A tristeza numa banca de revistas

Dentre as coisas mais tristes que podem me acontecer cotidianamente hoje em dia é entrar em uma banca de revistas.

Elas estão acabando, a gente sabe. A internet as destruiu. Em alguns lugares, como Aracaju, essa destruição se dá de maneira ainda mais acelerada, e diz tão mal de seus moradores. Durante a pandemia, eu dava voltas de carro pela cidade vazia, me sentindo Charlton Heston em “A Última Esperança da Terra”, e percebi que na zona norte já não existia uma única banca de revistas em funcionamento. Nenhuma. No resto da cidade, com pouco mais de 650 mil habitantes, sei de apenas seis que ainda vendem jornais ou revistas. O resto virou outra coisa, qualquer coisa, ou simplesmente desapareceu.

Em Salvador, quase todas as bancas que marcaram minha infância fecharam, vendem água ou frutas hoje, com exceção da Banca Coelho, em frente ao Hospital Espanhol, que ainda vende jornais, e a Banca do Fernando, na Princesa Leopoldina. Sumiram a banca do Renato no Largo da Barra, a Banca Fróes na esquina da Euclides da Cunha com Amélia Rodrigues, na Graça, e tantas outras de que ainda consigo lembrar. Sobrevivem muitas, é verdade, especialmente na Barra — talvez porque a Barra seja lugar de moradores velhos e de turistas e ladrões e traficantes e putas novos, não sei — mas eu e seus donos sabemos que seu tempo está contado.

Quando vejo uma banca, hoje, vejo algo que cumpre seus últimos dias de vida antes de uma execução dolorosa com data já marcada, uma espécie de último moicano resistindo quixotescamente à própria morte.

Mas não é daí que vem a tristeza, porque a essa sua sina eu já me conformei há muito tempo.

Ela vem porque sempre que entro em uma das poucas bancas que ainda restam quero desesperadamente comprar alguma coisa, uma revista, um jornal. Mas já há anos as bancas daqui não vendem os jornais de fora, e não consigo ver sentido em nenhuma revista à disposição, porque já vi tudo o que me interessava antes, na internet.

E nessas horas me sinto um assassino involuntário, um linchador que, diante do corpo estendido no chão, finalmente tem a consciência do que ajudou a fazer.

As bancas estão acabando, e a culpa é minha também.

Da arte de idiotizar livros

A discussão sobre a reescrita de livros para crianças continua, e é espantoso que continue.

Ainda lembro da discussão sobre Monteiro Lobato. Essa, especificamente, me cansou desde que percebi que é essencialmente uma discussão acadêmica, isolada do mundo, que só interessa de verdade ao pessoal das universidades.

Porque crianças não leem mais Monteiro Lobato. Leem “Harry Potter”, “Crepúsculo”, “Diário de um Banana”, “Gossip Girl”. O mundo de fantasia ainda oitocentista e semirrural de Lobato já não fala ao universo infantil, muito menos ao adolescente. O pássaro roca ninguém mais sabe o que é, mocha é um tipo de café e não uma vaca sem chifres e o Curupira existe ainda menos que o Papai Noel. Coleções de Monteiro Lobato se acumulam nos sebos como testemunhos silenciosos e empoeirados da frustração de pais que acharam que seus filhos eram iguais a eles.

No fundo, o bafafá sobre Lobato serve apenas para justificar salários e teses de professores que vivem disso: de palavras, de símbolos, de significados e “ressignificados”, por estéreis que sejam. E, para validar esses “ressignificados”, que o Racista de Taubaté se torne uma versão contemporânea do Açougueiro de Lyon, porque ultimamente, no ranking dos preconceitos e ódios, o antissemitismo anda perdendo lugar para o racismo contra negros; a II Guerra Mundial foi há muito tempo, e a Palestina é logo ali.

Um tanto dessa inutilidade acomete a última discussão que acompanhei superficialmente, agora sobre Roald Dahl. Dahl, no Brasil, até onde sei é leitura recente, e se exerceu alguma influência eventual sobre bacuris patrícios foi pelo filme “A Fantástica Fábrica de Chocolates”, e não por seus livros. Quando eu era criança, nos anos 70, lia-se Verne, “Tesouros da Juventude”, “Mundo da Criança”, coleção Vagalume, o Racista de Taubaté. Eu, pelo menos, só fui ler Dahl na casa dos 30, e mesmo assim porque a editora Barracuda, brilhante e breve aventura editorial do Alfred Bilyk, me presenteou com um livro.

Mas há que se combater o mal causado pelas palavras cruéis de Dahl. Um dos personagens da Fantástica Fábrica de Chocolates, Augustus Bloop, deixou de ser “gordo” para ser “enorme”. A palavra “gordo”, aliás, foi retirada de todos os livros do finadoautor. Indiferente a tudo isso o pobre Augustus, recoberto por sua banha balouçante, continua pesando o mesmo, tanto faz se você o chama de gordo ou enorme.

Esse tipo de revisionismo é tão tacanho, e já fui terminantemente contra essas releituras. Mudei um pouco de ideia quando lembrei dos “Clássicos da Literatura Juvenil”, sobre a qual, eu eterno bêbado que não sabe que está se repetindo, escrevi várias e várias vezes aqui. A coleção, que provavelmente formou os meus gostos e pinimbas literários, era constituída majoritariamente, se não totalmente, de adaptações e simplificações. Logo, como eu sou a verdadeira medida do mundo, adaptações não são necessariamente ruins.

