O último baile de Carnaval

Foi há seis anos. Domingo ou segunda ou terça de Carnaval, e pela minha janela entrava o som de uma banda de baile tocando no Cotinguiba Esporte Clube.

O Cotinguiba foi clube chique, umas três vidas atrás. À beira do rio Sergipe, tinha uma grande equipe de remo, do qual meu avô, vagabundo emérito, fez parte. Era onde a elite da cidade se reunia — elite feia, provinciana, malvestida, cujo consolo e orgulho era saber que tinha gente pior por aí, nas casinhas geminadas do Bairro Industrial ou nas choupanas de palha dos pescadores da praia Formosa, logo adiante.

Mas nos anos 50 construíram o Iate Clube, e o Cotinguiba iniciou a sua decadência. De clube da elite sergipana passou a ser o segundo; verdade, aguentou mais tempo que os outros — primeiro fechou o Vasco Esporte Clube, o clube da periferia; depois foi a vez da Associação Atlética, o clube da juventude e de bailes, matinês e vesperais que também se foram aos poucos, como as folhinhas de um calendário do Sagrado Coração. Mas não podia vencer totalmente o tempo, e se ainda existe é porque oferece uma piscina e uma quadra esportiva a gente menos esnobe, e aluga seus salões para eventos e convenções de políticos.

O remo, que ainda tentou um ressurgimento nos anos 80, desapareceu para sempre, levado pelo esgoto que agora polui o rio Sergipe. O futebol, depois de uma agonia lenta e humilhante, sumiu por aí sem que ninguém perguntasse por onde andava.

O Cotinguiba é já há muito tempo o clube da periferia, mesmo localizado no primeiro bairro da zona sul.

Exatamente 30 anos antes eu tinha passado um Carnaval ali. É algo que até a mim surpreende, porque sempre achei que Carnaval é um negócio tão ruim que as pessoas têm que encher a cara para suportar — ainda mais Carnavais como o de Aracaju, que acontecia nos clubes: os mais pobres no Vasco, os mais ricos no Iate. Mas adolescentes andam em bando e existem para aplacar uma fome inextinguível, e rezava a lenda que no Carnaval as moças lhe tratavam melhor, e o Cotinguiba tinha muitas moças, muitas moças.

O Cotinguiba estava lotado, absolutamente lotado. Estava assim também porque era melhor que o Carnaval do Iate Clube. Era animado, desbragado, as moças eram mais dadas e alegres e suadas e dançavam com os braços levantados salão afora, e confete e serpentina e cerveja jogada para cima, e não existe razão para sofrer um carnaval que não seja essa, única e exclusiva.

Entrei com a carteirinha de alguém. E basicamente, o que lembro é que terminei aquela noite pendurado no capô traseiro de um Maverick a uns 100 por hora.

É outra coisa que o tempo deixou para trás. Até os anos 80, o carnaval de Aracaju era marcado por uns poucos eventos: o Baile dos Artistas, em que os homens machos do sexo masculino podiam soltar a franga trancada no armário a sete chaves durante o resto do ano, ao lado das bichas e viados e travestis; o desfile das escolas de samba na Av. Barão de Maruim, arremedo miserável de corsos mais dignos em outras paragens; e o desfile dos calhambeques logo em seguida: as pessoas compravam carros velhos, como Galaxies e Dodge Darts (imagino que antes as pessoas usassem Dauphines, Vemaguettes, Gordinis e Aero Wyllis, mas nos anos 80 eles já quase não existiam mais), pintavam e modificavam os carros e desfilavam logo após as escolas de samba. Depois, boa parte ia para a praia dar cavalos de pau. Era carnaval de rico, claro, mas também de agregados que acham bonito idiotas destruindo automóveis; como dizia o velho Valois Galvão, tem gente para tudo no mundo e ainda sobra um para comer merda. Naquele ano fui um deles.

Ia quase amanhecendo quando o pessoal que estava comigo decidiu acompanhar um amigo deles que tinha um desses calhambeques, um Maverick pintado de preto com desenhos de chamas em suas laterais. Não lembro se tinha todos os vidros, mas com certeza não tinha o para-brisa traseiro. Eles entraram no carro. Eu não ia — achava aquilo uma estupidez e para mim a noite já tinha acabado; mas decidi no último instante ir também. O carro já estava saindo quando me joguei em cima dele.

O Maverick a 100 por hora em plena Av. Beira Mar e eu ali pendurado, pensando que se eu me soltasse ia morrer e aí ia para casa chorando. Eu não tinha muita alternativa. Foram alguns momentos de pânico, mas alguém deve ter me ajudado a subir, acho. Aparentemente, eu não morri naquele dia — e se fosse para morrer num Carnaval, que fosse como Vadinho, no meio da folia, e não uma morte indigna como essa.

Decidi que aquele era o primeiro e último carnaval que eu passava no Cotinguiba, mesmo que ele tivesse tantas moças dadas e alegres, e certamente a última vez que eu chegaria perto de um desses calhambeques, que sempre achei idiotas. Cumpri o que prometi a mim mesmo.

Mas o tempo passa, as lembranças adquirem novas cores. Os bailes dos clubes foram morrendo mais rápido que um frevo de Dodô e Osmar, começando pelos mais chiques, como o do Iate. Nos anos seguintes o carnaval de Aracaju se dividiria em dois. O dos ricos aconteceria em Salvador, enquanto o Clube do Povo atraía aqueles sem algibeiras nem sorte para a praça Fausto Cardoso, no centro, para levar porrada.

Em 2017, no entanto, nada disso existia mais. Resistia, no entanto, o baile do Cotinguiba.

Devia ser umas duas da manhã quando a banda finalmente parou de tocar. Por uma curiosidade mórbida, fui até a varanda ver as pessoas saindo. E então este bloco de pedra que chamam de meu coração ficou um pouquinho apertado.

Da quadra do Cotinguiba saíam menos que quinze pessoas, provavelmente uma família só, no máximo duas. Se despediam alegres, tinham se divertido — mas eram menos de quinze almas, homens, mulheres, crianças. O Cotinguiba Esporte Clube, outrora chamado de o “tubarão da praia”, o lugar onde gente metida a besta ia se pavonear diante de gente metida a besta, comemorava seus 110 anos com uma banda tocando com galhardia para uma ou duas famílias que não tinham nada melhor para fazer na folia de Momo, sem que um Martin Scorsese registrasse isso em um filme que poderia se chamar The Last Ball.

Somtrês

O site Audiorama tem uma seção com quase todas as capas da revista Somtrês.

Gente com menos de 40 anos talvez nem saiba que revista foi essa, que circulou entre 1979 e 1989 — tanto tempo atrás, tão distante quanto os primórdios do século passado. Mas no começo dos anos 80 a informação era escassa, a diversidade de equipamentos era tão menor mas mais significativa do que hoje e formatos e mídias estavam em franca evolução, depois de alguns anos de estabilidade. Era nesse contexto que a Somtrês oferecia uma janela para um mundo diferente.

Passear pelas capas traz à memória um tempo em que as pessoas se preocupavam com equipamentos de som como hoje se preocupam com vinis empoeirados — embora com mais pertinência e utilidade real. Marcas como Cygnus, ou equipamentos como o Esotech, da Gradiente, aparentemente o mais perfeito à disposição do mercado brasileiro naqueles dias, são daquelas coisas que a memória enterrou, mas que se erguem do túmulo  à primeira menção. É o que basta para colocar essa coleção de capas em boa posição no campo gigantesco das curiosidades nostálgicas, mas ela é mais que isso.

Em 87 a Somtrês previa o “som futuro”, num momento em que o CD (que ela já anunciava em 1979) começava a se popularizar no Brasil: morte do LP, queda dos preços, fim do contrabando, AM estéreo, VHS x 8mm; agora que o futuro se tornou passado, tudo parece tão distante, tão fora deste mundo. Tanta coisa não se concretizou, tanta coisa já é passado, tanta coisa não parece mais fazer sentido.

Também fica claro que a bobagem sempre grassou impune entre o pessoal que gostava de música. Lembro de ler nela que os LPs brasileiros tinham péssima prensagem, que bons mesmos eram os japoneses e, acho, os americanos ou ingleses. Podia ser. Mas lembro também de ler, sei não onde, e dito por gente que se apresentava como séria, que os CDs brasileiros eram piores que os japoneses — absurdo anti-binário que precedeu em alguns anos o terraplanismo que hoje achata o nível geral da inteligência da humanidade. Mas no fundo talvez nada tenha mudado. Talvez esse seja o mesmo pessoal que hoje deifica discos de vinil, inventando desculpas para o seu elitismo, já que ter discos importados em tempos de globalização e MP3 e Spotify ou tape decks de rolo quando o som é digital não importa mais.

O que se revelou mais permanente na Somtrês, ao contrário do que seus editores originalmente pareciam acreditar, foi a música. O Jornal do Disco era, de longe, a sua melhor seção, e com o tempo assuntos musicais se tornaram o verdadeiro cerne da revista, já que gente que simplesmente gosta de ouvir música está por aí em maior número que audiófilos, vendedores e técnicos em eletrônica. Rapidamente, uma série de produtos derivou da revista, sendo ainda melhores: a Enciclopédia do Rock, revistas sobre Elvis, Beatles, Stones, posters para cada gosto — ainda tenho uma coleção de posters dos Beatles com resenhas sobre cada faixa de cada disco escritas pela Maria Emília Kubrusly, no verso. Logo no começo, havia até uma página dedicada aos Beatles, escrita pelo Marco Antônio Mallagoli.

