Beijinho, beijinho, tchau, tchau

Li as “Memórias” da Xuxa. Sei lá o que deu em mim. Nunca fui lá muito afeito a biografias e autobiografias, com exceções como as tantas sobre os Beatles, mas ultimamente andei lendo uma série delas. Nenhuma me deixou satisfeito, mas eu sei por quê: mesmo errado, sempre espero de uma autobiografia algo como as memórias de Casanova, ou algo abrangente como o trabalho de investigação feito por biógrafos como Peter Guralnick ou Mark Lewisohn. Em suma, uma autobiografia é para eu ficar sabendo de coisas sobre você que não posso saber de outra forma. Do contrário, seu livro é apenas exibicionismo barato, bazófia em mesa de bar, inútil para qualquer coisa além da satisfação da sua vaidade.

Meu próprio espanto diante desse livro vem do fato de que nunca tive nenhuma ligação emocional com a Xuxa. Mesmo criança detestava programas infantis de auditório, como “Parquinho” e “Recreio” em Salvador. E quando o “Xou da Xuxa” estreou eu já era velho demais para me interessar pelos desenhos que apresentava.

Mas mesmo em 2024, muita gente tem uma ligação emocional ainda forte com o que ela representou em seus passados, e esse é um fenômeno interessante. Além disso, Xuxa foi um dos grandes símbolos sexuais da minha geração, para dizer o mínimo. Sua existência não pode passar despercebida por nenhum brasileiro que tenha assistido à TV nos anos 80 e 90. E confesso: por 15 reais eu compro até livro de mashup entre ewoks zumbis e o amante de Lady Chatterley.

É uma obra muito ruim. É óbvio que ela não quer um relato realmente franco. Ela tem consciência de quem é e sabe o que deve dizer, dentro dessa perspectiva. Talvez por isso o título “Memórias”, naturalmente mais vago. Ela não quer elaborar muito, não quer refletir sobre sua vida e o sentido dela. Não quer contar o que não lhe é útil ou interessante. Ela está simplesmente deixando registrada a imagem que quer deixar para o seu público.

Mas ainda que se admita esse escopo tão limitado, o livro é esparso, insuficiente. Mesmo quando aborda temas dolorosos, como os abusos de que foi vítima na infância, Xuxa é discreta, quase reticente. Nas memórias de Xuxa Meneghel não há a possibilidade da merda no ventilador, do balde chutado, da abertura do peito; mas mesmo coisas que poderiam ser interessantes — o seu cotidiano em Nova York, a rotina de gravações do Xou da Xuxa, as pessoas interessantes que ela encontrou na vida — estão ausentes.

Os capítulos são curtos. As histórias são poucas. A verdade é que qualquer pessoa que corra os arquivos de revistas de fofocas dos últimos 40 anos poderia escrever uma biografia muito mais aprofundada, apenas com o que foi publicado nelas.

O livro traz um texto medíocre, de um tipo comum de jornalismo para iletrados, quase padrão nesse tipo de literatura. Pode ser apenas impressão, e quem sabe ele traduza com fidelidade as inflexões da própria Xuxa; mas eu já vi esse texto milhares de vezes antes, texto de ghost writer que simplifica demais o original.

Diante de tudo isso, o trecho mais interessante do livro talvez seja o momento em que ela fala sobre o comportamento do seu cão quando ela o namorado, Junno, faziam saliência:

Como ele sempre estava com a gente, quando a gente namorava na cama, ele virava de costas para não ver. Quando acabava, ele vinha com aquele sorriso e a gente dormia.

Gargalhei por uns 15 minutos depois de ler a cena, porque não consigo mais deixar de imaginar o cachorrinho latindo para dizer: “Ei, Junno, não é assim não, porra! Primeiro cheira o cu dela, cheira! Isso! Agora morde o pescoço! Maravilha, garoto! Pode montar! Aê, meu filho! Joga duro aí que vou ficar de vigia pra que ninguém jogue água fria em vocês!”

Curiosamente, as referências a sexo em todo o livro são raras, sempre contidas, quase pudicas. Isso é surpreendente, principalmente em comparação com as revelações feitas por ela no podcast de Sergio Mallandro recentemente. Ah, se os adolescentes dos anos 80 ouvissem a Xuxa falando que gosta de sexo anal, como ela contou no tal podcast.

O problema é que não são os segredos de alcova da Xuxa que me interessam, mas sim outro tipo de detalhes da vida privada. Parece faltar a ela a compreensão da dimensão correta de sua existência e do que é realmente interessante em sua vida para o público e para a História; e assim nos deparamos com informações absolutamente sem importância como o cachorro que se recusava a ser voyeur involuntário ou quantas tatuagens ela tem ou o que mudaria nela mesma ou uma longa peroração sobre as vantagens éticas do veganismo.

Talvez por isso, num livro tão rarefeito, o que mais chama a atenção não é uma informação, e sim duas grandes omissões.

A primeira chega a ser canalha, e é talvez o ponto baixo do livro: o capítulo breve que ela dedica ao filme “Amor Estranho Amor”, de Walter Hugo Khoury. Para quem não lembra, uma Xuxa ainda em início de carreira fez o papel de uma prostituta que tenta dormir com o filho de outra prostituta, interpretada por Vera Fischer. Do jeito que ela escreve agora, parece que apesar de ter feito contra a vontade, ela desde o início foi uma defensora pública do filme, atacado pelas forças conservadoras da sociedade brasileira. Isso não é só mentira, é safadeza pura e simples.