Mas há uma diferença entre o tipo de adaptação feita naqueles livros e essas mutilações pudibundas de agora, e ela é fundamental.

Aquelas eram tentativas de fazer livros às vezes seculares chegarem a pessoas mais jovens e menos afeitas aos meandros da escrita, através de um esforço consciente de empobrecimento e simplificação. Por exemplo, sua versão de “Os Três Mosqueteiros” simplificava a história, talvez tirasse uns detalhes importantes, mas mantinha a sua estrutura, com seus heróis imperfeitos, sem omitir o que era de fato importante. Aqui e ali os adaptadores faziam intervenções mais judiciosas, e demorou anos até eu saber que Steerforth tinha feito mal à menina Pegotty e levado a tadinha à prostituição; um dos mais bizarros, no entanto, foi a decisão incompreensível de Herberto Salles de omitir a morte de Beth em “Mulherzinhas”, embora na continuação, “A Rapaziada de Jô”, adaptada por M. Z. Camargo e publicada na mesma coleção algumas semanas depois, ela já estivesse mortinha da silva. Provavelmente Salles achou que a criançada não podia ser exposta à morte dessa forma, como hoje não podem ser expostas ao racismo; tudo o que conseguiu foi confundir os leitores.

De qualquer forma isso era raro, e só lembro desse exemplo. O que se vê agora parece com essa omissão cometida por Herberto Salles: são esforços puritanos em estabelecer uma proteção definitiva de pobres crianças idiotizadas e superprotegidas da maldade do mundo.

Um exemplo paralelo está na reedição do “Manual do Escoteiro Mirim” (outra daquelas obras fundamentais da minha infância, o que mostra quão pobre foi a minha formação. Mó inveja desse pessoal que lia “Ulysses” aos dez anos). Ele trazia umas receitas que incluíam, imagino, licores entre seus ingredientes. Agora os licores foram retirados delas, com uma notinha jogando a culpa no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Eu realmente não sei como sobrevivemos àqueles tempos duros. Devia ser graças à cachaça que bebíamos aos três anos de idade e às orgias intermináveis que fazíamos a partir dos cinco, porque não havia uma nota explicativa proibindo nada isso.

Os defensores das reescritas dizem que elas não importam tanto assim, porque as obras originais continuam aí. É a justificativa mais canalha e cínica que conheço, até porque ela é apenas parcialmente verdadeira. Esses originais vão continuar existindo para adultos que os escolherem como motivos de teses acadêmicas que serão lidas apenas por seus orientadores, mas o que estará nas livrarias ou, mais importante, nas compras governamentais serão as versões sanitizadas. Como dizia Lampião, “eu só faço o furo, quem mata é Deus”.

A questão é outra. Censurar um livro é simplesmente errado, seja qual for a forma de censura. Essa postura lembra cada vez a prática comum nos EUA de banir livros de bibliotecas e escolas — porque uma vez aberto o precedente, nada impede que todo mundo que se sinta incomodado ou ofendido por um livro tente proibir a sua leitura pelos outros, movidos pelo proselitismo de bons cristãos. E é aí que a certeza e presunção morais e éticas dos ativistas se tornam perigosas e um enorme tiro pela culatra. Em 2022, o livro mais banido nas escolas americanas foi Gender Queer, de Maia Kobabe, porque traz temática gay e é, alegadamente, sexualmente explícito. O segundo livro mais banido dos EUA na década passada foi essa série subversiva chamada “Capitão Cueca”.

Uma vez aberto, o portão da estupidez não pode mais ser fechado.

O mais grave é que toda a essa atividade protetora, policialesca, é essencialmente um exercício obtuso de subestimação da inteligência das pessoas. Defensores dessas proibições gostam de usar o argumento de que cada “interpretação tem seu tempo” para justificar seus cortes, mas o esquecem na hora de admitir a inteligência das pessoas.

Não custa tomar o racismo de Lobato, que na confusão que umas gentes fazem entre autor e obra dizem estar materializado em expressões racistas ditas pela Emília, como exemplo: se livros são o retrato do seu tempo, crianças também são. E certamente são mais inteligentes que a maior parte dos seus autonomeados protetores. Tenho sérias, seriíssimas dúvidas de que precisem ser protegidas do beiço da Tia Nastácia: o que era normal em 1930 hoje soa automaticamente incômodo para elas, criadas em um ambiente onde essas manifestações são cotidianamente malvistas, policiadas e condenadas. Até mesmo adultos e velhos como eu passam por fenômeno semelhante: o que era cotidiano e normal trinta, quarenta anos atrás, hoje soa incômodo e simplesmente errado.

Mas para os zelotes do vernáculo, se as crianças brancas lerem um livro em que a Emília, dada a falar os mais variados tipos de disparates, ofenda a Tia Nastácia, se transformarão automaticamente em racistas; se negras, ficarão deprimidas e terão sua autoestima destroçada ao verem as ofensas da boneca de macela, incapazes de identificar isso como racismo — assim como, para os fiscais do rabo alheio, ler Gender Queer vai transformar seus filhos em travestis enlouquecidas de fio dental na caçamba de uma caminhonete purpurinada cantando enlouquecidas Loco Mia.