Lembro de praticamente todas as capas entre 1984 e 1986. Mais que isso, lembro também de algumas de seus primeiros anos, porque a Editora Três costumava reembalar seu encalhe e o colocar novamente à venda periodicamente, e eu comprei várias delas. Olhando para elas agora, me chama a atenção a mistura de serviço e música que ela tentava oferecer, e fico com a impressão de que ela era talvez meio confusa, tentando atingir públicos muito diferentes entre si.

A Somtrês foi morta pelo futuro que anunciava. Não conseguiu embarcar na onda que o Rock in Rio deflagrou no país, popularizando o rock além do eixo Rio-São Paulo. Contou também com um auxílio da Bizz, revista da editora Abril mais adequada ao público jovem — mais moderna, menos honesta, mais provinciana em seu pretenso internacionalismo, em uma editora maior — que arrebanhou boa parte da sua equipe. Seu surgimento em julho de 1985 significou a sentença de morte da revista da Editora Três, que se tornou automaticamente velha. A Bizz, em sua grandeza e canalhice, merece um post só para ela. Mas olhando agora as capas da Somtrês, congeladas em tinta e papel, tudo nela recendendo a um passado cada vez mais distante, inclusive o que para ela ainda era futuro, é impossível deixar de lembrar a sua importância.

A vida dura de quem lê portais de notícias

Argumentos identitários me cansam profundamente há muito tempo, pela miopia, pela estreiteza, pela degeneração no que Mark Lilla chama de “pseudopolítica de autoestima e de autodefinição” e pelo que Antônio Risério chama de colonialismo cultural. Ainda mais porque são eles que dão cada vez mais o tom do que passa por debate político nos portais de notícias, tornando a discussão rasa e sempre em busca de notoriedade rápida.

Mas uma dessas tais polêmicas me chamou a atenção dia desses. Leandro Narloch, citando um artigo do Risério, convocava o movimento negro a se inspirar nas sinhás negras que existiram ao longo da história, deixar de se ver como vítimas e acreditar no seu potencial, confiar no capitalismo e na sandice de que cor de pele não faz diferença neste país, o que importa é o mérito. Só és pobre porque queres, como diria qualquer coach ou pastor enquanto embolsa o dinheiro da sempre renovada legião de otários.

Um texto do Narloch não traz, nunca, nada de novo, e muito pouco que se aproveite. Ele basicamente retira de textos mais consequentes algum elemento que possa causar polêmica e indignação e o torce o bastante para que se adeque à sua visão de mundo. Não passa de opinião de terceira, tendenciosa, e só reflete a pobreza do debate público. Basicamente, é isca para atrair a atenção de gente que pensa diferente dele e justificar o seu salário.

Mas ele alcança alguma notoriedade por uma razão simples: porque em vários aspectos seus contestadores não são muito melhores que ele, e para eles compensa engolir essa isca.

O moralismo puritano que parece definir boa parte desse identitarismo exige que o debate histórico seja definido, antes de mais nada, pelos valores éticos que se defende. Por isso, para alguns desses debatedores, é mais fácil fazer polêmica com o Narloch porque, no fundo, ele existe para isso. É raso como cacimba em quinto ano de seca, de uma mediocridade profunda porque sempre reduz um elemento complexo a uma ou duas palavras de ordem. Para esses debatedores de portal e de posts de Facebook e até de blogs mixurucas como este, é um inimigo adequado e fácil, embora raramente o resultado da contra-argumentação seja ao menos razoável, porque costumeiramente apela para a defesa dos seus valores e um senso de indignação moral que deveria ter pouco lugar nesse tipo de conversa.

O artigo do Narloch comenta um livro do Antônio Risério que fala das “sinhás pretas”, mulheres negras que enriqueceram no período da escravidão e, em maior ou menor medida, dentro das brechas e oportunidades que o sistema oferecia, se adequaram a ele em posição privilegiada.

Até aí nada demais, porque isso é história e serve como contribuição à compreensão do nosso processo evolutivo e da complexidade na formação das relações de classe e etnias no país; não é problema dele se os movimentos identitários enxergam essas evidências como heresia agressiva ao seu discurso totalizante. Seu problema é outro: Narloch usa esse exemplo para dizer que o movimento negro deve mudar seus pontos de vista, temeridade que o conceito deturpado de lugar de fala não permitiria nem a gente mais bem-intencionada. Ele pinça os dados que lhe interessam para promover um negacionismo militante, que repercute facilmente entre a militância e desperta ódios imediatos.

Mas há um ponto curioso, que merece um parêntese:

Como observou certa vez o historiador Manolo Florentino (que assina a apresentação do livro de Risério), é muito mais estimulante, para negros de hoje, imaginar que seus antepassados foram em alguma medida protagonistas de seu destino. Protagonizaram ações — ações dentro dos costumes da época, como a de comprar e alugar escravos.

Desconte a última frase, que é apenas a canalhice intelectual do Narloch e o arremesso da isca. Isso me lembrou a confusão em torno daquele tal musical da Beyoncé que a Lilia Schwarcz elogiou com ressalvas, e que lhe custou uma série de ataques hidrófobos de militantes e um pedido de desculpas indevido e humilhante. A obra da Beyoncé, pelo que posso julgar a partir unicamente das descrições que li, era uma fantasia hollywoodiana, tão falsa quanto uma nota de 2,5 kwanzas, que parecia pregar justamente algo parecido. Poderia ser considerado nocivo, não fosse a autoria. Entretanto, tudo é relativo nesse mundo novo.

Mas não é disso que este post trata. O artigo do Narloch foi contestado por Itamar Vieira Junior, que o acusa de “relativizar o horror da escravidão”.

É muito ruim quando um dado histórico é apontado como uma tentativa de minimizar a tragédia da escravidão. Porque reflete uma tentativa de construir uma narrativa falsa que atende apenas a determinados interesses, coisa de um Narloch invertido. O pior é que a argumentação do Vieira Junior é ruim demais, e deliberadamente falsa, repleta de inverdades.

“Havia escravidão na África antes da chegada dos colonizadores, como houve em Roma e na Grécia Antiga”, diz Vieira Junior. Isso é só meia verdade. O que havia na África não tinha paralelo em Roma ou na Grécia. Independente da escala a que se chegou, a formação de um mercado secular, consolidado e em grande escala de escravos era um segmento importante na África. Tentando explicar  de maneira tosca e quase desrespeitosa, é como se o mundo greco-romano se servisse da escravidão para uso doméstico. O mercado africano era de exportação.

Pode ser impressão minha ou mesmo má vontade, mas esse tipo de argumento parece uma tentativa de dar status melhor e mais “humano” à escravidão intra-africana. Ele quase está dizendo “ah, mas não era só eu”. Não que para o escravo fizesse diferença entre ser escravizado por perder uma guerra ou por ser o elo fraco em um sistema comercial sofisticado, mas negar a dimensão do havia na África é negar a história.

Mas não é isso o mais grave.

Mais adiante ele afirma que o tráfico só foi possível graças ao “Estado capitalista colonial”. Isso é mentira. E não apenas porque no século XV, quando o tráfico ultramarino deu seus primeiros passos, não existia “Estado capitalista colonial”. Na verdade o desenvolvimento colonial do Brasil, baseado na agricultura extensiva e uso intensivo de mão de obra barata, só foi possível porque havia, antes, a oferta regular e abundante de escravos africanos. Certo, o Estado colonial europeu foi fundamental para consolidar ainda mais esse mercado, possibilitando uma demanda sem precedentes que destruiu estruturais sociais, dizimou a população masculina da África e da qual o continente jamais se recuperaria. Mas não foi ele quem criou esse mercado.

Escravidão é negócio, sempre foi negócio, e por mais aterrorizante que seja ver seres humanos descritos como “peças”, era algo que se sobrepunha a valores morais mesmo na época. Para os colonizadores portugueses no Brasil seria mais barato e desejável escravizar índios, como foi tentado com sucesso insuficiente. Trazer escravos da África requeria alto investimento inicial, tinha alta taxa de depreciação, perdas de material que poderiam pôr a perder todo o dinheiro gasto. Mas entre os índios brasileiros não havia estrutura de compra e venda de pessoas semelhante ao que existia na África, além de uma série de desvantagens óbvias. Assim, escravos africanos no Brasil eram mais viáveis, sujeitos a menos perdas e fugas. O investimento era mais alto, mas a relação custo/benefício era tão infinitamente melhor que a escravidão no Brasil se espalhou como metástase por todas as camadas da sociedade, dando lugar a uma rede tão complexa que, embora obviamente incapaz de minimizar o horror da escravidão, inviabiliza as visões moralistas e simplistas dos identitários de hoje.

O mais curioso é que o Vieira Junior usa essas distorções para embasar um argumento realmente válido:

A consciência histórica sobre os processos que nos trouxeram até aqui não é apenas uma retórica vitimista dos “escravizados, humilhados, exterminados”. É um passo para superação das estruturas que nos foram legadas por esse passado aviltante. Esse caminho só será possível promovendo uma discussão honesta e comprometida com os valores que elegemos como fundamentais para superar a chaga da escravidão e do racismo.

