Quem lê este blog há mais tempo do que é saudável talvez lembre que eu votei contra a proibição da comercialização de armas de fogo no referendo de 2005, porque antecipei o meu voto aqui.
Relendo esse post, percebi que continuo subscrevendo a maioria dos argumentos expostos ali. De lá para cá, no entanto, algumas coisas mudaram. A legislação foi modificada, calibres antes restritos ou proibidos foram liberados, o movimento armamentista ganhou corpo e até fundou recentemente a versão brasileira da NRA, o ProArmas. Bolsonaro foi eleito prometendo colocar uma arma na cintura de todo brasileiro, e seu convite foi ouvido por 57 milhões de idiotas.
De modo geral a agenda armamentista não apenas ganhou importância no debate público, mas avançou de maneira inédita. E o mais triste é que boa parte da culpa pertence à esquerda.
Há alguns meses, Lula fez uma declaração expondo o que, até onde vi, é a sua única proposta no campo da segurança pública: vai “tirar as armas que Bolsonaro colocou nas mãos das pessoas”. Não custa lembrar que durante o governo Lula, em que pesem os tantos avanços, a população carcerária no país disparou, e que o que há de relevante nos decretos de Bolsonaro diz respeito apenas aos CACs.
A verdade é que, infelizmente, se de um lado a direita tem um projeto claro de segurança, que essencialmente consiste em enxugar gelo reprimindo o varejo do tráfico de drogas e matar preto pobre, noves fora a esquerda não tem nenhum além de um amontoado de generalizações e defesa de princípios gerais cada vez mais distanciado da realidade. As armas de fogo, então, são fetichizadas e usadas como o inimigo eleito, porque é mais fácil fazer isso.
Até os anos 90 esse não era grande motivo de debate. A posse de armas de fogo, algo normal e necessário no interior do país, não era um aspecto central das vidas das pessoas. As regras eram simples: quem achava que precisava e preenchia os requisitos básicos comprava seus revólveres na Mesbla e depois os deixava enferrujar em cima de um armário.
Mas o crescimento da violência urbana, aliado a uma falta geral de ideias que não o recrudescimento do aparelho repressivo do Estado, fez com que algumas pessoas achassem que se tirassem as armas das pessoas comuns a coisa ia melhorar. O problema era o tresoitão; não dá para tirar dos bandidos, então vamos tirar dos outros.
Teve início então uma cruzada proibicionista que mudou as coisas. O então deputado pelo PT Eduardo Jorge apresentou um projeto de lei (o PL 2246/1991) confuso e mal escrito que proibia o porte de armas a praticamente todas as pessoas, inclusive policiais fora de serviço. Mas era o segundo artigo que mais incomodava: na prática, proibia totalmente a posse de armas no país. Quem tinha seu .22 em casa seria obrigado a entregá-lo ao Estado.
O projeto de lei foi arquivado, mas foi o ponto de partida para uma reação que, de lá para cá, vem fazendo a alegria da extrema-direita.
Porque agora ela tinha uma causa: a garantia de um direito que parecia prestes a lhe ser tomado, o direito à defesa em um momento em que o crime saía de controle. É uma causa incontestável, fortalecida porque o Estado não sabe o que fazer com criminosos armados além de amontoá-los indiscriminadamente nas cadeias. Em grande parte isso se deve ao fato de que a esquerda tem dificuldades em pensar a questão da segurança pública, espremida entre a consciência da necessidade inegociável de princípios básicos de civilização — aquilo que as “antas de bem” chamam pejorativamente de “direitos humanos”, e os querem exclusivamente para “humanos direitos” — e a pressão de tempos em que a violência adquire contornos que extrapolam os livros de sociologia, e em vez de raciocinar prefere reagir de maneira emocional, dogmática e covarde a essa questão.
É essa histeria que os armamentistas utilizam como justificativa para o que chamam de resistência, e que a esquerda só consegue combater com uma visão limitada, covarde e muitas vezes ignorante do que é segurança pública. O resultado é um debate desonesto de ambos os lados.
Basta olhar a maneira como ambos os lados exploram informações parciais ou falsas. Desarmamentistas, por exemplo, alegam que as armas legalizadas vão parar nas mãos dos bandidos, o que é menos comum do que parece (e parecem achar que eles realmente se armam roubando armas legais, como se há dez anos civis pudessem comprar fuzis AR-15), ou que todo mundo vai se matar em brigas de trânsito. Armamentistas exploram o pânico em relação à violência e escondem os números que não lhes interessam (por exemplo, em um universo de 170 mortes diárias com armas de fogo no país, latrocínios são apenas 7, e esse é o crime que interessa ao cidadão).
