Porque ainda lembro do telecine

Em algum momento de 1986 o telecine começou a ser aposentado, pelo menos para mim.

Antes de ser um conjunto de canais de TV por assinatura, o telecine era uma máquina que possibilitava que filmes (rodando a 24 quadros por segundo) fossem exibidos na TV, a 30 quadros por segundo. Eles eram exibidos virtualmente sem nenhum filtro, com os riscos e degradações físicas a que o celulóide sempre foi exposto, como se fossem projetados diretamente na sua TV.

Até aquele momento de 1986, todos os filmes que eu tinha visto na TV eram telecinados simultaneamente à sua exibição. É por isso que assistir a um filme era uma experiência sutilmente diferente da de hoje. Apesar das características próprias do meio, com padrões de imagem definidas pelo PAL-M e pelas frequências de transmissão, ainda se percebia com perfeição a textura e o espectro de cores do celulóide naqueles filmes. Havia também um detalhe pouco lembrado: a cada exibição mais sujeira aparecia na fita, a cor esmaecia um pouco mais. Um filme, portanto, nunca era exibido da mesma forma duas vezes. Nada dessa coisa digital de hoje, de imagem e som exibidos ad infinitum sem nenhuma perda: um filme era como o rio de Heráclito.

O telecine, além disso, dava origem a casos curiosos. Como uma certa noite na TV Sergipe.

Até o começo dos anos 80, a maior parte das TVs vivia as situações interessantes de um mundo mais mambembe, como as causadas pela ausência de antenas de transmissão. Nessa época, a esmagadora maioria da programação era exibida em datas diferentes em grande parte das praças: o filme que você via em Belém na quarta-feira tinha sido exibido uma semana antes em Maceió, e seria exibido alguns dias depois em Campo Grande. A razão era muito simples: não havia satélite para todo mundo. Os únicos programas exibidos simultaneamente em todo o país eram o Jornal Nacional e o Jornal Hoje — acho que o Fantástico também.

Em 1980, por exemplo, todo o resto da programação chegava à TV Sergipe em filme ou fitas quadruplex, fitas de duas polegadas que precederam a U-Matic, com o requinte da “via aérea”. Era por isso que as novelas, por exemplo, eram exibidas um dia depois, o que fazia com que baianos — cuja TV Aratu já tinha as tais antenas — não perdessem a chance de reafirmar sua superioridade, e sempre que tinham chance contassem aos sergipanos os acontecimentos do capítulo que eles ainda não haviam visto. Mas isso é história para outro texto: aqui se conta o caso dos carretéis trocados.

Era um longa-metragem, filme desses de três carretéis. Os meninos de hoje não sabem, não viveram no interior nem conheceram quem tenha vivido: mas houve um tempo em que “filme de três carretéis” era garantia de boa diversão porque era filme longo, e os cinemas do interior anunciavam isso, e lotavam a sessão naquela noite, Franco Nero e Giuliano Gemma e quem sabe Victor Mature na Semana Santa fazendo “O Manto Sagrado”.

Mas nessa noite era um filme qualquer e o operador tinha mais o que fazer: ele queria jogar bola. Então colocou o filme no telecine e saiu. Quando voltou, a tempo de trocar o carretel porque era profissional sério e responsável, se enganou e colocou o terceiro rolo, em vez do segundo. Até aí tudo bem: a história mostra que o público noturno é muito condescendente com essas rupturas narrativas e chama a isso “cinema de autor”. Na segunda troca, no entanto e logicamente, ele colocou o segundo rolo: e então choveram ligações para a TV Sergipe, “mas esse fulano já morreu!”, daí para pior.

Ninguém sabe como ele não perdeu o emprego.

Isso, no entanto, foi antes da minha época, ou talvez eu simplesmente não tenha visto esse filme. É história que me contaram, apenas. Porque o que sei, mesmo, é que o tempo passou e as antenas se tornaram comuns nas retransmissoras, e esse tipo de evento desapareceu, porque agora toda a programação é transmitida por satélite.

(Junto com ela, no entanto, veio o soterramento da produção local, e hoje a Globo deixa a suas retransmissoras apenas os três telejornais diários e um horário vagabundo nas tardes de sábado, ao contrário de antes.)

O que importa, mesmo, é que durante todo aquele tempo eu via filmes projetados através do telecine.

