Não ser Flamengo

A geração de Zico tinha ódio ao Botafogo. Ela viu vezes Garrinha humilhar o Mais Querido no gramado do Maracanã — tortura que se estendeu por mais alguns anos, com Gérson, Jairzinho, uns tantos aí. Minha mãe ainda me conta da tristeza que era ir ao Maracanã nesse tempo.

A geração seguinte, encarnada por Leandro (o maior lateral direito da história do futebol, é sempre bom lembrar), por sua vez odiava o Fluminense. Ela viu a “Máquina” de Rivelino e Edinho e Paulo César moer o Flamengo costumeiramente.

Eu faço parte de uma geração que não passou por nada disso e que se dá ao luxo de só ter amor no coração. O Flamengo do meu tempo é aquele cujo marco inicial é o gol de cabeça marcado por Rondinelli sobre o Vasco da Gama na final do Carioca de 1978. Começava ali uma hegemonia estadual que dura até hoje. É claro, aqui e ali uns percalços acontecem — grandes fases do Fluminense no meio dos anos 80 e do Vasco no final do século XX, o gol de barriga de Renato em 1995, o chocolate do Vasco na Páscoa de 2000 —, mas o Flamengo dos últimos 40 anos é aquele que ganhou quase metade dos campeonatos cariocas e todos os seus títulos nacionais e internacionais. Nesse período os outros times passaram por altos e baixos, foram todos rebaixados para a série B onde filho chora e a mãe não vê, e uns até para a série C, onde filho chora e a mãe nem liga. Mais importante ainda, nesse período os campeonatos nacionais e internacionais ganharam mais importância que os estaduais. Hoje, um time grande brasileiro enfrenta rivais de outros estados muito mais vezes do que enfrenta a maioria dos adversários locais.

Por tudo isso, nunca consegui entender o ódio que torcedores têm contra outros times. Entendia, um pouco, a raiva que todos parecem ter do Flamengo, mas ela sempre me pareceu semelhante aos latidos de um chihuahua, que late para tudo porque tudo é maior que ele. Os times pequenos precisam odiar os grandes para justificar sua existência.

Talvez seja essa a razão pela qual eu sempre tenha tido alguma simpatia por alguns desses times pequenos. O Fluminense ainda tem em sua alma um resto daquela elegância esnobe que os fazia espalhar pó de arroz nas arquibancadas do Mário Filho. A torcida do Glorioso sempre me pareceu valorosa em sua persistência, porque ao fastígio dos anos 50 e 60 se sucederam 21 anos sem ganhar nem um Carioca, e uma existência que se baseava essencialmente numa nostalgia simpática — o que, claro, não me impediu de, ao ouvir Bebeto de Freitas dizer que “o Botafogo é um estado de espírito…”, completar sua frase com um “…também conhecido como depressão”; ele não riu. E hoje, o único sentimento que se pode ter em relação a um time como o Vasco é pena, talvez uma torcida genuína para que não se apequene demais, porque ele está se tornando o que o América era nos anos 70, o quase grande, o maior dos pequenos, o gigante da colina abaixo, e sinceramente espero que ele não se transforme no São Cristóvão.

Mas domingo passado eu finalmente entendi o que significa o ódio a que me referi no início deste post, e ainda estou assustado, e fui dormir com a luz acesa naquela noite.

O Botafogo tem tudo para ser o campeão brasileiro deste ano. Naquele momento tinha 11 pontos à frente do segundo colocado e enfrentava um Flamengo em crise, que talvez não ganhe absolutamente nada este ano, 14 pontos atrás. Tinha tudo para um jogo tranquilo — disputado, honrado, mas tranquilo.

O que finalmente entendi é que nada disso importa quando o ódio é o que lhe move. Pontos, chances, campeonatos, tudo isso é bobagem. Para o Botafogo, aquele jogo parecia ser outra coisa. Um desavisado que visse o jogo pensaria que ali estava em disputa a final do certame, jogo de vida e morte que significaria a glória imorredoura do campeão ou o opróbrio do rebaixamento.