Eu gostaria de assinar embaixo. Mas também gostaria de lembrar que a chave aqui, que não foi usada, é a expressão “discussão honesta”. Não teremos uma discussão honesta se acusarmos informações que iluminam falhas em nossa argumentação de “ultraje, quiçá um crime”.

O mais grave, no entanto, é que a partir daí o texto do Vieira Junior degringola para o que há de pior nessas discussões. Ele não quer mais ver opiniões ofensivas como a do Narloch e pede que o conselho editorial da Folha de S. Paulo seja “uma ‘grade de proteção’ a favor dos valores humanos fundamentais” — ou seja, que calem o Narloch, porque liberdade de expressão só deve existir para nós. “Como disse Thiago Amparo ‘a corda do pluralismo esticou a tal ponto que’, se não fizermos nada, ela ‘nos enforcará’”, ele continua, antes de terminar com uma pergunta tão ou mais canalha que as iscas do Narloch: “Será que ele sugeriu que nos reconciliemos com a escravidão?”, o que ele sabe que não é verdade.

Eu vou parar de ler esses portais, juro que vou. Alguém tem um portal de fofocas de TV para me indicar?

História de livros

Um ano atrás comprei, depois de anos de procura, uma coleção da “Clássicos da Literatura Juvenil”.

Uma das melhores coisas em comprar livros usados é tentar descobrir as histórias por trás deles. Aqueles livros pertenceram a alguém, às vezes foram lidos por alguém. Existe uma razão para terem chegado ali. Nem sempre é uma história bonita.

Há um pequeno nicho de gente que passou a cultuar sebos e livros usados nestes tempos malucos, como cultuam vitrolas e discos de vinil — deram até para tecer loas a máquinas de escrever, mondrongos que deveriam estar bem enterrados no quintal de uma fábrica de notebooks. É gente que perde de vista o que é realmente importante — sebo é bom não porque é sebo, mas porque vende livros mais baratos e às vezes difíceis de achar —, mas também gente acostumada com um mundo fácil demais, insosso demais, talvez, que busca um romantismo que só existe de verdade em suas cabeças.

Tenho a impressão de que a maioria desse pessoal que cultua livros usados, geralmente superficial e tão empolgada com a ideia que eles materializam quanto com o livro em si, gostaria um pouco menos se soubesse como a maioria deles vai parar nos sebos: com a morte de alguém, cuja biblioteca livreiros compram por metro a preços que envergonhariam qualquer cidadão; eles sabem que muitos dos livros apenas acumularão poeira e prejuízo, mas sabem também que ali há coisas boas o suficiente para recuperar, com alguma sorte, o investimento.

Talvez seja uma história parecida com essa que está atrás dessa coleção que agora é minha.

Durante quase dois anos, uma mãe comprou, religiosamente, esses livros para sua filha. A cada duas semanas, ela passava na banca para pegar o último volume, que vinha embalado em plástico e trazia uma etiqueta prateada redonda com o preço. Muitas vezes, ela ou a filha tirava a etiqueta com cuidado e a colava na terceira capa de cada livro. Graças às etiquetas coladas com zelo eventual posso saber quanto custavam. Elas avisam que um novo volume saía quinzenalmente às terças-feiras. No início, novembro de 1971, custava 8 cruzeiros. Em maio de 72, o preço aumentou: 9 cruzeiros. Finalmente, a partir de fevereiro de 73 passaria a custar 10 cruzeiros.

Desconfio que tenha sido a mãe a colar as etiquetas. Talvez para não esquecer quanto gastara. Mas talvez porque dava tanta importância àquele objeto que não queria perder nenhum dos elementos que o fazia tão valioso ao ser exposto na banca de revistas, a oportunidade de levar literatura com boas referências para sua filha e valorizar um pouco mais o esforço em desasná-la com elegância: “Olha, eu gastei oito cruzeiros com cada um desses livros, se você aproveitou ou não, tanto se me dá.”

Não guardava apenas isso. Tudo o que vinha no pacote era colocado com cuidado dentro dos livros. Em maio de 1972 a Abril lançava outra série de fascículos, “Os Cientistas”; dá para acompanhar o lançamento nos livros daquele mês. No volume 12 foi guardado um folder anunciando a nova coleção; no 13, um folder maior detalha a coleção e os brindes que a acompanhavam.

No volume 29 um papelinho anunciava, com um ano de atraso, que a partir daquele número o texto dos livros seguiria as normas do novo acordo ortográfico, de dezembro de 1971. Ia-se o acento grave de sòzinho, e sem o acento diferencial como distinguir êle da letra ele, ou o govêrno que governo?

Mas algo aconteceu quando a coleção chegou ao número 41.

Faltavam apenas dezoito semanas para completar a coleção. Durante quase dois anos, ela comprou religiosamente cada livro; mas de repente parou. Nunca mais, disse o corvo.

Faltava tão pouco. E agora só me resta imaginar por quê.

A hipótese mais óbvia: faltou dinheiro. Era 1973 — o ano do fim do milagre econômico, do choque do petróleo. Ou o casamento acabou e outras prioridades surgiram. Mas duvido, duvido muito. Ela deixou de comprar porque cansou de ver os livros intocados na estante. Porque não valia a pena continuar comprando livros que ninguém lia.

São os brindes involuntários, os mementos esquecidos dentro dos livros, que contam essa história. No volume 2, “O Conde de Monte Cristo”, um cupom de caixa registradora da Eletro Radiobraz S/A, que em 12 de dezembro de 71 tinha loja à Brig. Gavião Peixoto, 354, Lapa, City, São Paulo; isso foi depois dela abrir o capital, antes de ser vendida ao Pão de Açúcar e muito antes de ver sua marca desaparecer. Naquele dia, alheia a tudo isso, a mulher que comprava esses livros toda quinzena fez as compras do mês, no valor total de Cr$ 131,21. No volume 6, “Alice no País das Maravilhas / Alice no País do Espelho”, um cartão singelo de Natal de 73, em que sua colega Cibeli faz votos de um feliz Natal. No volume 16, “Mulherzinhas”, uma natureza morta decalcada em papel de seda com caneta esferográfica.

É a nota fiscal que permite concluir que esses livros foram comprados por sua mãe, que fazia compras na Eletro e guardou o cupom no livro que tinha acabado de comprar para sua filha.  São o cartão e o desenho que me dão a certeza de que ela comprou os livros para sua filha, que leu apenas os títulos mais atraentes para meninas, nos quais eventualmente guardava pequenas coisas do cotidiano, e deixava os outros descansando na estante, relatos de aventuras tão masculinas, com todo o material que ainda hoje está guardado lá, como folders e avisos.

É uma história possível entre tantas, não há nada de novo nisso. O que é novo é que depois de tanto tempo finalmente percebo algo que sempre me passou batido: o quanto essa coleção era masculina. Era para garotos, antes que meninas.

Ao longo de alguns anos, li e reli todos aqueles livros. Mas perdi a conta de quantas vezes reli “A Ilha do Tesouro”, “O Conde de Monte Cristo”, “Aventuras de Tom Sawyer”, “Os Três Mosqueteiros”, “David Copperfield”, “Odisseia”, “Beleza Negra”, “Robin Hood”, “Sem Família”, “Os Patins de Prata”, “Robinson Suíço”, “Caçadores de Cavalos”, “Nevada” e “O Corsário Negro”. São os livros que definiram minha infância, provavelmente. E quase todos eles são literatura que apenas um garoto privilegiaria.

Eu nunca tinha percebido isso, e é bom ver que mesmo quarenta anos depois ainda consigo descobrir algo novo nesses livros. Parece pouco, em se tratando de obras simplificadas para crianças. Não é.

Propaganda de cigarros

Uns anos atrás, em São Paulo, fui comprar um maço de Free e me entregaram uma caixinha azul, de Kent. “Moça, eu pedi Free. Isso é Kent, eu nem sabia que ele tinha sido relançado.” A moça me disse que aquele era o cigarro que tinha ficado no lugar do Free.

Foi estranho, mas tudo bem. Ao longo da minha vida, vi marcas e marcas de cigarros surgirem e desaparecerem. Continental, Minister, Belmont, Arizona.

Até a marca Carlton tinha desparecido. Algum tempo antes pegaram uma das marcas mais tradicionais do mercado, o cigarro que fumo há décadas, e trocaram seu nome para Dunhill, uma marca popular lá nos estrangeiros mas absolutamente desconhecida aqui. Mantiveram a identidade visual antiga, ao contrário do que fizeram com o Free; mas o Carlton, mesmo, aquele raro prazer, acabou.

O que eu nunca tinha visto era uma marca ser diretamente substituída por outra, assim, na cara dura. E o problema é que eu não entendo essas mudanças.

Entenderia em outros tempos. Como subsidiária da British American Tobacco, faria sentido à Souza Cruz unificar suas marcas globalmente. Uma grande campanha aclimataria o consumidor à nova marca, agora encontrável em virtualmente todo o mundo civilizado, e no longo prazo ela economizaria em posicionamento de marketing, provavelmente também em propaganda.

Mas desde o século passado a publicidade de cigarros é proibida nestas plagas. A única explicação que consigo encontrar é que eles decidiram que este é um mundo globalizado e que vai ficar mais fácil para um brasileiro em Berlim comprar a mesma marca de cigarros que compra em Chorrochó. Dunhill aqui, em Roma, em Londres.