Mas uma exibição de “Nunca Fui Santa”, tarde da noite em 1986, me mostrou pela primeira vez um mundo novo. Era uma textura diferente, mais limpa que o normal. Os riscos característicos não estavam mais lá. E embora ainda mantivesse a riqueza do celulóide, tão diferente do videoteipe das novelas e dos telejornais, a imagem tinha um pouco da pobreza generalizada desses últimos. Intuí imediatamente o que estava acontecendo, embora só fosse saber exatamente o que era muitos anos depois: eu estava vendo filmes exibidos a partir de fitas de vídeo. Eu já sabia, vagamente, o que era um telecine, graças ao “Manual da Televisão”, da Disney, que havia comprado no ano anterior; mas não sabia exatamente o que acontecia naquele momento. Sabia apenas que aquilo era diferente, e naquele momento me pareceu muito melhor. Naquele momento achei a imagem mais bonita, mais limpa, talvez mais moderna. O que eu não sabia é que estava dizendo adeus a um período longo da tecnologia televisiva; e, pior, que viria a sentir falta dele.

Uns anos atrás fui ver “A Professora de Piano” no cinema. E a cópia exibida me lembrou outros tempos. Era velha, surrada. Muitos riscos, os riscos que antigamente só se viam em fitas exibidas um, dois anos depois da estréia. Cópias assim não existem mais. Os novos tempos de multiplexes acabaram elas; ou talvez não exatamente os multiplexes, mas o parco tempo de vida dos filmes nas salas de exibição, antes de se encaminharem ao cadafalso dos DVDs, Blu-Rays ou canais de TV da vida. Um rolo de filme hoje não fica velho, nunca: não acumula a poeira do tempo, não adquire aqueles riscos ou fios de cabelo, a prova de que foram amados e desejados, de que correram muitos e muitos lugares e serviram fiel e docilmente a gente tão diferente. Hoje os cinemas simplesmente não permitem que as cópias envelheçam, uma analogia cruelmente fiel à própria noção atual de cultura de massas. As fitas não mais envelhecem. Seu ciclo de vida é cada vez menor. São vítimas de infanticídio.

Na minha infância e adolescência, era extremamente comum ver filmes em cópias gastas, sujas, riscadas. Elas não existem mais. Já há algum tempo não chegam mais a esse nível de degradação do celulóide. Antigamente, o mesmo filme se segurava por meses no mesmo cinema, e os anúncios de jornal se vangloriavam: “12a semana de sucesso!”. Hoje não passam 15 dias. Aquela cópia de “A Professora de Piano”, no entanto, subverteu esse modo novo de mostrar cinema. Deve ter sido exibida milhares de vezes, e a cópia foi se desgastando, ganhando riscos e esmaecendo, até aquele dia em que me reapresentou a um velho amigo do qual tinha esquecido.

Foi um reencontro e uma despedida, no entanto. O processo deve ficar ainda mais limpo a partir de agora. Em poucos anos o último cinema a exibir filmes em celulóide trocará seu equipamento pela projeção digital. E o mesmo filme poderá ser exibido milhões de vezes, bilhões, sem absolutamente nenhuma queda de qualidade. A diferença entre o videoteipe e o celulóide está acabando e é tudo digital agora. São os novos tempos. E são bons, não sou eu quem vai dizer o contrário. Mas lá no fundo fica um pouco de saudade, e é a mesma saudade que tenho ao ver uma moeda de 50 cruzeiros cunhada em 1981.

Fala, memória

Há algum tempo escrevi um post sobre algumas lembranças da TV nos anos 70. Uma delas eram os filmes exibidos em “Disneylândia”, dos quais lembrava nitidamente de alguns, como Child of Glass, visto em 1979.

Mas foi o bocado de gente que também lembrava do filme, muito mais do que eu — incluindo nessas lembranças até uma pequena quadrinha — que me impressionou. E é por causa delas que esse post é daqueles que estão sempre recebendo um novo comentário, normalmente de alguém que vem parar aqui por acaso através do Google.

O post mencionava também um filme específico de que eu lembrava mas sobre o qual não conseguia achar nenhuma informação. Falava de um garoto mimado e um velho negro, náufragos em uma ilha deserta onde o menino, temporariamente cego, aprende a ser gente. Vi esse filme no outono de 80 e desde então não tinha encontrado absolutamente nada sobre ele. Sem lembrar do título ficava difícil encontrar alguma referência.

E é aí que entra a internet.