Pensando bem, talvez o mundo fosse melhor se isso fosse verdade.

1001 seriados para ver antes de morrer

Por dez reais eu compro até livro de autoajuda, tipo “Foco Quântico e Seja Grande” do coach Benjamin Arrola, autor célebre que na virada do ano fez muito sucesso nas frentes de quartéis e entre lutadores de MMA que levaram pancada demais na cabeça.

Em vez disso, comprei há algum tempo, num desses saldões da Amazon, “1001 Séries para Assistir Antes de Morrer”, editado pela Sextante e com o qual, imagino e espero, a editora teve prejuízo significativo. Anos atrás ganhei “501 Filmes Para Ver Antes de Morrer”, que não é ruim, e achei que esse podia valer alguma coisa. Triste engano.

É um calhamaço de 960 páginas em couché fosco, com muitas fotos, muito pesado e difícil de manusear. O título é enganoso. Não são apenas o que entendemos por séries, ou seriados. Há programas de auditório, game shows, telenovelas, programas de esquetes humorísticos, reality shows. Título melhor seria “1001 TV Shows”, tradução adequada seria “programas de TV”. Foi um livro caro de fazer, mas pelo visto isso não sensibilizou ninguém e ele terminou na pilha de encalhes, de onde o resgatei como meninas bobinhas resgatam gatos.

O prejuízo é merecido porque, para começar, não existem 1001 séries de TV que merecem mesmo ser vistos. Seriados são longos demais. Assistir a “Bonanza” inteiro, por exemplo, demandaria mais de 400 horas da vida de uma criatura, que poderia fazer coisas melhores com esse tempo — uma trepanação, por exemplo, ou uma cirurgia de vesícula. É o tipo de livro que só pode existir nestes tempos de fartura excessiva: informação apenas curiosa, análise pífia e uma vocação contemporânea para criar um tipo estranho de ansiedade inútil: você precisa ver isso, você precisa fazer aquilo.

Sendo generoso de verdade, há uns 20 ou 30 seriados que fizeram a TV avançar, como I Love Lucy ou The Sopranos, e unss outras 50 que são tão bons que merecem ser realmente vistos mesmo agora. O resto é lixo para gastar tinta em gráfica.

Além disso, esse livro chinfrim não inclui “Daniel Boone”. Eu até entenderia se ele tratasse dos dez melhores seriados, até 100. Mas quebrar a cabeça para arranjar mil programas de TV que possam ser recomendados por alguma coisa e não incluir um seriado inesquecível, que durou seis temporadas, só pode ser pirraça. (Sim, é implicância pessoal. Ninguém mexe com meus amores. Danem-se, editores canalhas.)

Mas mesmo descontando tudo isso, até a minha ranhetice, este é um livro realmente ruim. É essencialmente um apanhado cronológico de programas de TV americanos e ingleses, com alguns franceses e um ou outro de outras nacionalidades para ajudar o livro a ser vendido nesses países. Parece não haver um critério mais rígido nem uma correta hierarquia de importância de séries, mas é só impressão: essa diferença existe, só que se dá no uso de fotos maiores. Os textos têm basicamente o mesmo tamanho. Um seriado de segunda ou um sucesso absoluto às vezes têm quase o mesmo peso.

O Brasil está presente com “Sua Vida Me Pertence”, a primeira telenovela brasileira. Esse é talvez o indício mais gritante da estupidez que envolve todo esse livro. Quem a incluiu não sabe do que está falando: procurou o nome numa enciclopédia qualquer e a colocou no livro porque, bem ou mal, é um marco histórico. Mas o fato é que ninguém viu essa novela de 1951 — no máximo uns poucos milhares de paulistas, que se ainda vivos já passaram dos 80 anos. Pior, ninguém pode assistir a ela porque a novela não existe. É do tempo da TV ao vivo.

Sinto ser eu a lhe dizer isso, mas você vai morrer sem ver “Sua Vida Me Pertence”, e sua vida terá sido incompleta e insatisfatória, e não valeu nada, que vida inútil você levou. Triste e ingrato fim, o seu e o meu e o de todo mundo.

Mas posso lhe oferecer um pequeno consolo.

Se escrevi acima que espero que a editora tenha tido um bom prejuízo com esse livro, é porque a preguiça merece ser recompensada com o opróbrio e o encalhe. Fossem menos preguiçosos e tirariam aquele amontoado de seriados ingleses de que jamais ouvimos falar e colocavam algumas das grandes produções brasileiras.

A TV nacional sempre foi melhor que o nosso cinema, e se me perdoam a pachequice, melhor que a maioria das TVs do mundo. Programas como “Chico City”, novelas como “Roque Santeiro”, seriados como “Carga Pesada” ou “Malu Mulher” ou “Sítio do Picapau Amarelo”, minisséries como “Anos Dourados”, “Hoje é Dia de Maria” poderiam substituir grande parte dos seriados obscuros, nunca exibidos no Brasil, que incluíram aqui. Fariam isso com honra e glória e, principalmente, maior apelo comercial.

Fizessem isso e eu não estaria aqui, esculhambando algo que nem vale a pena ser esculhambado.