O único problema dessa explicação é que a conta não bate. O custo da mudança da marca, mesmo que os cigarros permaneçam os mesmos, não faz sentido para mim. O volume de fumantes brasileiros que viajam regularmente é muito pequeno para fazer valer a pena o investimento industrial feito nessa mudança. E o número de viajantes que não levam alguns pacotes do seu cigarro nas malas é próximo a zero. Ao mesmo tempo, quero crer que homens de marketing regiamente pagos não fariam uma coisa aparentemente sem sentido como essa sem pelo menos uma justificativa, por equivocada que venha a se mostrar depois.

Mas para mim é difícil entender essa mudança. Ainda hoje, muitas pessoas vão atrás do Free, como eu ainda peço Carlton. Me lembra aquelas mercearias parisienses que, quase vinte anos depois do fim de sua moeda nacional, ainda exibem placas com os preços de suas mercadorias em francos. Kent, para elas, é a penas o Free disfarçado. Não justifica a mudança.

***

Isso me lembra que houve um tempo em que a propaganda de cigarros podia ser brilhante.

Tenho a impressão de que a maior parte das pessoas com menos de 40 anos repete a expressão “Lei de Gérson” sem fazer a mínima ideia de que ela nasceu de um comercial de cigarros Vila Rica, em que Gérson dizia “O negócio é levar vantagem, certo?” Ou, se ainda lembram do “fino que satisfaz”, não lembram que era assim que Pedrinho Aguinaga, “o homem mais bonito do Brasil”, descrevia o Chanceller.

A campanha de lançamento do Plaza ainda é um exemplo de excelente propaganda conceitual, de uma sutileza que não se usa mais. Carlton, por sua vez, era sinônimo de elegância, de requinte e sofisticação, e sua propaganda, feita pelo Zaragoza, estava à altura. Um raro prazer.

Mas em termos de sucesso popular acho que nada se compara aos comerciais de Hollywood. Músicas de sucesso embalando imagens de jovens praticando esportes diferentes e caros, como se ainda tivessem pulmão para isso depois de fumar dois maços do bom e velho “Ao Sucesso”. Ainda hoje se encontra, no YouTube, coletâneas desses comerciais, cobrindo décadas.

E tem a campanha do próprio Free. Eu lembro do seu lançamento. Na época, estava na moda uma tal de “propaganda comportamental”, lançada nestas plagas em comerciais antológicos da Calvin Klein pela então Fischer,Justus. “Cada um na sua, mas com alguma coisa em comum” era um conceito absolutamente brilhante para um produto que buscava um público mais jovem, nos bons anos 80.

Mas isso faz parte de um passado quase tão distante quanto o cartaz do Rhum Creosotado que recebia o sujeito que acabava de pagar a passagem do bonde:

Não dá para questionar a proibição da propaganda de cigarros. O único argumento possível é o de que, se algo pode ser legalmente consumido, deveria poder ser anunciado, e as pessoas deveriam ter o direito de poder escolher. O argumento não se sustenta muito bem diante dos dados e necessidades da saúde pública, mas é válido. Velhos como eu só veem um problema nisso: para quem gosta de propaganda, o fim dos comerciais de cigarros tornou os intervalos na TV um pouco mais pobres.

Reencontrando os Clássicos da Literatura Juvenil

No último Natal consegui me dar um presente que procurava havia muito tempo.

Eu tinha sete anos, quase oito quando cheguei em casa e havia uma encomenda para mim. Naquele dia específico as pessoas estavam com raiva desta pobre criança, porque aparentemente eu tinha desaparecido a tarde toda, com um amigo. Era injustiça, porque não procuraram direito: tivessem ido ao Porto da Barra e nos encontrariam mergulhando do quebra-mar, aproveitando a maré cheia do fim de tarde.

Jailton, o amigo que estava comigo, ganhou uma surra. Eu ganhei um esporro e livros. Minha avó tinha mandado do Rio uma caixa com uns quinze volumes de uma mesma coleção, “Clássicos da Literatura Juvenil”. Os números dos livros eram descontinuados, e isso me deu a certeza de que havia mais volumes. Eu estava certo, e algumas semanas depois chegaria outra remessa: eram trinta, ao todo.

Eram livros belíssimos para mim: capa dura, bem ilustrados, um cheiro único e inesquecível. Nos três anos seguintes eu leria todos os eles, alguns muitas vezes. Só não li então o número 21, “Robinson Crusoé”, que caiu do caminhão numa mudança, e “Aventuras de um Petroleiro” porque me parecia chato — quem em sã consciência deixaria de reler “As Aventuras de Tom Sawyer” para saber das desventuras de um navio? Eu os leria anos depois, mas não seria a mesma coisa e eles não fazem parte da minha infância — não, mentira: a ausência de “Robinson Crusoé” faz, sim, parte dela.

Como vieram em levas diferentes, desde o início tive a impressão de que havia mais do que apenas aqueles trinta. Essa impressão durou anos, e aumentou em 80, 81, quando comprei dois livros de banca, “O Corsário Negro” de Salgari e “O Máscara de Ferro” de Dumas. Eles tinham muitas semelhanças com a minha coleção, embora fossem brochuras e pertencessem a outra série, “Grandes Aventuras”: mas era o mesmo estilo de capa, a mesma estrutura, até a mesma tipologia. Só fui confirmar essa desconfiança no final dos anos 80, quando achei o número 38 na casa de um amigo. Eu estava certo desde o início. Eram cinquenta volumes, quase o dobro do que tinha embalado a minha infância. Mais tarde, cheguei a comprar alguns que achava em sebos, mas eles não me interessavam mais, e eu comprava para dar de presente.

Com o tempo a minha coleção foi se deteriorando e sumindo. Depois, morando no Rio, eu os encontraria em absolutamente todos os sebos a que ia, custando 2, 3 reais. Mas nunca a coleção inteira, e nunca em bom estado.

Com a chegada do Mercado Livre passei a procurar por ela com alguma regularidade. Mas as que apareciam eram sempre esculhambadas, degradadas em excesso pelo tempo, ou excessivamente caras. A essa altura os livreiros entenderam que só quem procura por esses livros é gente nostálgica que quer recuperar um pedaço de sua própria infância e que, naturalmente, está disposta a pagar mais por isso; só não entendem que nenhuma infância vale o preço que eles passaram a cobrar, e que criança é bicho chato que só merece cascudo. Além disso, eu nunca quis a coleção completa. Queria apenas os trinta primeiros.

E então, no fim do ano passado, apareceu uma coleção incompleta, mas com todos os volumes que eu queria em excelente estado e mais uns 15 de lambuja, pelos quais não me importaria em pagar.

Feliz Natal, Rafael.

***

Anos atrás, falando dessa coleção aqui no blog, um post comparando-a à Coleção Vagalume gerou uma pequena polêmica, desnecessária. As pessoas ficam ofendidas quando você não liga para algo que lhes é importante, exigem um respeito indevido; se eu disser que Anitta é lixo, o que sinceramente acho, vai aparecer alguém para falar da minha estupidez, do meu preconceito, do meu elitismo, do meu mau gosto. Nada contra a Vagalume (li quase todos os publicados até o início dos anos 80, e alguns, como “Cabra das Rocas”, são excelentes), mas não dá para comparar Marcos Rey a Alexandre Dumas, mesmo aguado para crianças. Revendo a minha coleção, passando os olhos em todos eles para reencontrar palavras velhas conhecidas, essa certeza aumentou.

Dei sorte de ler esses livros quando era criança. Se tem algo por que devo ser grato é pela chance de passar a infância em meio a essa coleção. A literatura moderna só existe por causa de livros como esses. O século XX viu se esgotarem as possibilidades do grande romance, e foi forçado a ir além, a lidar com outras formas de contar uma história, porque autores como Dickens, Dumas ou o Balzac que não está aqui contaram o que havia para ser contado. Proust, Mann levaram o romance adiante por falta de opção, porque livros como os desta coleção já tinham sido escritos. Posso apostar que Joyce só escreveu Finnegan’s Wake porque Cooper já tinha escrito “O Último dos Moicanos”.

Mas há um outro aspecto que me chama a atenção. Passar os olhos sobre essa coleção, se me traz de volta à infância, também mostra que vivo em outro tempo.

O fato é que, parcialmente graças a esses livros, boa parte dos meus referenciais estiveram sempre no passado, e o faroeste sempre foi mais interessante para mim do que, por exemplo, ficção científica — mesmo os livros de Verne faziam parte do passado, o futuro do pretérito. Por isso não me interessei por “Aventuras de um Petroleiro”. A II Guerra Mundial ainda era muito recente, havia acabado menos de trinta e cinco anos antes; é menos tempo do que o que se passou desde que aquela caixa de livros chegou lá em casa. E este é um mundo totalmente diferente. Daqui a pouco se comemora o centenário da invasão da Polônia pela Alemanha. Veteranos da II Guerra, se ainda existem, não estarão vivos em quinze anos, e nenhuma informação nova poderá ser produzida, e a guerra que definiu o mundo em que cresci será algo que definitivamente ficará no passado, congelado para sempre. As bancas em que esses livros eram vendidos vivem hoje seus últimos dias, desaparecem uma a uma como lemingues se jogando de um penhasco.

