Receita de mulher

Um amigo diz que mulher tem que saber beber.

Outro diz que mulher tem que deixar um rastro de perfume quando passa. Mulher que não cheira, não presta.

O avô do Bia diz que mulher tem que saber contar piada.

E o Vinícius diz que mulher tem que ter saboneteiras.

Eu tenho outra teoria. A mulher tem que entender de algumas coisas: um pouco de cinema, um pouco de literatura, um pouco de música, um pouco de política, um pouco de arte. Não precisa ser muito, porque muito não se deve exigir: só o bastante para ter uma opinião, o suficiente para não passar vergonha, para não ficar calada numa mesa de bar, entediada e entediando.

Mas tem que haver um contraponto, e é aí que está o segredo.

A mulher tem que gostar de filmes bobos.

Porque é isso que faz a mulher, é esse toque feminino, da donzela à espera do cavaleiro que a salvará — mas não em um cavalo branco, porque aí é “Uma Linda Mulher” e clichê demais; e tampouco pode ser mais que um toque, porque do contrário ela se torna uma daquelas sinhazinhas de casa-grande, que nada sabem, nada falam, apenas vêem a vida passar bovinamente. Aquele mínimo de solidez tem que ser contrabalançado em uma leveza meio etérea, algo que se sabe que está ali, mas que não se pode pegar — e se se pudesse, se esvaneceria no ar.

O contrário é mulher que gosta de Godard, e ninguém que goste de Godard pode estar em seu juízo perfeito.

A mulher tem que gostar, por exemplo, de Notting Hill. Tem que saber quem é Kurosawa — não precisa gostar, só precisa saber quem é –, tem que conhecer um tiquinho de cinema francês, saber o que faz de “Acossado” o que ele é e ter visto pelo menos um Buñuel; mas tem que dar um sorriso bonito e franco quando vê o Hugh Grant pedindo para a Julia Roberts ficar.

Não precisa chorar, nem deve, porque mulher que chora nessas horas também chora em outras menos apropriadas; mas precisa sentir a beleza boba e fútil da coisa, e não ter vergonha disso, nem querer parecer o que não é — o que só não é pior do que realmente ser. Precisa apenas saber que algumas coisas não devem ser explicadas, jamais, porque então correm o risco de desaparecer. A mulher tem que ser alguém que, mesmo sem conhecer as notas musicais, fecha os olhos e sorri tranqüila para si mesma quando ouve um trechinho de Albinoni.

Porque se fosse para fazer outra analogia, eu poderia dizer que mulher não pode ser Wagner, nunca; e se for Vivaldi se torna vulgar e dispensável. Talvez seja isso. A mulher, a mulher mesmo, tem que ser um andante de Albinoni que gosta de Notting Hill.

Originalmente publicado em 10 de fevereiro de 2005

Cena baiana II

Salvador, 1989.

Em Aracaju eu tinha encontrado um amigo de escola, ele disse que também estava morando em Salvador. Ficamos de nos encontrar qualquer dia daqueles.

Dia daqueles saio da agência e vou até um bar na Pituba, onde nos encontramos, ele com um amigo meio bobo mas gente boa. A noite avança entre cerveja e tira-gosto. Xangai aparece por ali e dá uma canja, “marido se alevanta pra nóis fazer um calamengau”. Uma mulher de seus trinta e poucos anos dá mole e eu me levanto para ver no que vai dar. A coisa promete, ela faz pose de quem faz pose de mulher recatada, e então Paulo me chama e avisa: “A gente tá saindo e não vai pagar”.

Eu devia ter lembrado quem era Paulo antes de aceitar o convite. Ele era expulso da sala com uma freqüência ainda maior que a minha. Foi ele quem subiu em seu buggy na porta do Arqui, depois de conseguir uma transferência para o Unificado, e xingou Marlene Chagas de todos os palavrões imagináveis — e para a nossa felicidade também dos inimagináveis. Era ele que tinha uma cara de marginal, cabelos louros escorridos encimando uma cara comprida e um olho meio torto.

Agora só me resta ir atrás do sujeito, eu que nunca gostei de sair sem pagar de lugar nenhum.

Daqui a pouco chega o garçom, correndo esbaforido, dizendo que a gente vai ter que pagar. Paulo manda o sujeito à merda, e o garçom sai correndo dizendo que vai chamar a polícia.