Melhor do que colocar uma novela que ninguém pode ver, como “Sua Vida Me Pertence”, seria detalhar melhor os mais importantes seriados antigos e atuais: datas, episódios, equipe, trívia, essas coisas. É verdade que esses dados provavelmente já estão na Wikipedia ou em outros wikis internet afora, mas a organização dessas informações em um livro ainda é algo insuperável. Melhor, poderiam selecionar os melhores e investir em informações e avaliações críticas realmente interessantes. Desperdiçaram essa chance.

Mas o pior, mesmo, é a ideia de “ver antes de morrer”. Há algo de doente numa sociedade que vive em angústia permanente, sob pressão para fazer coisas que nem quer tanto fazer, tornando as pessoas devedoras eternas de algo que não receberam. Fazer isso antes de morrer, comer aquilo antes de bater as botas, contar as misérias de sua vida sexual porque todo mundo está fazendo isso antes que o tempo acabe. Precisamos vender, precisamos vender, e para isso precisamos criar ansiedades inúteis em uma humanidade que está perdendo a capacidade de exercer algum critério de sensatez.

Ainda tenho dúvidas de que vou morrer um dia. A única certeza, mesmo, é a de que vou morrer pouco me lixando para os tantos e tantos e tantos seriados que não vi. Nem para isso esse livro serviu.

Da arte de reescrever a história e enganar otários

Revisionismo é um troço que me incomoda desde os tempos do camarada Kruschev. Tanto pior para mim, porque estes tempos de esgotamento criativo se transformaram na era das releituras e “ressignificações” e outras bobagens do tipo.

Por esses dias andaram comemorando o sexagésimo aniversário de lançamento do Please Please Me, o LP de estreia dos Beatles. Semana passada o youtuber Régis Tadeu fez um vídeo louvando as maravilhas desse disco “revolucionário”. Pouco antes, apareceu para mim no Facebook o anúncio de um curso — isso mesmo, um curso — da CCE/PUC/Rio, seja lá o que isso for, para estudar “toda a repercussão de seu lançamento no cenário musical brasileiro e mundial”.

Quanta besteira e quanta picaretagem, meu santo Asmodeu.

Sabe qual foi a importância mundial do Please Please Me? Nenhuma.

Sabe qual foi a importância no Brasil? Menor ainda.

Vamos começar pelo Brasil, porque a explicação é mais simples. Esse disco só foi lançado aqui em 1976, seis anos depois do fim da banda. Até 1965, a discografia brasileira era totalmente diferente da inglesa. Parte das faixas do Please Please Me tinham sido espalhadas pelos dois primeiros álbuns brasileiros, uma no “Beatlemania” e outras seis no “Beatles Again”. Foi apenas em 1976 que a EMI tirou de catálogo os discos lançados até aquele ano, substituindo-os pelos originais ingleses. Fez isso no mundo inteiro.

Se no Brasil a sua inexistência — a não ser em uns poucos exemplares importados por uns poucos abençoados pela Fortuna e pela fortuna, o que é insignificante — levou à absoluta desimportância em seu tempo, na Inglaterra a história é diferente; e é por não conhecer a história dos Beatles e da indústria fonográfica que as pessoas repetem bobagens como essa.

Mas não é tão difícil de entender. Basta olhar para o próprio Please Please Me. O disco tem 14 faixas. Quatro delas são os compactos lançados anteriormente. Outras seis são covers. Restam quatro faixas originais da dupla de compositores que fez história ao bater pé e exigir que seus primeiros compactos tivessem apenas canções próprias.

(Descontando os lados A dos compactos incluídos, apenas duas das canções do álbum tiveram vida longa: Twist and Shout, depois de redescoberta no filme “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1987, e I Saw Her Standing There, que ganhou vida nova quando Paul McCartney voltou aos palcos no final dos anos 80 e a incorporou ao seu setlist.)

A questão é que LPs não significavam nada naquele comecinho dos anos 60. Eram basicamente coletâneas de compactos e umas faixas de segunda para completar o espaço que faltava. Não é à toa que o título completo do disco é Please Please Me — with Love Me Do and 12 Other Songs. Comprava um LP quem gostava muito de um artista, mas não era para eles que as gravadoras trabalhavam.

O que importava naquele momento eram os compactos. Eram eles que norteavam o mercado e o público, mediados pelas rádios. Para os Beatles, importante mesmo foram o compacto Please Please Me, um disco — este, sim — revolucionário que mudou o cenário da música inglesa, e um pouco mais tarde She Loves You, que catalisou a beatlemania que vinha sendo gestada nos meses anteriores. Até o fim da banda, a grande luta de Lennon e McCartney era emplacar o lado A do próximo compacto, e era para eles que reservavam suas melhores canções — I Want to Hold Your Hand, I Feel Fine, Day Tripper, Strawberry Fields Forever, Penny Lane, Hey Jude nunca foram incluídas em um LP original. O resto, como McCartney sempre lembra, eram “fillers”, canções compostas para completar o álbum. Às vezes não conseguiam e eram obrigados a procurar material antigo e previamente descartado, como Wait no Rubber Soul.

Mas a história dos Beatles é uma história em construção permanente. Eles foram um dos responsáveis pela consolidação do LP como objeto cultural importante, mas isso só se daria alguns anos depois. Antes que eles atentassem para isso, outros faziam seu papel na valorização dessa mídia: Bob Dylan, por exemplo. Mas o tempo passou, os Beatles ocuparam de maneira incontestável o topo do Olimpo da música mundial. O Please Please Me passou a ter uma importância que nunca teve, o fato de ter boa parte de suas canções gravadas em 11 horas passou a ser motivo de admiração e as gentes esqueceram que isso era muito comum em seu tempo. E nestes tempos duros, afinal, as pessoas e as instituições precisam ter assunto para descolar um troco. Faz parte.