Sempre que há um massacre numa escola americana, por exemplo, o pessoal fala do controle de armas, faz comparações descabidas com o Brasil. Armamentistas dizem que se todos estivessem armados os malucos não matavam tanta gente; desarmamentistas retrucam que se ninguém estivesse armado, ninguém morria. Além do fato de se tratar de uma disputa entre o lógico parcial e a utopia, espantoso é que, num país onde o porte é direito garantido na constituição e em boa parte dos estados as pessoas não precisam nem comunicar ao Estado que compraram uma arma, não haja ainda mais massacres. O verdadeiro problema é a sociedade doente que os americanos criaram, e se não têm armas de fogos eles recorrem a facas. Nos EUA morreram quase 15 mil pessoas por arma de fogo (sem contar suicídios) em 2019. No Brasil, onde o porte de arma é muito restrito e mesmo a posse ainda é bastante controlada, entre 2017 e 2019 morreu uma média de 50 mil pessoas por ano em crimes violentos. A conta não bate, porque são realidades diferentes.
A direita trabalha melhor esses dados. É impressionante como a esquerda evita utilizar números reais para o debate, porque é movida antes por princípios do que pela observação da realidade. E é essa pobreza de dados que mais chama a atenção nesse debate. Faltam informações simples: quantas pessoas com posse legal de armas matam outras, quantas com porte de arma fazem o mesmo, quantas são as armas legais roubadas e desviadas para o crime organizado. Devia ser fácil achar esses números. Não é. Porque no fundo não interessa a ninguém. Suas agendas estão acima disso.
Ao demonizar as armas de maneira absolutamente maniqueísta, ao propor ao cidadão comum que se desarme em toda e qualquer circunstância enquanto o Estado se mostra incapaz de garantir sua integridade, a esquerda abandonou o jogo e deixou o campo livre para os malucos e os bandidos. Não se pode dizer que jogou a maior parte desse pessoal nos braços da direita, porque o fato é que esse tipo parece ter uma tendência inata ao autoritarismo e ao fascismo; mas fortaleceu o seu apelo entre quem vive em locais inseguros, alienou uma pequena massa que não oferecia grandes resistências, queimou pontes e cortou canais de diálogo que poderiam ser úteis, e fez gente que normalmente queria apenas ter uma espingardinha de um tiro para caçar mocós se alinhar àquele pessoal que deseja um .50 nas mãos de cada cidadão — menos em grupos como os Sem-Terra, claro.
O debate sobre a liberação de calibres, por exemplo, é exemplo dessa miopia.
A lista de calibres liberados recentemente por Bolsonaro, que capitalizou essa insatisfação, é imensa. Mas por não conhecer o assunto a esquerda gritou o fim do mundo, sem entender que os que importam mesmo não chegam a meia dúzia: 9mm, .40, .45, .357, que costumam ser liberados no resto do mundo e já tinham sido liberados antes, pelo Temer. O resto são calibres que as pessoas não compram porque são caros e sequer fabricados no Brasil. Na prática, são irrelevantes.
Mais grave são os novos calibres restritos. O 5.56×45 e o 7.62×51 foram liberados para CACs — ou seja, liberaram o AR-15. Não há justificativa real além da piada do “direito à liberdade” para isso, ou os privilégios de uma porção minúscula da sociedade. De modo geral, esses calibres só interessam mesmo a quem precisa andar por aí com uma arma potente, confiável e leve. Geralmente esse pessoal está nos morros cariocas e entradas de favelas Brasil afora.
Mas enquanto se discutia isso, Bolsonaro tornou mais difícil o rastreamento de armas de fogo, uma medida indefensável que só se explica pelas suas ligações com as milícias cariocas, porque o genocida é tão pequeno que só consegue pensar na sua aldeia.
Com seu negacionismo, a esquerda perde a chance de estabelecer um diálogo que tenha como base a realidade do uso de armas no país. Perde a chance de, ao pesar necessidades e realidades diversas, e admitir que um lavrador tenha uma espingarda na zona rural para se proteger de um eventual crime ou que alguém mantenha um revólver em casa para se sentir mais seguro, mostrar que não há razão nenhuma para que um sujeito que mora num apartamento sequer tenha uma arma em casa, muito menos o porte.
É uma tragédia na qual ela a sociedade são as grandes perdedoras.
Eu não quero saber nem da conversa mongoloide da direita, nem da conversa gosmenta e sofista da esquerda. Eu tenho duas armas carregadas em casa. Se algum vagabundo tentar entrar aqui, eu abato igual a um cachorro sarnento. Eu sou atitador formado no exército.
Fim de papo.
Em meados dos anos 2000 a besta quadrada que governava o meu estado resolveu distribuir algumas das novissimas pistolas do inédito calibre .40 para alguns policiais de elite. Mas esqueceu de dar a munição. Faltou verba, foi a desculpa oficial. Em menos de quinze dias apareceram varias caixas de munição a venda vindas do Paraguay, mas eram muito caras e diversos colegas da época fizeram vaquinhas, para pelo menos ter um carregador com 15 tiros utilizavel. Sete meses depois chegou um novo lote de pistolas com 25 tiros para cada uma. Hoje quando vejo em uma esquina um vendedor de cigarros ilegais, lembro daquela época e dou risada. Controle de armas, só na cabeça dos otarios que pensam que mandam . Fronteira aberta permite tudo.
Nos comentários, destaque pro Elton, que em outubro de 2005 já dizia que o que Bolsonaro apoia não pode ser bom. Eu não lembro nem se eu já sabia quem era o energúmeno nessa época.