A gente também sai correndo pela Pituba na direção contrária, e em poucos metros eu, que nunca corri senão de cachorro grande e de mulher feia, já estou botando os bofes pela boca, puta que pariu. Viramos uma esquina onde dois homens tocam violão; adivinhando que não vou mais agüentar muito tempo, pulo o muro e me escondo, encostadinho entre o muro e as plantas. Ouço o garçom passar correndo, mas espero. A cara enterrada no canteiro, terra preta de vez em quando tem um gosto muito bom.

Alguns minutos depois uma mão me levanta pela gola. É um dos homens que estavam na esquina. O sujeito diz que é policial, me revista, pergunta o que aconteceu.

“Moço, eu tô morando aqui há um mês. Não conheço ninguém na cidade. Moro em Sergipe, sabe? Vim estudar pro vestibular.” Mostro a minha carteira de identidade, que é de Aracaju, para comprovar que tudo o que eu digo é a mais pura verdade. “Aí hoje eu tava no Porto da Barra, conheci aqueles dois sujeitos, a gente começou a conversar, e me chamaram pra cá, e a gente começou a beber, eu levantei pra ir no banheiro e quando voltei eles tavam saindo dizendo que não iam pagar. Eu não tinha dinheiro pra pagar a conta toda, aí tive que vir com eles.”

“Qual o nome deles?”

“Um é Márcio, o outro é Roberto. O senhor já viu eles por aqui?”

“Eles te ofereceram drogas?”

“Não, não, só cerveja, mesmo.” Mas me arrependo, devia ter inventado que o filho da puta do Paulo é traficante para ver se a polícia lhe dá umas porradas, que ele merece.

Me mandam esperar para ver o que farão comigo. Enquanto o tal policial conversa com o outro, que deduzo ser um vigia noturno, resolvo que minha cara de menino não é o bastante. Peço o violão, toco um pouco, faço a maior cara de puta arrependida que consigo fazer, e então o sujeito diz para eu ir embora, mas que a partir de agora devo ter cuidado que aqueles baianos não valem nada, que é um povo muito descarado, tá cheio de marginal pela rua, você deu muita sorte, e percebo que ele não tinha lido minha carteira de identidade direito e não viu que eu também era um daqueles baianos. Só não era descarado.

E enquanto eu saio atrás de um táxi, pensando em ligar para esculachar aquele filho da puta do Paulo, o sujeito passa e pergunta para onde eu estou indo, e eu digo e ele me dá uma carona, enquanto continua a falar desses baianos que não valem nada, quando é justamente um policial baiano que me dá a carona.

Mas isso não é nada. Nunca mais vi a balzaca. Não deu tempo de pegar o telefone dela. Ela era uma lourona bonita, bem interessante. Tinha uns peitões sugestivos, ah, muito sugestivos, e o seu jeito de olhar me fazia algumas das mais torpes e belas promessas que eu já tinha visto naqueles meus dezoito anos.

Originalmente publicado em 27 de janeiro de 2005

Um dia de verão

Janeiro de 1994.

Andando pela rua, debaixo de um sol lancinante. Uma mulher pára na minha frente.

— Você é bonito.

Olho espantado para a mulher, agradeço sem jeito.

— Você é bonito.

É louca, louca. Agradeço mais uma vez e saio andando.

Mas ela vem andando ao meu lado.

— Você até parece aquele cantor, Leandro e Leonardo (não, não pareço). Alto, cabelo bom. Sabe, eu tenho uma irmã de treze anos que é quase do seu tamanho. Mas ela quer me bater quando eu tô em casa.

— Ah, não. Não deixe. Ela tem que respeitar os mais velhos.

E, conversando um monólogo só dela, a moça foi andando comigo por dois quarteirões.

Originalmente publicado em 18 de dezembro de 2004

Rita

Eu nunca namorei uma Rita.

Já namorei mulheres com nomes bonitos e feios, até com nomes esquisitos. E dessas que se perderam pela vida, já andei até com mulheres cujos nomes eram tão insignificantes que esqueci.

Mas sei que nunca namorei uma Rita, porque se namorasse eu não esqueceria.

Rita é um daqueles nomes aos quais a gente normalmente nem liga, mas que acabam deixando uma sensação boa na gente. Dizem que o nome é um diminutivo de Margherita. Mas não tem jeito de flor nem gosto de tequila, embora seja isso mesmo, um nome que nasceu como diminutivo, oferecendo uma intimidade e um carinho que “Maria Eduarda” não consegue oferecer.