Mas eu ainda estou intrigado com esse curso. Fico realmente maravilhado e estupefato diante da possibilidade de que alguém realmente pague por isso. Penso nisso, na abundância de bestas neste mundo despirocado, e dou um esporro em mim mesmo: “É por isso que você é pobre, otário”. Felizmente caio em mim rapidinho: pobre, mas honesto. Só que nunca sei se isso é consolo suficiente.

IA

Primeiro testo o ChatGPT e me assusto, porque peço um roteiro de comercial passando um briefing mínimo e o que recebo é melhor que muita coisa que já recebi de agências, com briefings bem melhores.

Diabo, é melhor até que muita coisa que eu já fiz.

Agora Júnior me manda um vídeo do Gen-2, que cria e edita vídeos a partir de textos.

Eu mando para Peneluc, e aviso:

“Vamos nos acostumar a tomar no cu, porque é isso que vai sobrar pra gente.”

Peneluc, tão mais cético que eu, responde:

“E você acha que não vai ter uma porrada de robozinho tomando no cu no lugar da gente?”

Oscars 2023

Avatar não prestava em 2009, presta ainda menos em 2023.

Top Gun: Maverick nesta lista é quase uma ofensa. Não por ser um mau filme, que isso ele não é. Mas tampouco vai além do artesanato tecnológico e excelência estética em cenas de ação que ostenta como grande trunfo. É uma vergonha que a sequência de um filme que há menos de 40 anos era apenas divertimento escapista para adolescentes hoje concorra ao Oscar. Um filme menor, sob todos os aspectos. Não vale o que Tom Cruise gasta em cirurgias plásticas.

Elvis é um Baz Luhrman repetitivo e esgotado, que junta duas tradições narrativas diferentes para um resultado pífio, sem a euforia e a surpresa visuais que caracterizam filmes realmente bons como Moulin Rouge. Não o ajudam as inverdades históricas, as mentiras para forjar, nos bom e mau sentidos, um Elvis recauchutado para o mundo que ajudou a criar mas não soube acompanhar: aqui tentam transformá-lo no que nunca foi nem quis ser, roqueiro na alma, irmão do gueto, um cabra “woke” de verdade. No fim das contas, o filme não compreende nem respeita o velho ídolo que morreu cagando, embora trate melhor o seu protagonista e narrador, o coronel Tom Parker. E o ator que interpreta Elvis, Austin Butler, parece mais com Jim Morrison do que com The Pelvis.

É espantoso que Triângulo da Tristeza tenha ganhado a Palma de Ouro em Cannes; aparentemente, hoje Cannes está mais próxima do Piscinão de Ramos do que da Mônaco onde Grace Kelly seduzia Cary Grant com suas joias. Deve ter sido porque pobres gostamos de ver os ricos sendo ridicularizados, ou o hype do mundo sendo mostrado como o esforço cínico de marketing que é. A primeira parte, na verdade, é muito boa, com bons insights e flechadas certeiras. Mas então vira uma bobajada demagógica num roteiro cheio de furos e implausibilidades. “O Mordomo e a Dama”, filme que costumava ser exibido na Sessão da Tarde nos anos 80, é melhor.

Os Fabelmans é um bom Spielberg, uma ode ao cinema como forma de recriação da vida e diálogo entre as pessoas. Tem alguns excelentes momentos e impressiona ao mostrar os pais do diretor como pessoas falhas como qualquer um. Mas coitado do velho Steve: há algo de tão acadêmico, de tão morno em seus filmes, de tão velho. É a sua honestidade que mais seduz neste filme, a chance de conhecer um pouco mais da vida do sujeito; porque fora isso, não há muito mais. Spielberg já fez filmes melhores, o cinema já recebeu homenagens melhores.

Nada de Novo no Front é um belo filme, forte, capaz de mostrar o horror e a falta de sentido da guerra com capacidade. A direção é firme, correta, a fotografia é excelente, as atuações são adequadas. Mas além de ser uma refilmagem — que deveria ser falta eliminatória em uma premiação —, não tem realmente nada de novo, e os mais de 90 anos de miséria e horror humanos e a infinidade de guerras que separam as duas versões retiram muito da sua importância real.

Entre Mulheres é um filme curioso e instigante, que em uns poucos momentos chega a lembrar vagamente aqueles filmes godardianos em que se fala, fala, fala. Estabelece um debate sobre a condição feminina que escapa da demagogia, e só isso já motivo de celebração. Seria ainda melhor se fosse tratado como uma parábola dessa discussão, atemporal e num lugar imaginário, em vez de inspirado num caso real acontecido na Bolívia. De qualquer forma, é um grande resumo da discussão feminista americana atual, apesar de acabar refletindo a origem puritana religiosa de parte dessa discussão.