***

Infelizmente a coleção que comprei não tem mais o cheiro da que minha avó me mandou mais de 40 anos atrás, e do qual ainda lembro. Mas reconheço todos esses livros. Sempre soube de cor a ordem de cada um deles, e há uma série de nomes, como Miécio Tati (que ainda hoje pronuncio Táti), Marques Rebelo, Carlos Heitor Cony, Herberto Salles, Paulo Mendes Campos, Virginia Lefèvre, até mesmo Orígenes Lessa, que conheci ali e que foram meus amigos de infância. Eram os responsáveis pelas adaptações. Alguns deles sabiam até onde ir em termos de supressão de informações — Miécio Tati, por exemplo, adaptou “O Conde de Monte Cristo” e retirou de maneira bastante sutil as referências à homossexualidade da filha de Danglars; Oswaldo Waddington julgou melhor não nos informar que Emily foi seduzida por Steerforth em “David Copperfield” e virou puta. Outros não: Herberto Salles omitiu a morte de Beth em “Mulherzinhas”, e não havia necessidade disso.

A internet me mostrou que não fui o único a ser profundamente influenciado por esses livros. Uma moça dedicou um blog inteiro a eles.  Dia desses o Sergio Leo, numa discussão no Facebook sobre o racismo de Monteiro Lobato (discussão para mim excessivamente adulta e acadêmica, porque tenho a impressão de que crianças hoje se interessam tanto por Monteiro Lobato quanto por Huckleberry Finn), falou da coleção. E um repórter da Globo, em suas aparições em casa durante a pandemia, ostentava orgulhosamente esses livros em lugar de destaque na sua estante.

Já vi internet afora gente lamentando que a “Clássicos da Litertura Juvenil” deveria ser republicada. É bobagem. As pessoas já não se interessam por esses livros, porque eles dialogam com outro tipo de sensibilidade, e com outro tempo. A coleção, por exemplo, traz dois livros de Zane Grey, e não foram poucas as vezes em que, caindo de algum cavalo, me imaginei um Nevada ou um Ben Ide em dia de pouca sorte. Muitos dos seus livros de faroeste ainda estão no prelo nos EUA. Mas eu realmente não compreendo que uma criança urbana brasileira hoje tenha algum interesse nisso. Esse mundo não lhes pertence mais, eles seguiram adiante. Videogames, redes sociais e maratonas de séries na Netflix vêm antes de livros; e se os leem, garanto que preferem Harry Potter ou Percy Jackson a mosqueteiros seiscentistas usando talabartes e espadas.

Em algum momento, imaginei que deveria ter esses livros para que meus filhos os pudessem ler. Vã esperança. Como eu disse, eu não esperava que o mundo continuasse girando e as pessoas perdessem o interesse por coisas de duzentos, trezentos anos atrás. Quer dizer: ninguém, não. Só eu, bobo a ponto de comprar de novo aqueles livros que li na infância, apenas para poder passear pelas suas páginas, e reencontrar a infinidade de pedaços de texto que nunca esqueci.

Saudades da Editora Abril

Vi há um tempo uma matéria antiga falando do suicídio da Editora Abril, escrita pelo Thales Guaracy. Ele conta das opções equivocadas, do gerenciamento caótico que levou a editora a um fim melancólico. A incompetência dos herdeiros de Roberto Civita já tinha sido matéria para muito mais gente, crônica de morte anunciada ao longo desses anos em que o fim da Abril vinha sendo dado como inevitável.

Eu acompanhei a sua agonia. Quando anunciaram o cancelamento das revistinhas da Disney era óbvio que o fim estava próximo, porque “O Pato Donald” era uma espécie de talismã do fundador Victor Civita e um símbolo importante do que a editora representou um dia. Depois vi o cancelamento de outros tantos títulos importantes, como a Casa Cláudia. Finalmente vi a editora ser vendida por quaisquer mil-réis, seus títulos entregues a outros como os filhos de um retirante, e a Veja circulando com uns anunciozinhos pingados em suas páginas, sombra pálida do que foi em outros tempos e muito inferior às suas concorrentes, hoje.

Não dá para dizer que é injusto, porque em seus últimos anos a Abril decidiu errar a mão na mistura possível de jornalismo e política. Chegou a ser mais vilificada que a TV Globo, especialmente por causa da guinada em direção à extrema direita e ao não-jornalismo dado pela Veja. Não foi pouca gente que comemorou a derrocada e venda da editora.

Eu não estava entre eles porque sempre achei que as coisas nunca foram assim tão simples, e a disputa política acaba obscurecendo um fato que não pode ser esquecido: a Editora Abril foi, talvez, a editora mais importante do país.

As pessoas gostam de falar da Companhia das Letras ou da CosacNaify, ou de alguma outra que esteja na moda hoje ou seja grande o bastante para angariar simpatias. Nenhuma tem a importância da Abril na história deste país.

Ela fez ao menos tanto pela alfabetização de milhões de brasileiros quanto o Mobral; provavelmente mais. De lambuja, junto com a Globo, deu lá sua contribuição ao processo ainda incompleto de definição de uma identidade cultural brasileira, que abrangesse o país todo como um fator comum e se sobrepusesse ao regional, dando sequência a um projeto nacional iniciado durante o Estado Novo.

Victor Civita, judeu ítalo-americano, começou a Abril com uma revista que não deu certo, “Raio Vermelho”. Pouco depois lançou “O Pato Donald”, porque seu irmão Cesar já tinha os direitos de publicação da Disney na Argentina. A editora se virou por algum tempo, expandiu o número de títulos aos poucos, deu sorte com fotonovelas, e nos anos 60 passou a crescer em ritmo vertiginoso.

No final da década de 70 a Abril vendia quatro milhões de revistas em quadrinhos por mês; Tio Patinhas, por exemplo, vendia 500 mil exemplares. E tinha o que se poderia considerar as melhores revistas adultas do país. Veja, Exame, Placar, Cláudia, Quatro Rodas, Nova, Playboy.

Mas na minha imodesta opinião seu grande papel na história do país não está aí. Ele começou, mesmo, com a decisão que salvou a editora: publicar enciclopédias em fascículos e coleções de livros nas bancas, no final dos anos 60, seguindo um modelo que dava certo na Itália.

Isso não fez dela apenas a maior editora do país, uma terra em que edições de livros raramente passavam dos três mil exemplares. Com os fascículos, a Abril possibilitou a centenas de milhares de famílias o acesso à cultura. Porque uma coisa era o sujeito conseguir, sei lá, 1000 cruzeiros para enterrar numa Barsa, numa Mirador, nas esperança tantas vezes vã de que servisse para desasnar comme il faut sua prole. Outra era comprar, a cada semana ou quinzena, mais um fascículo da enciclopédia tal e qual por cinco ou dez cruzeiros. Num país que praticamente inventou o cheque pré-datado, isso era o paraíso. Conhecer, Novo Conhecer, Enciclopédia do Estudante, Informática, Nosso Século: qualquer pessoa com mais de quarenta anos consegue lembrar imediatamente de várias enciclopédias lançadas pela Abril. Foram dezenas.

Além disso, as tantas coleções de livros que ela lançou ao longo de sua história levaram o melhor da literatura mundial e brasileira a uma infinidade de casas. A coleção “Imortais da Literatura Universal”, reempacotada em diversos formatos ao longo das décadas até o começo dos anos 2000, ainda hoje é respeitável. A “Grandes Sucessos”, dedicada à literatura do século XX,  lançou no Brasil “A Sangue Frio”, de Capote. As coleções “Mistério” e “Série Mistério e Suspense” quase não devem nada à insuperável “Colecção Vampiro”. Virtualmente toda área da cultura foi abordada pela Abril em suas coleções: “Teatro Vivo”, “Os Pensadores”, “Os Economistas”, tantas outras. E a “Clássicos da Literatura Juvenil” merece mais um post neste blog.

Sem falar nas tantas coleções de discos, da “Taba” à “Gigantes do Jazz”, passando pela ópera e pela MPB.

Hoje os sebos do país estão repletos de coleções da Abril, inúteis como jornal de ontem, acumulando poeira em suas estantes. As enciclopédias desnecessárias porque perderam sua função; os livros sem valor porque, sendo edições de massa, são descartados como quase lixo quando seus donos morrem. Mas isso dá uma ideia bem aproximada da grandiosidade desse projeto cultural.

Para mim, ela era essencialmente duas coisas: a editora das melhores e mais bem cuidadas revistas, fascículos e livros que eu podia comprar numa banca e uma espécie de companheira de infância e adolescência. Faço parte da última geração a crescer com os quadrinhos Disney.

Nos anos 80, a Abril deu uma dignidade às revistas da Marvel e da DC que as editoras anteriores, como Cruzeiro, Bloch e Ebal jamais conseguiram dar — embora uma certa elite acostumada a quadrinhos importados, já naquela época, reclamasse do que chamavam “formatinho”, da demora na publicação de histórias, disso e daquilo. A minha vontade, cá nos ermos de Lampião, era de enfiar a peixeira no bucho desses playboys, porque eu ainda lembrava das revistas da Ebal. Obviamente, eu mal fazia ideia de que esse tipo de coisa só ia piorar nas décadas seguintes.