Rita tem gosto de jabuticaba. É namoro no portão, uma mão hesitante descendo dos ombros em uma sessão de “Férias de Amor”. Rita é vestidinho de algodão no meio da canela e um olhar meio tímido e oblíquo que tenta lhe dizer o que a língua não tem coragem de falar.

Mas não pode ser Rita de Cássia, nunca. Tem que ser só Rita. Talvez se pudesse abrir uma exceção, se ela fosse tão unicamente Rita que, ao ouvir seu nome de batismo, as pessoas estranhassem e imediatamente decidissem nunca mais chamá-la por esse nome, porque por alguma razão Rita, e apenas Rita, é a única forma como concebem a sua existência.

Se namorasse uma Rita, eu nem me importaria se um dia ela levasse meu sorriso no seu.

Originalmente publicado em 10 de novembro de 2004

Meus verdes anos II

Zilma, professora de português, entra na sala.

— Rafael, trouxe o livro?

— Não.

— Saia.

— Professora, eu não fiz nada!

— Mas vai fazer. Saia.

***

Santos, professor de inglês, cuja tese de que “tchê” era uma palavra e oxente não gerou algumas discussões:

— Vocês sabem quantas vezes as bombas atômicas que os Estados Unidos e a União Soviética têm podem destruir o mundo?

Eu levanto a mão.

— Uma, professor.

— Nada disso! São mais de 500!

— Uma, professor.

— São mais de 500!

— Só tem um mundo, professor.

***

Rosa Virgínia, de geografia:

–… Nostradamus preveu que o mundo…

— Nostradamus não preveu nada, professora.

— Como não? Eu tenho o livro!

— Dizem que ele previu algumas coisas. Mas não preveu nada.

***

Zilma me pega dando cola a Fabiano numa prova e me tira um ponto.

A redação daquele dia foi mais ou menos assim:

“Algumas pessoas xingam suas professoras. Xingam de vagabunda, de piranha, até de coisas ainda mais feias como prostituta. Isso não se deve fazer. Isso é feio.”

***

Dênisson quebra o pau com Santos e vai para a coordenação de disciplina, que julga o caso grave o suficiente para ir ao padre. Enquanto ele espera, me sento ao seu lado para fazer companhia.

Inara volta e leva os alunos que estão ali para a sala do padre Carvalho. E diz para eu ir também. Não adiantam os meus protestos de inocência. Eu também vou para o padre, revoltado com tamanha injustiça, reiterando meus protestos de inocência, enquanto alguém — Paulo? Dênisson? — enfia a mão no aquário e tenta matar os peixes do padre. Foi a única vez que o padre Carvalho não passou a mão na minha cabeça. Não gostou muito dos meus protestos.

O Arquidiocesano tinha acabado de inventar a punição retroativa. E talvez a preventiva.

Originalmente publicado em 21 de outubro de 2004

Eu já

Atendendo ao pedido do Alexandre, resolvi entrar nessa onda confessional e aqui vai o meu “Eu Já”.

Eu já comi arroz
Eu já comi feijão
Eu já comi carne
Eu já comi macarrão

Eu já comi alface
Eu já comi berinjela
Eu já comi brócolis
E brigadeiro na panela

Eu já comi doce de caju
Eu já comi goiabada
Eu já comi doce de leite
Eu já comi marmelada

Eu já comi porco
Eu já comi javali
Eu já comi búfalo
Cobra não, nunca comi

Eu já comi caranguejo
Eu já comi siri
Eu já comi ostra
Eu já comi sushi

Eu já comi lagosta
Eu já comi pitu
Eu já comi escargot
Ah, que rima feia eu ia fazer

Eu já comi pão
Como eu gosto de pão
Eu já comi pão
Eu já comi pão

Eu já comi rã
Gosto muito, até
Tanto quanto de coelho
E eu já comi jacaré

Eu já impliquei com garçom
Porque ele não trazia carneiro
E quando trouxe, deixei de lado
Porque sempre fui encrenqueiro

Eu já comi espaguete
À bolonhesa e à marinara
Ao alho e óleo e quatro queijos
Mas gosto mesmo é à carbonara

Eu já comi sashimi
Eu já comi camarão
Mas até hoje desconfio
Que aquele peixe não era salmão

Eu já comi feijão, já disse
Mesmo sem gostar nada
É que eu não gosto de feijão
Mas encaro uma feijoada