Tár é um filme admiravelmente bem construído, excelente em sua ambiguidade e na destreza com que narra a trajetória à la Nightmare Alley de Lydia Tár. Mas acima de tudo, é uma atuação estelar de Cate Blanchett. Eu não queria que escolher entre dar o Oscar a ela ou a Michelle Yeoh: duas atuações tão diferentes, e tão brilhantes. Uma, a de uma grande estrela que dá uma dimensão maior que a vida à sua personagem; na outra, a compreensão das minúcias e sutilezas de seus personagens.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia ter impresso “Vencedor do Oscar 2023 de Melhor Filme” em seu cartaz de lançamento, para economizar tempo. O filme traz uma mistura inteligente e surpreendente de atualidade — absorve como poucos esses vinte e poucos anos de universo de super-heróis e lhe dá uma perspectiva diferente —, inventividade formal, roteiro que em alguns momentos lembra os de Charlie Kaufman, referências diversas ao cinema, e tudo isso sobre uma base sólida e eficiente, que é a boa e velha busca pela felicidade familiar. É a receita perfeita para o prêmio, e uma provável vitória será mais que merecida.

Mas o melhor filme entre os concorrentes deste ano é Os Banshees de Inisherin — junto com o formidável EO, que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro —, um filme sensível e surpreendente, admiravelmente bem executado, com grandes diálogos, interpretações brilhantes — especialmente a de Colin Farrell — e uma visão inquietante e complexa das relações humanas. “Banshees” não dá respostas, e nos lembra que cinema, antes de mais nada, continua sendo contar bem e de um jeito novo e singular uma boa história. Fazer isso com tamanha maestria, num ano excepcional em que a maioria dos concorrentes ao Oscar é muito boa — algo cada dia mais raro, como mostram os últimos anos — é um feito e tanto.

O último baile de Carnaval

Foi há seis anos. Domingo ou segunda ou terça de Carnaval, e pela minha janela entrava o som de uma banda de baile tocando no Cotinguiba Esporte Clube.

O Cotinguiba foi clube chique, umas três vidas atrás. À beira do rio Sergipe, tinha uma grande equipe de remo, do qual meu avô, vagabundo emérito, fez parte. Era onde a elite da cidade se reunia — elite feia, provinciana, malvestida, cujo consolo e orgulho era saber que tinha gente pior por aí, nas casinhas geminadas do Bairro Industrial ou nas choupanas de palha dos pescadores da praia Formosa, logo adiante.

Mas nos anos 50 construíram o Iate Clube, e o Cotinguiba iniciou a sua decadência. De clube da elite sergipana passou a ser o segundo; verdade, aguentou mais tempo que os outros — primeiro fechou o Vasco Esporte Clube, o clube da periferia; depois foi a vez da Associação Atlética, o clube da juventude e de bailes, matinês e vesperais que também se foram aos poucos, como as folhinhas de um calendário do Sagrado Coração. Mas não podia vencer totalmente o tempo, e se ainda existe é porque oferece uma piscina e uma quadra esportiva a gente menos esnobe, e aluga seus salões para eventos e convenções de políticos.

O remo, que ainda tentou um ressurgimento nos anos 80, desapareceu para sempre, levado pelo esgoto que agora polui o rio Sergipe. O futebol, depois de uma agonia lenta e humilhante, sumiu por aí sem que ninguém perguntasse por onde andava.

O Cotinguiba é já há muito tempo o clube da periferia, mesmo localizado no primeiro bairro da zona sul.

Exatamente 30 anos antes eu tinha passado um Carnaval ali. É algo que até a mim surpreende, porque sempre achei que Carnaval é um negócio tão ruim que as pessoas têm que encher a cara para suportar — ainda mais Carnavais como o de Aracaju, que acontecia nos clubes: os mais pobres no Vasco, os mais ricos no Iate. Mas adolescentes andam em bando e existem para aplacar uma fome inextinguível, e rezava a lenda que no Carnaval as moças lhe tratavam melhor, e o Cotinguiba tinha muitas moças, muitas moças.

O Cotinguiba estava lotado, absolutamente lotado. Estava assim também porque era melhor que o Carnaval do Iate Clube. Era animado, desbragado, as moças eram mais dadas e alegres e suadas e dançavam com os braços levantados salão afora, e confete e serpentina e cerveja jogada para cima, e não existe razão para sofrer um carnaval que não seja essa, única e exclusiva.

Entrei com a carteirinha de alguém. E basicamente, o que lembro é que terminei aquela noite pendurado no capô traseiro de um Maverick a uns 100 por hora.

É outra coisa que o tempo deixou para trás. Até os anos 80, o carnaval de Aracaju era marcado por uns poucos eventos: o Baile dos Artistas, em que os homens machos do sexo masculino podiam soltar a franga trancada no armário a sete chaves durante o resto do ano, ao lado das bichas e viados e travestis; o desfile das escolas de samba na Av. Barão de Maruim, arremedo miserável de corsos mais dignos em outras paragens; e o desfile dos calhambeques logo em seguida: as pessoas compravam carros velhos, como Galaxies e Dodge Darts (imagino que antes as pessoas usassem Dauphines, Vemaguettes, Gordinis e Aero Wyllis, mas nos anos 80 eles já quase não existiam mais), pintavam e modificavam os carros e desfilavam logo após as escolas de samba. Depois, boa parte ia para a praia dar cavalos de pau. Era carnaval de rico, claro, mas também de agregados que acham bonito idiotas destruindo automóveis; como dizia o velho Valois Galvão, tem gente para tudo no mundo e ainda sobra um para comer merda. Naquele ano fui um deles.