A Bizz apresentou para um bocado de gente as novas tendências em música. Era uma revista canalha, típica do pior que a cultura paulista pode oferecer, um provincianismo deslumbrado e colonizado, e que contava com articulistas cuja ética profissional era mais rarefeita que o vácuo sideral. Mas para quem morava longe dos grandes centros era uma referência importante. Tem tanta coisa de que ouvi falar primeiro na Bizz: REM, Jesus and Mary Chain, umas coisas aqui e outras ali. Até mesmo coisas de que só ouvi falar, mesmo, mas que não ouvi porque nas rádios daqui isso não tocava e eu não tinha interesse em ir atrás.

É por isso que não consigo ter raiva da Abril. Pelos quadrinhos Disney, pela unificação dos quadrinhos da Marvel e DC, pelos livros que comprei em bancas. E a verdade é que morro de saudades da Veja.

Não tenho a mínima vergonha de dizer que tenho saudades daquela revista canalha. Nunca foi um grande padrão de notícias, é verdade. Uns anos atrás, com algum tempo livre, saí procurando notícia sobre os Beatles em seus arquivos e fiquei impressionado com a imprecisão, com o diz-que-diz repetido em seções diferentes, com os boatos falsos impressos em suas páginas. E isso nos anos 70.

Mas ela foi, durante muito tempo, a melhor revista semanal do país, e não à toa sobreviveu a tantas outras: Cruzeiro, Manchete, Fatos & Fotos, Agora, Amanhã, Visão. Até hoje, sempre que ponho as mãos em uma, e mesmo odiando as mudanças a que o tempo lhe obrigou — tipologia, adequação a um mundo com fotos grandes e textos menores, excesso de colunistas, entre umas tantas outras —, ela traz uma sensação de familiaridade que nenhuma outra revista pode trazer para mim. Me sinto à vontade lendo a Veja porque foi ela a revista que mais li durante muito tempo.

Em uma de minhas fotos mais antigas, eu estou “lendo” uma Veja. Mais tarde, ainda criança mas já reconhecendo duas ou três letras, lia a revista com certa frequência — aqueles bons tempos em que a gente só lia o que interessava, no meu caso principalmente as notícias sobre livros e filmes. Depois, já trabalhando, a Veja era uma das revistas fundamentais para se ler toda semana. Não há como não sentir saudades.

Mas por mais variada que tenha sido a atuação da Abril, agora que tudo acabou e ela é uma sombra do que foi, longe dos Civita e sem nada da personalidade que tinha em seu fastígio, é curioso ver que sua glória e decadência acompanharam a trajetória dos quadrinhos Disney.

O fim começou bem antes da internet. Segundo “O Homem Abril”, do Gonçalo Júnior, Roberto Civita identificava o início do fim no momento que a Censura Federal liberou a nudez total nas revistas masculinas, em 1980. A queda nas vendas foi imediata. Ali os quadrinhos perderam o público adulto. Mas a decadência continuou e se acentuou ao longo das duas décadas seguintes por mais razões. Mais e mais casas com televisão, o surgimento do videogame e depois da TV a cabo, até mesmo o aumento da violência urbana que fez com que as crianças deixassem de ir sozinhas às bancas de revistas, a necessidade de escala da Abril, tudo isso foi destruindo as vendas das revistas em quadrinhos. A Turma da Mônica sofreu menos, ancorada em um bom esquema de assinaturas e a mudança para a Editora Globo. Finalmente veio a internet, o apocalipse da mídia impressa.

Em dezembro de 1979 havia 85 títulos de revistas nas bancas brasileiras, de todas as editoras. Em dezembro de 2018 havia 279. Pelos números pode-se pensar que o mundo melhorou muito. Mas duvido que a tiragem do conjunto dessas 279 revistas chegue a pelo menos metade dos quatro milhões que só a Abril, com 29 daqueles 85 títulos, tirava.

A Abril pertence a um outro mundo, que a internet enterrou. Recentemente, dando uma volta na zona norte de Aracaju, notei algo que nunca havia percebido antes: não há mais bancas de jornal ali.

Na zona sul elas também são cada vez mais raras. Umas poucas resistem, uma luta inglória já condenada ao fracasso, e não acredito que revistas continuem sendo sua principal mercadoria. A banca de Florêncio, onde décadas atrás eu tinha conta, hoje vende frutas e verduras. Bancas de revistas pertencem a um passado cada vez mais distante. Como a editora Abril.

Daniel Boone

Entre as coisas boas da quarentena está assistir a episódios de “Daniel Boone” com a minha mãe.

Não apenas por passar esse tempo vendo a véia adivinhar os finais dos filmes. Mas porque assistir a “Daniel Boone” é sempre um prazer enorme, que raramente pode ser compartilhado.

Durante anos fui a única pessoa que se lembrava de alguns seriados antigos, como “Daniel Boone” e “Joe, o Fugitivo”. A internet veio me mostrar que eu não estava sozinho. Escrevi sobre o seriado uma ou duas vezes aqui, e esses são daqueles posts que receberam, ao longo dos anos, centenas de comentários, cada um deles provando novamente que durante muitos anos estive errado, eu não era o único a lembrar.

Rever os episódios agora — dublados, óbvio, porque não existe “Daniel Boone” sem a dublagem da AIC, não para mim — me faz lembrar que, em 1979, a TV Aratu exibia o seriado a partir das 11:45. Eu voltava da escola ansioso para assisti-los. Durante mais de um ano, uma eternidade quando se tem 8 anos, assisti a todos os episódios que pude do seriado, inclusive da tal primeira temporada que dizem nunca ter sido reexibida no Brasil depois dos anos 60, o que apenas mostra que quem escreveu isso não entendia como as TVs funcionavam antes das antenas de satélite se espalharem pelo país.

Ultimamente tenho pensado no quanto esse seriado me influenciou na época. Difícil saber. O que sei é que durante anos eu quis ter um chapéu de raccoon. Na verdade ainda quero, a única diferença é que não sairia à rua com ele. Lembrei também que, com meus revólveres e espingarda de espoleta, varri da Barra os casacas vermelhas (você já viu um soldado inglês com túnica vermelha e mosquete na Barra? Pois é, eu fiz um bom trabalho). Meses mais tarde, ganhei uma faca de caça e uma bússola, e explorei os areais e arbustos de Itapuã como se estivesse me escondendo de shawnees. Os areais não existem mais, foram soterrados pela especulação imobiliária. A criança também não existe mais, ou está escondida esperando dias melhores para voltar.

O tempo passou e vieram outros seriados. Mas olhando para trás, com a falsa sabedoria que os anos me deram, acho que nenhum foi tão importante quanto “Daniel Boone”. Não que eu conheça bem o mundo dos seriados mais modernos, com umas poucas exceções; mas tenho a impressão de que, mesmo se conhecesse, não faria diferença. Não existem mais seriados como aquele: feitos para toda a família, seguindo uma série de normas e tabus e o que jovens rebeldes chamariam de hipocrisia, enquanto vendem valores tão paradoxais quanto honra, honestidade e altruísmo de um lado, e do outro a justificativa da invasão e roubo das terras dos índios; aliás, nem mesmo índios existem mais, inventaram uns substitutos para eles chamados nativos americanos. Por tanta coisa, por tanta água passada debaixo da ponte, um seriado como esse seria inviável hoje em dia, ao não condenar peremptoriamente a expansão inglesa no território americano, ao não incluir a devida proporção de negros e gays, ao não inventar mulheres protagonistas em outro tempo histórico, porque o diálogo a ser feito é com dias bem diferentes.

Pois é, ultimamente tenho pensado nessas coisas.

Assistir a esses episódios me faz lembrar também que, para mim, o YouTube é a grande maravilha da internet. Essa invenção dos diabos, essa tal de internet deu ao mundo coisas ruins e deletérias como o Facebook e o Twitter e é a causa de um mal-estar civilizatório geral, e vai demorar muito tempo até a humanidade conseguir usar essas ferramentas de maneira minimamente racional. Mas deu também o YouTube. Eu não paro de me impressionar com o acervo que as pessoas disponibilizam nele. É a melhor coisa a assistir num aparelho de TV hoje, muito melhor que qualquer Netflix na vida. Nos últimos anos, assisti a coisas inimagináveis: seriados que assisti há décadas, desenhos de que já não lembrava, capítulos finais de novelas que 40 anos atrás eu odiava, comerciais inesquecíveis, tutoriais de quase tudo.

Uns anos atrás, em Miami, assisti num desses canais de TV aberta a um episódio de “Ilha da Fantasia” que tinha visto em 1980, e que tinha me ensinado que havia existido uma sujeita chamada Mata Hari. Foi uma surpresa agradável. Mas o fato é que no mundo analógico e unidirecional em que cresci e do qual nunca saí completamente, demorou 34 anos para ver aquilo de novo, e mesmo assim por acaso. Isso me lembra que cresci numa época em que momentos como esse eram raros e, talvez por isso, mágicos. O YouTube torna isso quase normal, fácil, realiza o sonho de criança de muita gente — ao mesmo tempo em que tira quase toda a sua importância.

Venho de um tempo em que essa universalidade da oferta não existia. Se você perdesse um episódio do seu seriado favorito, um capítulo de sua novela predileta, dificilmente poderia assistir a ele em outra ocasião. Isso acabou, mas eu sou um filho do meu tempo, e assim me dou ao direito de me maravilhar a cada edição do Globo Rural que assisto no Globoplay. E a cada episódio de “Daniel Boone” que alguém disponibiliza no YouTube.