Uma moça que também havia assistido a esse filme lembrava dos nomes dos personagens, Timothy e Phillip, e deixou um comentário aqui:

Por favor, ajudam-me, a quase 30 anos mais ou menos procuro saber o nome desse filme, e hoje graças a Deus encontrei esse site onde alguem um dia tbm assistiu a esse filme, estou cadastrada em uns 5 ou 6 sites de busca por filmes antigos, e nesse site foi onde a minha esperança voltou a crescer, alguem sabe por favor me dizer o nome do filme do garotinho e do velho que naufragaram numa ilha, lembro-me que ele se chamava Timoty e o garoto Feliph. Ahhhh que tempo bom que naum voltam mais, agradeço a qm possa me ajudar, me mandem e-mail , qqr coisa mas, preciso saber o nome do filme , pois qdo assisti com minha mae(in memoria) eu era uma criancinha de 3 ou 4 anos naum me lembro bem…desde de ja agradeço do fundo do meu coraçao !!!!!!

A partir daí ficou fácil.

O nome do filme é The Cay. Foi feito para a TV em 1974 e é baseado em um livro aparentemente ainda popular no ensino de literatura para meninos americanos de 8 a 11 anos, uma espécie de “Capitão Coragem” misturado com “A Cabana do Pai Tomás” e com molho de “Robinson Crusoé”. Mais impressionante, no entanto, é o fato de ser estrelado por ninguém menos que James Earl Jones com uma carapinha branca artificial.

Mais de 30 anos depois, eu não lembrava mais do filme, e para garantir a integridade de minhas lembranças, boas ou ruins, decidi não assistir a ele. (Mas não consigo deixar de imaginar aquele negão olhando para o menino e dizendo: “Phillip, I am your father.”)

A cada dia as pessoas me surpreendem mais, e de maneira positiva. Em um desses carnavais perdidos de Deus, um sujeito chamado Jota apareceu nesse post procurando por outro filme, com um menino chamado Benjamin que era guiado por um texugo. Lembrei imediatamente da existência desse filme; e lembrei também que foi assistindo a ele que aprendi que existia um animal chamado texugo. (Esse foi fácil de descobrir: The Boy Who Talked to Badgers.) Eu só espero que esse seja um filme que Benjamin aparece caminhando em um trigal.

A verdade é que é esse tipo de coisa que, quase 20 anos depois, ainda me fascina na internet. É o fato de que, graças à colaboração de milhares de desconhecidos, e gente que não espera nenhuma retribuição pelo que oferece aos outros, um mundo inteiro de informação pouco relevante está acessível.

Porque informação digna desse nome a gente sempre achou. Certo, nem sempre tão facilmente — mas as coisas importantes, mesmo, a gente sempre achava em uma enciclopédia, num livro do ano, no Almanaque Abril. O que a internet trouxe de verdadeiramente revolucionário foi a informação pouco significativa, aquelas coisas que parecem não interessar a ninguém, mas das quais um número surpreendentemente grande de pessoas ao redor mundo lembra com carinho. Essas coisas estavam condenadas a desaparecer junto com as memórias de quem as viveu; é a possibilidade de essas pessoas, que antigamente não teriam nenhuma chance de conhecer-se ou de trocar lembranças, se conectarem de alguma forma que faz toda a diferença.

Só depois da internet consegui achar informações sobre alguns dos seriados a que assisti na infância e de que a minha geração já não lembrava. Descobri também que essas lembranças não têm atrativos só para mim. O Edilson, por exemplo, compra DVDs de seriados esdrúxulos como “Manimal” (uma espécie de protótipo melhorzinho de Animal) — e está atrás de alguém que tenha “Os Campeões”. O Maurício não esquece a Linda Carter. Eu também não.

Em qualquer lugar você acha grandes textos sobre a história da TV. Todo mundo escreveu um livro sobre isso. Mas os detalhes, mesmo, só na internet. É aqui que se pode saber onde andam atores dos quais só você parece se lembrar — mas isso apenas porque você ainda pertence a um mundo que já acabou, um mundo ainda não conectado. Aqueles seriados de que ninguém lembrava, como “Joe, o Fugitivo”, de que o Daniel ainda lembra; ou “Shazam”, ou “Ísis”, ou “O Homem do Fundo do Mar”. Sem falar nos desenhos, como os produzidos por DePattie e Freleng e a infinidade de tentativas da Hanna-Barbera que não deram certo. Alguém ainda lembra do desenho do Tarzan, produzido por Norm Prescott e Lou Scheimer, e que estreou no Brasil em 18 de novembro de 1979 (não, não me pergunte como eu lembro dessa data)?