Ia quase amanhecendo quando o pessoal que estava comigo decidiu acompanhar um amigo deles que tinha um desses calhambeques, um Maverick pintado de preto com desenhos de chamas em suas laterais. Não lembro se tinha todos os vidros, mas com certeza não tinha o para-brisa traseiro. Eles entraram no carro. Eu não ia — achava aquilo uma estupidez e para mim a noite já tinha acabado; mas decidi no último instante ir também. O carro já estava saindo quando me joguei em cima dele.

O Maverick a 100 por hora em plena Av. Beira Mar e eu ali pendurado, pensando que se eu me soltasse ia morrer e aí ia para casa chorando. Eu não tinha muita alternativa. Foram alguns momentos de pânico, mas alguém deve ter me ajudado a subir, acho. Aparentemente, eu não morri naquele dia — e se fosse para morrer num Carnaval, que fosse como Vadinho, no meio da folia, e não uma morte indigna como essa.

Decidi que aquele era o primeiro e último carnaval que eu passava no Cotinguiba, mesmo que ele tivesse tantas moças dadas e alegres, e certamente a última vez que eu chegaria perto de um desses calhambeques, que sempre achei idiotas. Cumpri o que prometi a mim mesmo.

Mas o tempo passa, as lembranças adquirem novas cores. Os bailes dos clubes foram morrendo mais rápido que um frevo de Dodô e Osmar, começando pelos mais chiques, como o do Iate. Nos anos seguintes o carnaval de Aracaju se dividiria em dois. O dos ricos aconteceria em Salvador, enquanto o Clube do Povo atraía aqueles sem algibeiras nem sorte para a praça Fausto Cardoso, no centro, para levar porrada.

Em 2017, no entanto, nada disso existia mais. Resistia, no entanto, o baile do Cotinguiba.

Devia ser umas duas da manhã quando a banda finalmente parou de tocar. Por uma curiosidade mórbida, fui até a varanda ver as pessoas saindo. E então este bloco de pedra que chamam de meu coração ficou um pouquinho apertado.

Da quadra do Cotinguiba saíam menos que quinze pessoas, provavelmente uma família só, no máximo duas. Se despediam alegres, tinham se divertido — mas eram menos de quinze almas, homens, mulheres, crianças. O Cotinguiba Esporte Clube, outrora chamado de o “tubarão da praia”, o lugar onde gente metida a besta ia se pavonear diante de gente metida a besta, comemorava seus 110 anos com uma banda tocando com galhardia para uma ou duas famílias que não tinham nada melhor para fazer na folia de Momo, sem que um Martin Scorsese registrasse isso em um filme que poderia se chamar The Last Ball.

Da tolerância

Queria saber quem foi o desgraçado que apareceu com essa ideia cretina de que temos que respeitar a crença dos outros.

Porque eu não tenho que respeitar a crença de ninguém. Tenho que respeitar o crente — ou nem isso, tenho que respeitar incondicionalmente o seu direito de acreditar no que quiser. E nada mais.

Você quer acreditar que é essa mixaria aí porque quando nasceu Júpiter estava em conjunção com Vênus, acredite. Júpiter era mesmo batuta e entrava em conjunção com Io, com Alcmena, com Ganimedes, com Antíope, com a mulher do padeiro e com uma cabrita do Quirinal desde o tempo em que ainda se raptava sabinas.

Quer acreditar em um Deus que é um e é três enquanto o padre passa o rodo nos coroinhas e mostra com quantos paus se faz uma hóstia, acredite.

Quer acreditar que o Deus que você inventou para criar um universo incompreensível em sua infinitude fica com raivinha de você se você não o adorar acima de todas as coisas, acredite.

Quer acreditar que, se você der o dízimo para o pastor, Jeová Deus vai lhe dar um Voyage 2018 e deixar as 60 prestações para você pagar, acredite

Quer acreditar que setenta virgens estarão lhe esperando depois que você se explodir num ônibus escolar, acredite.

Quer acreditar que Deus vai lhe jogar no pior círculo do inferno se você comer carne de porco, acredite.

Quer acreditar que Exu vai lhe ajudar a trazer a pessoa amada em sete dias se deixar um ebó na porta daquela vagabunda que o roubou de você, acredite.

Quer acreditar que a terra é plana — ou ainda melhor, oca com um sol interior no meio — acredite.

Quer acreditar que Jesus morreu na cruz por você, acredite.

Quer acreditar que ETs visitam este malfadado planeta para abduzir justamente os espécimes mais estúpidos ou picaretas da humanidade, acredite

Quer acreditar que oxiúros são os novos deuses, acredite, até porque ao menos oxiúros existem de verdade.

Acredite, e regale-se em sua crença. Junte-se aos seus pares e acreditem juntos. Porque você pode, e acredita no que quiser, é direito seu com ampla jurisprudência por aí, e essa é a grande maravilha do mundo, e ninguém pode tirar isso de você. Acredite. Essa é a nossa grande conquista como sociedade: acreditar na bobagem em que se quer.

Porque enquanto isso eu continuo acreditando que, se você acredita nessas coisas, você é um estúpido, meu filho.

Mais um original de Dylan e McCartney

Eu tenho um sonho.

Perguntaram a Paul McCartney quem era o único artista que o faria ficar inseguro, gaguejante, num encontro. A resposta foi simples.

“Dylan”.