Assistir a “Daniel Boone” e aos aforismos pseudo-índios de Mingo me faz lembrar também que escrevi aqueles posts há 15, 10 anos. De lá para cá, tanta coisa mudou. Fess Parker morreu, até a Patricia Blair morreu. Incrivelmente, além do Darby Hinton e da Veronica Cartwright, mais jovens, está vivo Ed Ames — embora não por muito tempo, aparentemente. Mais um indício mal-vindo de que o tempo passou. A mulher de cabelos de fogo como a palha do milho que eu cobiçava na flor dos meus 8 anos morreu em 2013, aos 80. O homem que certamente foi um modelo para mim morreu antes e ainda mais velho. Isso me faz ter consciência de que o tempo está passando. E me faz lembrar de coisas não tão boas.

“Daniel Boone” é referência para parte da minha geração e da geração anterior à minha. Gente que viu o seriado como hoje assistem a Walking Dead, às vezes como “televizinho”, na maior parte das vezes em TVs preto e branco. Fazem parte de um tempo que, a cada nova descoberta, a cada nova tecnologia, parece mais e mais distante, até pré-histórico.

Essas pessoas, assim como eu, hoje têm mais tempo para trás do que pela frente. Elas vão desaparecer, pouco a pouco. E é aí que toda essa tecnologia nova, que me permite o resgate de algo tão velho, se mostra anacrônico, quase patético. É possível que todo esse material que colocaram na internet sobreviva, que continue aí enquanto o coronavírus não nos mata a todos. Mas breve não vai ter mais função, porque as pessoas não estarão mais interessadas em “Daniel Boone” ou “Sítio do Picapau Amarelo” ou “Túnel do Tempo”.

Talvez essa seja uma das razões por que, nesta quarentena meia boca, eu goste tanto de assistir a “Daniel Boone” com minha mãe. Porque por 50 minutos voltamos 40 anos no tempo, e assistimos a um tipo de filme que não se faz mais, e isso congela o tempo e o faz eterno, imutável.

Numa quarentena, eu não preciso de muito mais que isso.

Ô da poltrona

Rafael Spaca está produzindo um documentário sobre os Trapalhões, em cinco episódios. O documentário ainda não saiu mas já está criando polêmica, o que é excelente notícia para o produtor — a ponto de grande parte dessa polêmica parecer artificial. Renato Aragão estaria se sentindo desconfortável com o que julga ser uma tentativa de vilanização, etc. Um trailer medíocre disponível no YouTube não deve ser indício da qualidade do documentário: Spaca parece ter estofo suficiente para entregar um documentário realmente bom. Descobri agora que ele já escreveu dois livros sobre os filmes e as histórias em quadrinhos do grupo, e está escrevendo uma biografia de Dedé Santana. Além disso, assim como eu, se ressente da ausência de uma bibliografia sólida sobre os Trapalhões.

Isso sempre me impressionou. Pela sua importância na história do humor e da TV brasileiros, Didi, Dedé, Mussum e Zacarias mereciam muito mais do que foi escrito, até hoje, sobre eles. Há alguns anos, comprei “Adoráveis Trapalhões”, uma biografia escrita por Luís Joly e Paulo Franco. É um livro muito ruim, primário, incapaz de ir além do que se acha facilmente na internet ou nos documentários oficiais ou semioficiais que foram feitos para comemorar marcos da carreira da trupe. E no entanto é a única biografia deles que conheço. É por isso que o documentário do Spaca pode vir a cobrir, ao menos em parte, um vácuo injustificável.

Porque quem foi criança na segunda metade dos anos 70 e primeira dos 80 sabe da importância dos Trapalhões. O seu era, talvez, o espaço mais nobre de toda a programação, a hora em que todo mundo estava em casa. A vinheta de encerramento do programa era também o anúncio do final do fim de semana. E naqueles seus primeiros anos na Globo, eles faziam um tipo de humor que, apesar de simples, era um bom resumo do humor do dia a dia do povo brasileiro.

Durante anos, “Os Trapalhões” definiu para milhões de crianças brasileiras o que era humor. Todos nós devemos muito a um paraíba, um galã de subúrbio, um negão cachaceiro e um viadinho mineiro. Dizem que seu humor era politicamente incorreto e não seria aceito hoje. É uma pena. Não admira que as pessoas hoje achem que a Terra é plana, porque chata certamente é.

A separação do grupo em 1983 foi um marco importante. Ali, para muita gente, a magia se quebrou, definitivamente. É possível que um eventual redesenho das relações internas tenha contribuído para isso, e essa é uma pergunta que o documentário de Spaca pode responder. A impressão que sempre tive é a de que o maior perdedor ali foi Renato Aragão. Tanto o quadro que Dedé, Mussum e Zacarias apresentavam quanto o filme que estrelaram, “Atrapalhando a SWAT”, se 8tes de Renato Aragão. Provavelmente porque o trio pôde preservar parte grande da dinâmica do grupo, as interações entre os estereótipos — algo que Renato Aragão tentou manter com novos atores, sem sucesso: para o público, Tião Macalé e quetais eram apenas imitações inferiores dos originais. Separados, eles não davam certo e perdiam dinheiro; voltaram em poucos meses.

A história da separação do grupo sempre foi mal contada, e merece ser investigada mais a fundo. Não sei se um documentário em vídeo, com as limitações próprias do meio, será capaz de dar uma resposta definitiva. Mas ele tem condições de jogar alguma luz para os fãs que, ainda hoje, assistem a velhos esquetes do grupo no YouTube.

A partir dos anos 80 Renato Aragão foi estreitando a sua própria ideia de humor. Em parte porque estava envelhecendo como criador, claro, mas talvez tenha sido influenciado pelo fato de ter sido apontado pela UNICEF como “embaixador da infância” ou algo parecido, e mais provavelmente porque as pesquisas indicavam que seu principal público eram as crianças. Ele parece ter cometido um erro bobo: fazer um programa infantil para crianças que gostavam do humor um pouco mais adulto. Em sua última década, “Os Trapalhões” se tornou mais raso, mais repetitivo e mais pobre. As mortes de Zacarias e Mussum complicaram ainda mais a situação. Sem Zacarias o programa perdeu boa parte de sua alma; sem Mussum, se tornou inviável.

Mais tarde Renato Aragão tentaria reorganizar uma versão ainda mais idiotizada dos Trapalhões num programa exibido no meio do domingo, uma cópia menos que medíocre do que já tinha feito com brilhantismo. Na mesma época, Dedé fazia um programa em outra rede de TV — SBT, se não me engano. E o programa era mais engraçado que o de seu ex-parceiro.

Parece haver um esforço grande de demonização de Renato Aragão, e talvez o documentário consiga dar uma visão equilibrada desse pequeno fenômeno. As pessoas falam muito de arrogância e mau humor. Dizem que trata mal as pessoas. Sua mulher ganhou as manchetes dia desses reclamando de ter que viajar com gente pobre e deselegante no avião — o que seria extremamente irônico se ela conhecesse este esquete brilhante estrelado por seu marido. (Feliz ou infelizmente, ninguém apareceu para reclamar de ter que viajar ao lado de uma gorda feia e elitista.) E falam que explorou seus colegas.

Do ponto de vista financeiro, e sem conhecer nada sobre as relações internas do grupo, não parece que ele tenha sido canalha. Ele era o o investidor, o autor, o produtor do material. Nada mais justo que ganhasse uma parte bem maior. Mas os Trapalhões têm uma dimensão no imaginário popular que os faz equivalentes a um conjunto indivisível e igualitário. Didi só é Didi, de verdade, se ao seu lado estão Dedé, Mussum e Zacarias. Talvez esse documentário consiga esclarecer, de uma vez, as coisas.

A comédia dos Trapalhões hoje é apontada como pueril. Isso soa mais verdadeiro quando se leva em consideração que esse processo foi se acentuando com os anos. Mas nos anos 70 era diferente: o humor que faziam era abrangente, voltado para um público heterogêneo tanto social quanto cronologicamente. Era ingênuo, talvez, mas nunca foi inocente: naqueles dias, seu humor era bem mais complexo do que a ideia que se faz dele hoje. Em muitos aspectos, continha referências adultas que hoje seriam impensáveis num programa infantil. No seu primeiro programa da Globo, uma produção cara cheia de externas, um dos quadros era sobre um porteiro de motel. Esse pessoal da academia, se quisesse, poderia escrever teses e mais teses sobre temas importantes entrevistos nos Trapalhões, como suicídio, emancipação feminina, especulação imobiliária, preconceito racial e social.

Os Trapalhões representavam um microcosmo do povo brasileiro, com suas qualidades e seus defeitos: sua boa vontade, sua cordialidade real e imaginada, seus preconceitos e visões de mundo. Em seus melhores momentos, seu humor era fresco, leve, ao mesmo tempo que sutil e acurado.

Apesar de tudo isso, os Trapalhões pertencem, sem nenhuma dúvida, ao panteão de grandes humoristas brasileiros. A mesma crítica que elogiava Chico Anysio e Jô Soares torcia o nariz para ele — como se o humor de Chico e Jô também não fosse, tantas vezes, primário e apelativo como o dos Trapalhões. Era uma crítica que achava deselegante arreganhar os dentes e quebrar a tripa gaiteira com bobagens, e se sentia mais à vontade com aquele sorriso de entendedor inteligente que se dava em filmes de Woody Allen. Ou que, sendo um pouco mais implicante, não queria ver nos Trapalhões um retrato do país.