Eu tenho certeza de que ninguém, absolutamente ninguém da minha idade lembra de Esper.

O que é realmente belo na internet é que não importa em que você pense: aqui você vai descobrir que mais gente também assistiu àquilo que marcou a sua infância, e essas pessoas se lembram disso e estão dispostas a compartilhar informações sobre eles. É o caso do Francisco Gomes, que anteontem deixou um comentário me informando que o filme a que me referi no início era o The Cay, e acrescentando algo que eu desconhecia: o filme está disponível no YouTube.

Com a chegada do P2P a coisa melhorou ainda mais. Boa parte dos filmes exibidos na Disneylândia hoje está disponível para download, em algum lugar — de preferência no Pirate Bay. As pessoas podem achar Child of Glass, por exemplo, além de um bocado de filmes antigos exibidos na Disneylândia. É só procurar. Curiosamente é mais fácil achar esse tipo de filme do que alguns clássicos do cinema, o que mostra que nada é capaz de vencer a lembrança afetiva das pessoas. Elas preferem assistir de novo a um filme bobo mas que lhes marcou, por alguma razão. E talvez, no fundo, eu saiba exatamente por quê.

Paris, 2013

Ela chega no Louvre e, em vez de tirar fotos do museu, em vez de tirar fotos da pirâmide de vidro que ela acha feia, que não combina com a sua visão muito própria de Paris, em vez de fazer as fotos que as outras adolescentes fazem para colocar no Instagram ou no Facebook, ela tira fotos justamente dessas pessoas que interagem com a pirâmide de vidro, porque são as gentes que chamam sua atenção, são elas que fazem suas fotos se tornarem interessantes.

Mundo, se você der errado, a culpa é sua e o problema é seu. Eu fiz mais que minha parte.

As vinhas da ira, pisoteadas

Ao que parece, Steven Spielberg pretende refilmar “Vinhas da Ira”, romance de John Steinbeck e filme de John Ford.

Além do fato de ser absolutamente temerário refilmar filmes do cânon cinematográfico, seja por quem for, há algo que faz pensar que essa versão, talvez, seja um tanto diferente da original de Ford. Algo mais adequado aos novos tempos e sua preferência por obviedades rasas, e ao novo diretor ainda mais óbvio e ainda mais raso.

Este blog dá aqui, em primeira mão, a sinopse dessa versão.

Na versão de Spielberg, Tom Joad é um garoto de seus 13 anos, injustamente acusado de um crime que, redundantemente, não cometeu. Seu pai, um homem simples mas forte, o típico trabalhador americano do Oklahoma, e obviamente seu melhor amigo, está disposto a qualquer sacrifício para salvá-lo; e assim coloca a família em um carro — ou, talvez, numa carroça puxada por um cavalo de guerra — e juntos aquela família pobre mas limpinha segue em direção à Califórnia.

É uma longa viagem pela estrada de tijolos amarelos, e durante ela a família passa por várias atribulações. No momento mais emocionante do filme, a doce avó de Joad morre tentando salvar seu neto de um dinossauro. Mais adiante, quando atravessam um belo campo de papoulas — que segundo os críticos significará uma alusão ao Taliban — Tom Joad é abduzido por extraterrestres, que o levam em uma aventura repleta de efeitos especiais até Aldebaran. Lá, Tom Joad inicia um pequeno romance com uma ET charmosa, interpretada pela Scarlett Johansson — porque todas as ETs são louras gostosas.

Mas ao final tudo dá certo. Joad volta à terra, com um carregamento de ouro trazido de Aldebaran, e toda a família (além da ET gostosa) será feliz para sempre.

É, é um roteiro ridículo e eu sei disso. Mas o que me assusta, mesmo, é que provavelmente é ainda melhor do que o filme eventualmente refeito por Spielberg.

Capitão América

Descobri, numa dessas descobertas tardias que velhos como eu fazem de vez em quanto, alguns sites que disponibilizam revistas antigas escaneadas.

O trabalho realizado pelo Quadradinhos PatópolisOnomatopéia DigitalRapadura Açucarada e Rock & Quadrinhos, entre outros, é inestimável. Escaneando e disponibilizando essas revistas antigas na web, elas realizam um trabalho valoroso e imprescindível. Revistas em quadrinhos já extintas, manuais Disney, a história da Marvel e da DC; tudo isso está lá, disponível gratuitamente, em um serviço público de preservação da memória editorial do país que supera, de longe, o de muitas bibliotecas. Os donos desses blogs e seus colaboradores são abnegados que compartilham com os outros suas coleções, material que gente menor tenta apenas vender em sebos por quaisquer 5 reais. Já perdi a conta do que reencontrei ali — coisas que tinha lido há mais de 30 anos, que tinham sido parte da minha formação, mas que não tinha esquecido totalmente. As pequenas felicidades que esse pessoal possibilita são inestimáveis, e eu gostaria que eles soubessem disso.

