária, baseada na sua superioridade moral e no abandono quase total da ideia de luta de classes, pode até ter efeitos positivos a longo prazo; a curto, tem resultado em Trumps e Bolsonaros.
Lula só se elegeu em 2002 quando fez o PT entender isso e deu os passos necessários para a absorção do centro. Ele soube fazer essa concertação. Por outro lado, Dilma não fazia ideia do que era isso. O impeachment podia ter sido evitado até as vésperas da votação, se não fosse a estupidez política daquela que chamo carinhosamente de “a Anta”.
Você disse que um Maurício Souza não vai ocupar a vaga de um Jean Wyllis, mas a conta não é tão cartesiana assim. A maior parte do eleitorado não tem fidelidade a nenhum espectro ideológico. Olha a votação de Jean: 13.018 votos em 2010, 144.770 em 2014, 24.295 em 2018. Posso lhe garantir que os 120 mil votos que perdeu entre 2014 e 2018 não foram para o Chico Alencar.
O que eu quero dizer é que os potenciais eleitores do Maurício podiam sim, votar em alguém que defendesse causas progressistas. Até porque o voto proporcional é pior que puta ruim. Ao contrário de eleições majoritárias, ideologia desempenha papel minúsculo nas eleições. Ainda menos em casas midiáticos como o do Maurício.
Finalmente, você tem razão ao não dar destaque demasiado às consequências da atuação dos identitários, nem o post os aponta como fundamentais. A política é muito maior que isso. Mas olhando para o horizonte, é preocupante eu eles ocupem cada vez mais espaço, e suas ações comecem a ter efeitos práticos.
Cara, sinceramente eu não sei… até segurei o impulso de comentar pra reler dias depois e pensar melhor. Eu tendo a concordar com o Thiago Ribeiro aí em cima: as pessoas que votarão nele votariam em outro que defende as mesmas merdas. Além disso, qual a alternativa? Deixar essa escória falar e fazer o que quer sem contraponto? Não é um perfil de internet lido por 30 pessoas, é um jogador da seleção brasileira de vôlei. Por mais que a popularidade teja longe do futebol, não é simplesmente um carinha falando besteira na internet. Até onde vejo (e aqui eu falo como leigo em direito), nesse caso específico não foi cometido nenhum crime, mas as pessoas têm todo direito de não gostar e cobrar providências do clube e dos patrocinadores. Esse tipo de pressão me parece bem legítima, e aí o clube e as empresas decidem se querem associar seu nome a quem faz esse tipo de comentário. Lembrando que ele teve oportunidade de se retratar e fez um deboche em vez de pedir desculpas, o que pros patrocinadores eu imagino que seria o suficiente, já que só pressionaram o clube pela demissão justamente depois do vídeo de desculpas. Se a consequência é ele ganhar seguidores, talvez eleitores, fazer o quê? Não sei, sinceramente
Grilo, respondo o mesmo que respondi ao Thiago: de modo geral, não é a ideologia que move eleitor de deputado. Dependendo, nem mesmo de presidente: basta olhar quanta gente votou em Bolsonaro e agora vai votar em Lula.
E não é deixar a escória falar. É entender o que é política e o que são direitos das pessoas, e saber como falar.
Não gostar dos rumos que a sociedade está tomando no aspecto de gênero é um direito do Maurício. Achá-lo um idiota é um direito meu. Linchá-lo porque pensa diferente, sem que ele tenha ofendido ninguém diretamente, na minha opinião é errado, mas até aí tudo bem. Agora, atacá-lo pessoalmente, cobrar sua demissão, etc., passa de limites que as pessoas institivamente estabelecem, e gera um medo simples: se eu falar algo que não gostem, vão fazer isso comigo?
Essa é a tática dos puritanos americanos que resultou em Trump, de uma esquerda que se elitizou, deixou de falar com os pobres e substituiu os temas sociais por um identitarismo que tem cada vez menos a ver com conquistas reais e mais com reconhecimento e autoestima, como diz o Mark Lilla.
E se não por uma questão de valores, que se entenda essas coisas por uma questão de prática política. Independente do que achamos, o fato é que a extrema direita talvez ganhe um deputado que só existe por causa dessa atuação. Ele foi criado pela esquerda.
A propósito, no lugar dele eu também jamais pediria desculpas. Pelo contrário.
E o tal “Get Back”, você chegou a ver? Apesar de todo esse frenesi em torno dele, eu não estou animado. O “Let It Be” é terrivelmente chato, custa-me acreditar que algo derivado do material bruto deste documentário possa ser bem.
*Possa ser bom…
Oi Rafael,
Você tem Twitter ? Como saber dentre tantos homônimos ?
Queria muito.
Abraço,
Nelson
Oi, Nelson. Tenho, @RafaelGalvao, mas não uso.