Bob Dylan foi mais prolixo:

Eu sou deslumbrado por McCartney. Acho que ele é o único que me deixa pasmo. Ele é completo. E nunca deixa a bola cair. Ele tem o dom da melodia, tem o dom do ritmo, ele pode tocar qualquer instrumento. Ele pode gritar e berrar tão bem quanto qualquer um, e canta uma balada tão bem quanto qualquer outro. E suas melodias são tão naturais, é isso que impressiona… Ele é tão natural. Eu queria que ele parasse. Tudo o que sai de sua boca parece envolto em melodia.

Os dois maiores artistas da música pop ainda vivos são apenas elogios um para o outro — mais que isso, reconhecem nele alguém maior que eles mesmos. É isso. O meu sonho de consumo é um disco de Bob Dylan e Paul McCartney.

Ora, direis, grandes merdas. Todo mundo gostaria de um disco com as músicas de McCartney e as letras de Dylan.

Mas não, não. Não é isso. Bob Dylan e Paul McCartney têm mais em comum além do fato de terem perdido a voz anos atrás. No meu sonho, não é o Dylan letrista e o McCartney compositor que eu queria juntos. É o contrário.

As pessoas têm dificuldade em reconhecer em McCartney um grande letrista. Não no sentido mais óbvio, do sujeito que passa uma mensagem importante e significativa e quem sabe revolucionária em suas músicas, como Lennon sempre tentou e Dylan fez tanto e tanto. Mas uma canção não é um poema. A letra de uma canção precisa soar bem, precisa combinar e acompanhar a música, engrandecer a harmonia, e McCartney sempre teve uma capacidade sobrenatural de encaixar a letra na melodia, de dar uma musicalidade rara às palavras. Infelizmente, ele condescende excessivamente em fazer isso em detrimento do conteúdo, o que é uma pena. Mas se a música de McCartney sempre teve uma qualidade superior, quase sobrenatural em sua naturalidade que Dylan tanto admira, é também porque os sons vocais estão no lugar certo.

Depois de um período tenebroso nos anos 70 e 80 — o mundo deveria ter sido poupado de barbaridades como Saved, Shot of Love e Knocked Out Loaded, e mesmo Blood on the Tracks, me perdoem, não é tudo isso que dizem dele — Bob Dylan conseguiu se reequilibrar nos anos 90, para então se acomodar contente em álbuns musicalmente corretos mas nada ambiciosos. Ele não quer fazer um Sgt. Pepper’s, ou um OK Computer. Aparentemente, quer fazer a música de que gosta, sem grandes arroubos de invenção, e com uma elegância madura que não havia nos seus primeiros discos. Dylan se permitiu envelhecer sem traumas, fazendo o que gosta. Seus últimos álbuns têm sempre uma característica simples: a classe conservadora de quem sabe que é impossível errar com os blues ou standards que o fizeram querer sem músico em vez de um novo Holden Caulfield.

Por sua vez, depois de passar pelo mesmo período tenebroso que Dylan — devia ser algo na água dos anos 80 — McCartney continua até hoje buscando relevância e atualidade no mundo; o que mais faria alguém gravar um tecno-sei-lá-o-quê como Back in Brazil no Egypt Station de 2018? Neste momento, ele está escrevendo um musical, e sabe-se lá quando ou se lançará um novo álbum pop. Essa angústia criativa é admirável, mas muitas vezes o coloca em becos sem saída, e o que deveria soar moderno soa modernoso — vide o New, de 2013 —, exagerado, excessivo

É a combinação disso, a busca por relevância e invenção, mas também um senso de raiz, que seria possível em um encontro entre os dois. É perfeitamente possível imaginar McCartney e Dylan combinando duas personalidades musicais tão diferentes: o conservadorismo musical de Dylan e a eterna busca pela contemporaneidade de McCartney, um aparando os excessos do outro, enriquecendo o que o outro oferece: a tradição musical sólida que Dylan tanto valoriza equilibrando a necessidade do novo que McCartney busca, e vice-versa. Assim como seria fantástico ver letras que combinassem a musicalidade de McCartney e a profundidade lírica de que Dylan é capaz.

O rock — aquela música que meninos educados brancos tomaram dos negros e fizeram sua, e que ajudou a definir os caminhos do mundo por uns trinta anos, ou pouco mais — morreu há um bom tempo. É uma linguagem esgotada, e o seu sucessor mais próximo é o que hoje chamam calhordamente de R&B, música feita por computadores numa eterna e cada vez mais esmaecida reciclagem do que já foi feito mil vezes antes

Mas antes de falecer numa prateleira de saldos de CDs ele mudou o mundo como nenhuma música antes dele, e merecia um epitáfio à altura, e ninguém melhor para escrevê-lo dos que seus dois principais artífices, seus últimos gênios vivos.

Infelizmente, este é um sonho que nunca será realizado — esse e o de passar a Ava Gardner nos peitos. Porque são dois egos gigantescos, dois artistas perfeitamente cônscios de seu papel na história e, principalmente, do legado monumental que deixaram na cultura popular. Tenho a impressão de que ambos têm medo um do outro, por reconhecerem nele um artista superior, e têm a consciência do quão difícil seria o processo criativo entre eles. Do seu ponto de vista, provavelmente têm mais a perder do que ganhar com isso.

Mas não custa sonhar. Porque, sem sonhos, como envelhecer como Dylan e McCartney?