Acima de tudo, tudo isso tem um grande valor afetivo para muitas pessoas, e eu certamente estou entre elas. Reencontrar essas revistas, depois de tanto tempo, é algo que me faz mais feliz e mais certo do que fui. Elas atualizam e corrigem minha própria cronologia; me ajudam a me situar novamente no tempo, avivam e refazem minhas memórias.

Foi lá, por exemplo, que reencontrei as revistinhas do Capitão América.

Naqueles primeiros anos da década de 80, quando comprei virtualmente todas as revistas de super-heróis que a editora Abril publicava (eu não gostava da RGE, hoje Globo, por causa do papel muito inferior), o Capitão América era o meu preferido.Tudo começou com ele. Embora eu tivesse comprados outras esporadicamente ao longo dos anos anteriores, foi a Capitão América 20 que comprei num sábado de fevereiro ou março de 1981 porque era a mais barata na banca, e que me fez desenvolver uma paixão por histórias de super-heróis que duraria muitos anos. A Capitão América e a Heróis da TV acabariam, nos anos seguintes, substituindo as revistinhas Disney que eu comprava até então; tantas revistas já não caberiam no meu orçamento e, mais que isso, não caberiam mais na minha idade. Olhando agora, tantos anos depois, representaram um ritual de passagem. Quem diria. Cada um tem o que pode. Gary Grimes tem a Jennifer O’Neill; eu tive Stan Lee e John Buscema. Coitado de mim.

Mas na época isso interessava pouco e eu não sabia que aqueles super-heróis que passei a ler — Capitão América, Homem de Ferro, Surfista Prateado, Thor, Capitão Marvel, Mestre do Kung Fu, Punhos de Ferro, sei lá o que mais — eram o segundo escalão da Marvel. Para mim, isso não interessava — até porque eu já conhecia boa parte deles dos desenhos animados exibidos pela TV Tupi. Mais tarde, em 1983, a Abril conseguiria o creme, que na virada da década estava na RGE, e passaria a publicar as revistas do Homem-Aranha, do Hulk e todos os outros super-heróis. Curiosamente, para mim foi o início do primeiro fim. Em algum momento de 1984 ou 1985 eu deixaria de comprar essas revistas. Voltaria a comprá-las mais tarde, intermitentemente — até recentemente, por sinal —, mas jamais voltaria a ser como antes.

De qualquer forma, durante muitos anos, muito tempo depois de ter abandonado e esquecido suas histórias, eu não entendi por que gostava do Capitão América — e por que, de todos os super-heróis existentes, foi justamente ele a servir de porta de entrada para mim nesse mundo. Havia outros super-heróis por aí, personagens mais adequados e mais bem-sucedidos como o Homem-Aranha — àquela altura com 20 anos de sucesso na vizinhança.

Relendo essas revistas descobri por quê. As histórias eram típicas da Marvel — ou melhor, de Stan Lee: o Capitão América sofria por um romance cheio de mal-entendidos (com uma louraça daquelas), e os dramas pessoais do seu alter ego tinham o mesmo peso das aventuras típicas do herói uniformizado. Mas, principalmente, o Capitão atravessava o drama de viver em uma era que não era a sua. Essa era a essência do seu personagem, e isso o aproximava tanto do Surfista Prateado. A diferença é que o conflito do Surfista era espacial, o estar longe de seu lugar, enquanto o do Capitão era temporal, ele que estava longe de seu tempo.

Claro que isso não era desenvolvido como, talvez, fosse hoje. Lendo essas histórias agora, mais de 30 anos depois, dá para perceber como eram tão mais leves do que o que se publica agora em quadrinhos, quase pueris. Mas ao mesmo tempo — e eu não sei o quanto há de preconceito pessoal aqui, a insistência em achar que “no meu tempo as coisas eram melhores” — elas me parecem mais interessantes, mais simples, mais palatáveis. Os tempos mudaram muito, mas aquilo que passou não perdeu totalmente seu apelo. O Capitão América em 1981 era mais interessante do que hoje. Provavelmente ele só funcionava porque, criança ainda, eu não fazia noção que ele representava. Mais tarde, a dicotomia entre o personagem e o país real levaria à decadência completa do super-herói, e mesmo hoje tenho a impressão de que ele só existe porque o meio-oeste americano ainda tem habitantes.