O fedor

Dia desses me bati com um depoimento de uma francesa no Quora dizendo que essa conversa de gauleses cheirarem mal é mentira, que isso não existe, que eles fazem os melhores perfumes do mundo.

Qualquer pessoa pode contrapor essa afirmação delirante com mais que o senso comum. Por exemplo, com estatísticas sobre o uso de sabonete — os franceses não são muito chegados nessas sofisticações e as consomem bem menos que outros povos europeus. Eu poderia contradizer essa moça com uma história pessoal muito triste.

O fato é que quando vejo um francês dizendo com a cara mais sonsa que “nóis num fede não” a vontade que dá é de dar uns tapas para ele deixar de ser cínico desse jeito. Alguém devia deixar a polidez de lado e dizer na lata que eles fedem, sim. Fedem muito. Pegue um metrô em Paris no verão ou num dia de chuva para você ver uma coisa. Quantas vezes vi senhoras com cabelos literalmente duros de tanta sujeira acumulada, o tipo de cabelo que a gente cá na Ilha de Vera Cruz só vê na volta dos blocos de carnaval em Salvador. Uma vez, em Londres, uma senhora loura, gordota, entrou numa loja de camisetas em Camden. Fedia, fedia, fedia. “Saporra é francesa”, pensei. Se eu tivesse falado em voz alta perto de outras pessoas teria falsamente me arrependido imediatamente pelo meu preconceito, com a hipocrisia diante dessas coisas que me é peculiar, mas teria ao menos o consolo de estar certo assim que ela abriu a boca e lascou um combien.

Mas nada pode se comparar ao dia que, até hoje, às vezes lembro em sonhos, pesadelos dos quais invariavelmente acordo suado, gritando, pedindo ajuda a um Deus que nunca, nunca, nunca me ouve.

Tem alguns anos, isso, quase dez. Eu descia o boulevard Saint Michel e entrei numa Gap porque resolvi comprar uma camisa.

O provador da loja era no subsolo. Lá fui eu, com duas camisas — iguais, mas de cores diferentes — que, se bem sucedido, me fariam parecer um marinheiro marselhês, e quem sabe eu não poderia vir a ser um dos ajudantes do Conde de Monte Cristo, ou pelo menos me enturmar com a Brigitte Bardot e a Isabelle Adjani. A camisa eu já tinha.

Infelizmente o provador estava ocupado. Fiquei por ali, olhando as modas bagunçadas em volta, até que o sujeito saiu do provador.

Era um francês típico, coisa que para mim, turista invariavelmente embasbacado, era algo cada vez mais raro. Naquele ano mais que em outros: graças a Lula, eu nunca tinha visto tanto brasileiro nas Oropa, e ali, em Paris, em todo lugar que se ia o português com sotaque paulista ou carioca se fazia presente como na feira de Caruaru.

O patrício que saía do provador parecia saído de um livro de Simenon: era muito branco, cabelos pretos, alto, magro, o nariz aquilino de De Gaulle. Trazia um pulôver furado, mas do jeito que ele olhava para o mundo, aquilo parecia mais charme do que pobreza. Um francês. Se eu, paraíba, saísse com uma roupa furada daquele jeito olharia para as pessoas pedindo desculpas por existir — mas ele, francês, não estava nem aí.

Assim que ele saiu do provador, eu entrei. Não devia ter feito isso. Devia ter esperado algumas horas, talvez dias. Melhor, devia ter ido a outra loja, no boulevard Magenta tem umas lojas tipo sulanca que acabariam sendo uma escolha melhor. Era melhor ter pego o próximo avião de volta para o Brasil, era melhor me deixar chicotear por dez mouros cegos. Eu teria sofrido menos.

Porque eu nunca tinha sentido um cheiro igual àquele; parecia o cheiro de dez mil sovacos jamais lavados, suados, sofridos, calejados numa muleta. O cheiro de trinta mil escravos hebreus construindo a pirâmide de Gizé na época da seca do Nilo. Acredito que o filho da puta não tomava banho há meses. Não era só o sovaco: era o cheiro de um corpo completamente imundo, um corpo que não via água — quanto mais sabonete — havia meses. Eu nunca vi um fedor daqueles. Eu que tinha orgulho de lembrar que, em meus verdes anos, andei em tantos lugares a que pessoas decentes jamais iriam. Havia o fedor bom, as moças da minha adolescência que fediam a perfume Avon. Havia o fedor ruim, o fedor dos doidos que moram na rua, o fedor do desespero, da tristeza, da loucura; o fedor da miséria que destrói as noções de higiene porque o esforço para conseguir sobreviver é tão maior que essas bobagens. Mas aquele era um fedor diferente. O fedor que eu sentia ali, e que pela primeira vez em minha vida me fazia ter ânsia de vômito em um provador de roupas, era o fedor da imundície consciente, desnecessária, pusilânime.

Tive que sair dali imediatamente, sufocado, cego, trôpego. Dir-me-iam bêbado.

Esperei algum tempo e entrei de novo no provador. Ainda fedia, e muito, mas agora era tolerável. Experimentei a camisa rapidamente, vi que dava em mim, saí correndo, deixando para trás os demônios que me assolavam e tiravam minha saúde.

Como a vida sabe ser canalha e debochada, fiquei exatamente atrás do sujeito putrefato na fila do caixa. Vestido o filho da mãe fedia muito menos.

Eu jamais esqueceria essa experiência. Mas demorou alguns anos até entender que isso era carma. Essas coisas orientais que dizem que o que vai, volta. Eu não acredito nessas besteiras, não consigo. Mas eu não acreditava que o povo brasileiro ia eleger Bolsonaro e olha ele aí. É por isso que hoje sei que aquele francês imundo foi a forma como as parcas resolveram me lembrar de maldades cometidas em outros tempos.

***

A negona no caixa, com óculos de Risoleta Neves, grossa, metida, canalha, apenas dizia: “Vingt sous, vingt sous!”, e me olhava como quem olha uma lagarta que rói a sua roseira.

Era a mesma Paris, uns muitos anos antes. Estou perto do Louvre e a moça que está comigo precisa ir ao banheiro. Descemos numa das estações de metrô, que eu não lembro mais. Talvez tenha sido a Palais Royal, talvez a Louvre-Rivoli — certamente a linha 1.

E enquanto esperava, resolvi que ia no banheiro também, fazer xixi. Entrei no banheiro e a negona me lascou um vingt sous.

Eu sou baiano e considero desaforo pagar 20 centavos de franco para dar uma mijadinha. Não. Na minha terra, na velha Cidade da Bahia de Jorge Amado e do mano Caetano, a gente mija e caga na rua, na calçada — ultimamente essas coisas de civilização andam atrapalhando e o pessoal parece estar mais tímido, mais acanhado e cheio de não-me-toques, mas além de todo ano haver um carnaval para nos redimir, de vez em quando a gente vê o resultado do trabalho de um saudosista — e pode acreditar, uns anos atrás fui à praça Castro Alves com minha então namorada e ali, atrás da estátua da poeta, um baiano tinha deixado sua homenagem a séculos de escravidão, de exploração, de suor e sangue.

(Acho, no entanto, que ele foi apressado demais. Esperasse uns anos e poderia ter feito aquilo atrás da estátua de Gregório de Matos, era só atravessar a rua. Porque isso tem mais cara de Gregório que de Castro Alves, convenhamos.)

Mas certo, Paris, a conversa era outra. A negona repetindo com cara feia vingt sous, vingt sous. OK. Então tá, se eu tenho que pagar que seja pelo serviço completo.

Era a minha primeira visita a Paris. Eu tinha acabado de achar uma rua que aparentemente homenageava meus ancestrais, a rue de Valois. Via pela primeira vez a única cidade que, até o fim dos meus dias e não importa quantas eu conhecesse depois, iria rivalizar com Salvador. O grau de excitamento só era igualado pela vontade de parecer cool, calm, collected. E por falar em cool, com tudo isso fazia dias que eu não ia ao banheiro.

Aquele era um banheiro tão bonito, tão antigo, tão chique. O mosaico no chão remetia à Belle Époque, o teto, tudo aquilo me fazia pensar que civilização era aquilo, não era o Terminal da Lapa em Salvador. Mas a negona com óculos de Risoleta Neves ficava repetindo com cara feia, vingt sous, vingt sous.

Do bolso da parka emprestada que eu usava surgiram os vingt sous. Estendi as moedinhas mas ela, grosseira como sempre, me mandou largá-los num pratinho ao lado do ventiladorzinho que jogava ar mais fresco em seu rosto. Entrei no banheiro, abaixei as calças como Bolsonaro diante de Trump, olhei para o mosaico no chão.

Quando saí eu era um homem mais leve, em paz com o universo e com a humanidade. Saí do banheiro olhando firme para a negona e sorrindo para ela — sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere. Fiquei alguns instantes no corredor da estação, parado a alguns metros do banheiro. Estava feliz, pensando na negona no banheiro da estação do metrô, imaginando-a olhando para os vingt sous que eu havia lhe entregado, imaginei o ventiladorzinho jogando ar mais fresco no seu rosto. Alguns minutos depois, a moça que estava comigo surgiu afobada:

“Rafael, vamos embora, alguém empesteou este lugar.”