Hoje ela diz para as pessoas verem o filme. O que é curioso, já que ela moveu um processo proibindo justamente isso. Durante um bom tempo, Xuxa pagou 60 mil dólares anuais para que o filme não fosse exibido, e isso destruiu as possibilidades comerciais do filme. Mais recentemente, perdeu uma ação contra o Google em que pedia a proibição de menções ao filme em seus resultados de buscas.

Xuxa deve desculpas ao Khoury, que viu um bom filme seu ser censurado porque Xuxa achava que ele não ia bem com sua imagem de “rainha dos baixinhos”, e ao ator Marcelo Ribeiro, que faz o menino que ela tenta comer e que já reclamou várias vezes de ter tido sua carreira interrompida pelo processo da Xuxa. Aqui ela tenta reescrever a sua história de maneira cínica, e além de se expor ao ridículo, tudo o que consegue é levantar a suspeita de que mais trechos de sua trajetória foram tratados da mesma forma.

A outra omissão é mais complexa. Diz respeito a Marlene Mattos, sua ex-empresária, ex-guru, madrinha de sua filha e reconhecida universalmente como a principal responsável pela sua ascensão a ícone absoluto de toda uma geração.

Não é exagero. No YouTube é possível achar trechos do programa que a Xuxa apresentava na TV Manchete. É a mesma Xuxa, com o mesmo talento, o mesmo carisma incomparável, a mesma singularidade a que nos acostumamos. Mas ainda um diamante bruto, que não deixava perceber o tamanho do seu potencial. Foi na Globo que ela desenvolveu uma imagem muito maior que a vida, absoluta. E foi Marlene Mattos a grande responsável por isso.

Com Marlene, Xuxa chegou à capa da Veja em 1991 numa matéria que falava sobre sua fortuna de 19 milhões de dólares, na época. Marlene era devotada à sua garota: enriqueceu e fez da Xuxa uma milionária, dirigindo sua carreira com mão de ferro, fazendo o que era necessário para que ela continuasse sendo a autoproclamada “Rainha dos Baixinhos”.

Enquanto estiveram juntas, formaram um time imbatível. Um amigo dirigiu a Xuxa num spot para rádio da campanha contra a poliomielite infantil, no final dos anos 80. As duas chegaram juntas: Xuxa extremamente simpática, parecendo uma menina acompanhada da mãe contra quem tentava se rebelar timidamente, resmungando protestos, e Marlene direta, grossa, rude. Depois de gravar o primeiro take, ele pediu que ela fizesse mais um, e que fosse “mais Xuxa”. Ao lado dele, na mesa de controle, com o mau humor que lhe era proverbial, Marlene lhe perguntou: “E quem é que você acha que tá lá dentro?”

Xuxa e Marlene desempenharam uma simbiose quase perfeita. Juntas, conquistaram o Brasil e a Argentina. Separadas, jamais conseguiram ter o mesmo sucesso. A Marlene veio parar em Sergipe, administrando um hotel-fazenda por uns tempos. Não sei onde anda.

É essa Marlene que é quase totalmente ignorada na biografia.

Na matéria da Piauí que fala desse livro e da série do Globoplay, Xuxa diz que se afastou de Marlene porque passaram a discordar sobre os rumos de sua carreira. Marlene achava que Xuxa devia migrar para o público adulto. Xuxa, encantada com a recém-maternidade, queria fazer o “Xuxa Para Baixinhos”. Na matéria, Xuxa se autocongratula e diz que estava certa: os discos e vídeos dessa série venderam milhões de cópias.

Mas ela está mentindo para o leitor, e provavelmente também para si mesma.

“Xuxa para Baixinhos” pode ter vendido os tubos, mas no final das contas Xuxa acabou foi na Record. Ela não entendeu ou não aceitou o que Marlene sabia institivamente: que a Xuxa precisava envelhecer com seu público. E que, en passant, ela era maior que a Bia Bedran. O que Marlene e a torcida do Flamengo entendiam é que Xuxa poderia ter sido a nova Hebe Camargo, o que parece mais que óbvio num mundo onde Luciana Gimenez alcançou alguma permanência. Em vez disso, ali a musa do Pelé deu início a uma carreira errática que terminou com ela fazendo alguma coisa em algum lugar, eu não sei mais.

E mesmo com tudo isso, ainda assim o livro é bem-sucedido: o leitor chega ao fim simpatizando com essa mulher que desempenhou um papel importante na cultura e no imaginário nacional, e que no fim das contas acumulou qualidades que hoje, em um país piorado e cada dia mais medíocre, são admiráveis.

Isso é tudo que tenho para dizer. Mas antes de ir embora, queria mandar um beijo para o papai, para a mamãe e para a Xuxa.

One thought on “Beijinho, beijinho, tchau, tchau

  1. Por isso gostei da biografia não autorizada do Frank Sinatra escrita pela Kitty Kelley. E ela ainda deu una amaciada.
    O legal sao os podres também. Até aquela dos guarda-costas do Elvis é divertida.

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