(As coisas não são assim tão simples e esquemáticas como escrevi aí em cima. Se eu soubesse que essa fase do Capitão América tinha sido uma das campeãs de vendas da Marvel, e que em 2010 seria considerada o quarto melhor momento da Marvel nos anos 70, talvez entendesse melhor as razões da minha paixão repentina e irremediável, e talvez devolvesse um pouquinho de respeito às opiniões e critérios da criança que fui.)

30 anos se passaram. Ao ser revivido por Stan Lee nos anos 60, ele tinha passado 20 anos congelado; hoje, para fazer sentido, teria que ter passado 70. O Capitão América é um personagem desgraçado, e sua maior desgraça não é sequer a passagem do tempo, e sim o país e a bandeira que representa. O tempo o condena, apenas: o seu país o destrói.

Mas isso é o que eu acho hoje. É tão pequeno. Reencontrar essas revistas me lembrou de um tempo em que as coisas eram mais simples e o mundo era tão grande. E isso é bom.

Abercrombie, Fitch e os idiotas

Uma campanha diferente foi deflagrada semana passada no Brasil, seguindo os moldes de campanha semelhante nos Estados Unidos. É uma resposta à declaração de Mike Jeffries, dono da marca Abercrombie & Fitch, de que não faz roupas para gordos porque quer apenas gente descolada e invejável usando seu produto.

Para mostrar o quão inadequadas as pessoas consideraram essas declarações, grupos nos EUA e aqui resolveram doar roupas da marca para mendigos, em protesto à discriminação e ao preconceito de Jeffries.

Essa campanha é uma das coisas mais idiotas e hipócritas que vi em muito tempo, e é prova cabal da imbecilidade generalizada neste início de século.

Seu problema central é que a Abercrombie & Fitch tem o direito de focar seu produto no target que quiser. Se não quer vender para gordos, problema dela. Mas ela só faz isso — abdicar de um nicho em crescimento rápido e constante — porque funciona, porque é assim que o rebanho age: ele está disposto a pagar um ágio bem razoável por uma simples imagem, e nada mais que isso.

O erro do dono da Abercrombie não foi ser canalha — até porque não fazer roupa para gordos não é canalhice, é opção de mercado, assim como não é canalhice da Chanel não fazer roupas para pobres. Seu erro foi explicar a lógica do que faz. Numa sociedade cada vez mais hipócrita, que transforma uma alucinada como a Angelina Jolie em heroína, você pode fazer o que quiser, desde que não assuma publicamente.

A Abercrombie & Fitch não é uma grife de preços excessivamente exorbitantes. Segundo dizem, suas camisas custam em torno de 80 reais. São caras para o que realmente valem, mas não são inacessíveis (parece ser, por exemplo, a marca preferida do bom Nissim Ourfali — que é magro). É uma roupa para a classe média metida a besta. Mas isso é o beabá da propaganda: posicione bem o seu produto, faça-o parecer melhor do que é, e eles virão até você.

O posicionamento da Abercrombie & Fitch é válido do ponto de vista do mercado. Funciona porque entende o comportamento da humanidade. Mas as mesmas pessoas que compram, ou gostariam de comprar, suas roupas por serem pretensamente elitistas não admitem que ela assuma sua postura, porque isso as forçaria a admitir que esses também são os seus valores.

Em vez de protestar, as pessoas deviam era procurar entender o que faz a marca se posicionar dessa forma, esnobando a legião de gordinhos que atravancam as filas do McDonald’s, e entender o que as faz desejar uma camiseta comum com uns retalhos costurados em cima. Mas é difícil que façam, porque não iam gostar muito das conclusões. Assim como Mike Jeffries, elas também querem roupas que não sirvam em gordos e que façam delas, automaticamente, pessoas mais “cool” do que jamais conseguiriam ser sem ajuda. É por isso que tem coisas na vida que a gente simplesmente não deve falar: este é um século que recompensa a hipocrisia e pune a honestidade.

Mas é a campanha em si, nascida nos EUA, que me incomoda — ao resto já estou me acostumando, anos exposto ao Facebook me acostumaram a esse macaquear impostor. Me incomoda não apenas porque esse pessoal não passa muito de um bando de idiotas fúteis que se mobiliza para brigar com uma marca direcionada a gente que se pretende bonita, magra e rica e, portanto, ignorada pela grande maioria da humanidade. Mas porque a própria ação é ainda mais elitista que a Abercrombie & Fitch.