Foi ao ver o goleiro do Botafogo no ataque, no campo do Flamengo, desesperado para fazer o gol que lhes garantiria ao menos o empate, e então perderem a bola que foi para os pés de Cebolinha, mas para a sorte do Glorioso nós temos o Cebolinha, é, nós temos o Cebolinha, e mesmo assim o goleiro voltou para o ataque, arriscando tudo no desespero dos decaídos, foi só aí que entendi o que significa não ser flamenguista neste mundo.

***

Eu sei que falei, há alguns anos, que não gostava mais de futebol e não pretendia mais falar sobre isso. Mas acontece que logo depois, naquele ano da graça de 2019, encontrei Jesus, e o resto é história.

12 thoughts on “Não ser Flamengo

  1. Eu gosto muito do Leandro também, mas meu lateral-destro favorito é o Arce.

    Eu sou vascaíno, mas não odeio só o Flamengo, e nem mesmo só o Botafogo e o Fluminense: há bastante espaço pra ódio no meu coração e eu basicamente torço contra qualquer brasileiro em jogos internacionais. A única exceção que já abri foi o Paysandu na Libertadores, afinal, é um time inofensivo e eu sou paraense. Mas não costumo torcer nem mesmo pelos pequenos.

    Eu nunca imaginei que ia viver numa época onde o Botafogo é inquestionavelmente o melhor time do campeonato.

  2. No futebol de seleções, meu ódio se divide entre Argentina, França e Alemanha. Na final da última copa eu acho que entendi o que os argentinos sentiram vendo Brasil x Alemanha na final de 2002.

  3. Rafael:
    Me corrija se eu estiver errado, mas o Flamengo de hoje não se tornou esse GRANDE FLAMENGO depois de Zico, Junior e cia.?

    • Além do elenco fenomenal, o Flamengo contou ainda com um “little help” da Rede Globo, pois a família Marinho é fanática pelo time. A torcida do Flamengo foi crescendo junto com o sinal da Rede Globo, pegando desde o interior de Minas até Santarém do Pará (onde todo mundo é flamenguista…).

      • Wagner, mais ou menos. A influência da expansão da Globo certamente pesou, sim, mas era natural que o maior time do Rio, capital cultural do país durante muito tempo, tivesse essa primazia. O Flamengo já era o maior time carioca bem antes da Globo.

        • Não era, não, Galvão. Até os anos 60 e até 70 era bem discutível qual era o maior time do Rio, cada um grandes méritos, e no caso dos 60 ainda nem tinha a predominância da torcida no nível atual, embora já fosse maior

          • “[Em 1973] a torcida do Flamengo já estava consolidada como a maior da cidade do Rio de Janeiro, como mostrou uma pesquisa da Revista Placar em 1971 e relembrada recentemente pelo site Verminosos por Futebol. A pesquisa encomendada ao Instituto Gallup mostrou que o Flamengo tinha praticamente o dobro de torcedores do Vasco, 35% contra 18%.” Esses 17% não se construíram em 8 anos.

            (https://www.supervasco.com/noticias/o-mais-querido-do-brasil-em-1973-e-o-engajamento-da-torcida-vascaina-281825.html)

            E vale a pena ler essa matéria: https://inteligencia.insightnet.com.br/o-mais-querido-do-brasil-a-construcao-de-uma-nacao/

            • Acho que, proporcionalmente, na região serrana do Rio tem muito mais flamenguistas que na capital. Aqui em Petrópolis eles devem ser uns 75% dos torcedores. Em horário de jogo do Fla a rua fica vazia. Em Nova Friburgo, idem. Na cidade do Rio não chega a tanto. O Vasco é fortíssimo nos subúrbios, por exemplo.

              • O Flamengo é um caso à parte. Em todo o país há — hoje um pouco menos —uma dicotomia de classes entre times: Vitória, Cruzeiro, Fortaleza, Sergipe, Grêmio, Remo, São Paulo times de rico, e Bahia, Atlético, Ceará, Confiança, Inter, Paysandu, Corinthians times de pobre. No Rio a geografia é um pouco diferente: Fluminense time de rico, Botafogo um time que flutua em algumas camadas mas essencialmente time de rico, Vasco time de pobre e o Flamengo espalhado. E, falando em região serrana, curioso é ver em Brasília e no Nordeste. Em estados com futebol fraco, o Flamengo tem maior torcida que os times locais.

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