O foco aqui não é o bem-estar desse pessoal que está no extremo oposto do público-alvo da marca: é só protestar contra o posicionamento assumido por ela, diminuindo seu valor ao associá-la a mendigos. O recado é simples: “Vocês não são ‘cool’ porque mendigos vestem suas camisas. Mendigos, ora. E isso me faz mais ‘cool’ que vocês”

Pelo preço que se compra uma camisa da Abercrombie & Fitch o sujeito que está fazendo essa campanha poderia comprar alguns cobertores para proteger os mendigos paulistanos no frio que se aproxima. Era isso que o faria melhor que o Mike Jefrries, não um protesto que humilha seres humanos destituídos, utilizando-os apenas para desvalorizar uma marca de roupas.

Isso é o mais triste nesse protesto: esses assim chamados militantes, com sua “ira justa” de classe média estultificada, dão mais valor à marca que à dignidade das pessoas. Mas quem está preocupado com eles? Mendigos não são tão importantes quanto uma marca que não gosta de gordos, nem quanto a mídia gratuita que se pode conseguir às suas custas. Mas pelo menos agora eles dormem na rua vestindo uma camisa da Abercrombie & Fitch.

Balada do Andarilho Ramon

É simples.

Os acordes, como eu aprendi há quase 30 anos, são G / Em / G / Em / Am / C / D, repetidos em cada estrofe (e aí você pode, se quiser, brincar um pouco com os acordes de You’ve Got to Hide Your Love Away, D#4 / D / D#9 / D.

A letra é a seguinte:

Balada do Andarilho Ramon
(Braulio Tavares)

Vou lhes falar sobre um amigo
Que tornou-se andarilho
E a sua mãe ainda hoje
Espera a volta desse filho
Que antigamente era tão
Obediente e tão bom.
A sua infância foi cercada
De ternura e de carinho
Tudo fizeram pra que ele
Se tornasse um cordeirinho
Foi batizado na igreja
Com o nome de Ramón.

Todas as noites ao dormir
Fazia sua oração
E aos sete anos de idade
Fez a primeira comunhão.
Velas de cera, terno branco,
Flores de papel crepon.
Foi sempre o melhor aluno
No curso ginasial
E até hoje os professores
Do Colégio Estadual
Inda recordam o talento
E a disciplina de Ramón.

Mas ao chegar os quinze anos
Tudo muda de repente
Pois ninguém sabe o que se passa
Em cuca de adolescente
E haja gíria extravagante,
Barba grande e muito som.
Ele lê livros e jornais
Com uma linguagem esquisita
Passa a sair com moças feias
Que ele diz que são bonitas
Ninguém em casa compreende
O que se passa com Ramón.

O pai acende um charuto,
Traça as cartas do baralho
E diz que o problema do filho
É só falta de trabalho
E esses LPs dos Beatles,
Bob Dylan e Rolling Stones.
Ele esbraveja pela casa,
Diz que a coisa é muito séria.
E que vai falar com um amigo
Oficial da Força Aérea
Que é pra ver se arranja vaga
Pra alistar o seu Ramón.

Mas sua mãe ainda acha
Que são as más companhias
Pois se não fossem os amigos
O seu filho poderia
Ser um bom pai de família
Ser católico e maçom.
Ela ouve nomes esquisitos
Cineclube, diretório
Rock and roll, latinoamérica
E corre pro oratório
Rezando um terço pede a Deus
Que cuide bem do seu Ramón.

O pai rugindo, a mãe chorando,
A casa era um pandemônio
E no fim de sessenta e oito
Foi guilhotinado o sonho
Dos estudantes marselheses
A cantar marchons, marchons.
E então quando foi mil novecentos
E sessenta e nove
Deixou na porta um bilhete
Em que dizia peace and love
E desde então ninguém mais soube
O que foi feito de Ramón.

Me disse um cara que vai sempre
Ao Rio Grande do Sul
Que foi tomar umas cervejas
Lá no bar Danúbio Azul
E viu um cabeludo estranho
Trabalhando de garçom.
Ele sorria e cantava
Enquanto servia as mesas
E enganava o patrão
Quando cobrava as despesas
O cara nunca perguntou,
Mas pensa que era Ramón.

Mas me disseram que um dia
Ele foi visto numa esquina
De um pequeno vilarejo
Lá em Santa Catarina
Onde as mulheres usam anágua,
Espartilho e califon.
E logo ali o idiota
Acabou se apaixonando
Pela filha de um antigo
Imigrante italiano
Que sustenta ainda hoje
Os quatro filhos de Ramón.

Teve também um cabeludo
Que foi visto em Cabedelo
Usando um chapéu de palha
Para esconder o cabelo
E embarcando num navio
Com destino a Hong Kong.
No bolso levava a gaita
E nas costas a mochila
Tinha um sorriso irônico
E a cuca muito tranquila
E só por essa descrição
Eu penso que era Ramón.

Mas me contaram que ele andou
Um certo tempo na Argentina
Lá se casou com uma chilena
E foi pai de uma menina
Que nasceu no dia exato
Do regresso de Perón.
Ele andou nas passeatas
Pintou versos sobre os muros
Mas depois chegou Videla
E os tempos ficaram duros
E nem mesmo a chilena
Tem notícias de Ramón.

Me disseram que um dia
Ele foi preso na fronteira
Quatro guardas o pegaram
Lhe rasparam a cabeleira
E o deixaram vários meses
Na cadeia de Assunción.
Mandou mais de dez bilhetes
Para o cônsul brasileiro
E uma noite foi levado
A passear — com o carcereiro
E quem me diz onde é que fica
A sepultura de Ramón?

A sua mãe ainda o espera
Quer esteja vivo ou morto
O pai diz “pau que nasce torto
Não tem jeito, morre torto”
E o irmão mais novo está viajando,
Mas no Projeto Rondon
Vocês desculpem se a história
Vai ficar inacabada
Não vou dizer se a escolha dele
Estava certa ou errada
Tem os que ficam como eu
E um que parte, que é Ramón.

Bunda

Sabe aquelas bundas que passam na sua frente e deixam você pensando “que bunda, meu Deus?”

Era daquelas. Passou na minha frente há poucos instantes, e depois de dizer “que bunda, meu Deus”, parei para pensar na razão pela qual um belo depósito de gordura, aparentemente concebido com o fim prosaico e pragmático de acumular energia para dias difíceis, cresceu tanto no coração das gentes, cresceu tanto no meu coração, e hoje chama tanto a atenção, a minha atenção ao menos, e faz com que sua boca se encha d’água involuntariamente, e lhe faz tecer comentários que não podem e não devem ser publicados.

É claro que sacanagem e raciocínio não combinam — talvez sejam até mutuamente excludentes. Cá entre nós, parar para pensar nas razões pelas quais a visão de uma bunda deflagra reações fisiológicas em determinadas pessoas é perda de tempo, é consolo de pobre coitado que não tem a bunda ao seu dispor. E eu sequer sou esse fã absoluto de bunda; lembro de tantas namoradas sem bunda, tadinhas delas. Bunda não define caráter.

Mas bunda é algo belo, é algo que transcende. Talvez não aquelas bundas criadas à base de anabolizante de cavalo, ou arredondadas artificialmente em anos de academia — tá, eu estou exagerando, na falta de coisa melhor vão essas mesmo, que é melhor bunda esforçada que bunda nenhuma; mas a bunda bonitinha é aquela bunda natural, mesmo quando xoxinha, mesmo quando tímida. Não, ela pode ser o que quiser, só não pode ser bicho do mato e se esconder da visão de todos, ela precisa ao menos existir.

E quando ela quer mais que existir, quando quer ficar bela para o seu amado, então ela se veeste de celulite, um pouquinho que seja. E que delícia é ver as moças reclamando de suas celulites, e tentando se livrar delas, quando a celulite é quase pré-requisito para a beleza de uma bunda; bunda sem celulite é bunda de travesti, e essas não me interessam, por belas que sejam.

Bunda, rebolado e celulite; nem mesmo o diabo conseguiu inventar trio melhor, e olha que o canhoto inventa coisa de que até Deus duvida. Mas isso não interessa agora — o diabo invente o que quiser, que a visão da bunda passando em rebolado discreto na minha frente ainda não saiu da minha retina, eu a vejo nitidamente quando fecho os olhos, acompanho o ritmo discreto do seu cai pra lá, cai pra cá. Não quero saber de Deus nem do diabo. Eu agora não quero filosofia nenhuma: quero só continuar sentindo a felicidade estética de ver uma bela bunda passar diante de mim, e que bunda, meu Deus.