Eu já comi pimentão
Eu já comi ervilha
Eu já comi rúcula
Eu já comi lentilha

Eu já comi acarajé
Eu já comi abará
Cocada branca e morena
No Tempero de Dadá

Eu já comi bolinho de estudante
(Que a Dadá, engraçadinha
Resolveu, com muito mau gosto
Chamar de punhetinha)

E como comi sanduíche
De todo tipo: bom e ruim
Mas gosto mesmo é de comida baiana
Só não gosto de xinxim

Já comi comida grega em Paris
Prova de que éramos burros
Adoro pastel velho, de boteco
E sempre gostei de churros

Eu já comi tanta coisa
Inclusive o que não devia
Mas o mais engraçado, mesmo,
É que tudo vai embora no outro dia

Essa é a minha filosofia.

Originalmente publicado em 15 de outubro de 2004

Se não me falha a memória

Eu chegava ao cinema cedo, para a primeira sessão da tarde, e as luzes estavam acesas e as poltronas estavam vazias, e de trás da tela vinham arranjos instrumentais de clássicos do american standard, talvez interpretados por Ray Conniff.

Eu sentava e pensava na vida, e mesmo não tendo muito em que pensar me aplicava a esse exercício com a seriedade dos que decidem os rumos do mundo, mas ao mesmo tempo com a leveza dos que sabem que não precisam carregar o mundo nas costas.

Então a música parava, infelizmente no meio de Night and Day, felizmente no meio de Besame Mucho, e eu sabia que imediatamente as luzes se apagariam e a voz, sempre a voz de Jorge Ramos apareceria em sua grandiosidade de Cinemascope.

Se não me falha a memória, primeiro vinham os cinejornais. Normalmente atrasados em muitos dias, às vezes semanas.

Que bonito era o Canal 100, com imagens grandiosas de jogadores dançando ao redor da bola em meio a um Maracanã mal iluminado, e a locução de Cid Moreira. De que importava que o jogo fosse antigo, que se soubesse de cor e salteado o resultado? O Canal 100, percebo agora, não era um cinejornal. Era uma declaração de amor do cinema ao espírito do Brasil, o casamento entre duas grandes artes.

Eu não sabia, mas aquele era o último suspiro de uma época que havia sido enterrada pela televisão. Não haveria mais cinejornais. Eu estava assistindo aos últimos momentos de uma arte que nasceu e morreu no século em que nasci mas ao qual sobrevivi.

Depois vinha um curta-metragem. Se eu soubesse o que era a Embrafilme na época resmungaria contra a política cultural do governo, contra aquela tentativa de me infligir aquelas coisas, mas eu não sabia sequer que existia governo, e só conseguia suspirar e esperar que o suplício acabasse logo, como um menino que termina o seu dever de casa enquanto ouve os amigos chamando por ele. Mas mesmo odiando-os a todos, não me saem da lembrança um pequeno documentário sobre o São Cristóvão, campeão em 1926, um meio surrealista que depois seria inspiração para um comercial de tintas (fundo branco infinito, e o artista enlouquecido joga as tintas desvairadamente cenário afora) e o melhor de todos eles, em que a divina, divina Denise Dumont, sonho inalcançável de infância, pega um ônibus lotado e se abaixa para a delícia dos passageiros e dos espectadores, e aquela visão calipígia fazia valer todo o dinheiro economizado durante a semana.

Era antes do DiVX, antes do DVD, antes mesmo do video-cassete, e os cinemas costumavam exibir reprises de grandes sucessos; se passei batido por “… E o Vento Levou” assisti a dois, três desenhos da Disney, e vi o trailer de Help! dos Beatles, sem saber o que era help e sem saber quem eram os Beatles.

E então vinha, finalmente, o certificado de censura atestando que aquele filme tinha sido liberado para menores de 14 anos. Eram parecidos com os da TV. E para mim faziam parte da programação normal. Não evocavam a ditadura, não me faziam pensar em liberdade de expressão. Eram apenas um aviso de que o filme ia começar, de que a espera havia terminado. Um aviso, só isso, como o leão da Metro, os holofotes da Fox ou o cume nevado da Paramount.

Era uma época em que o cinema impunha menos regras, porque se podia fumar, comer, beber, namorar nas poltronas do fundo. Mas eu era criança para namorar, e desde aquela época eu gostava de ir ao cinema sozinho, e ainda que tivesse namorada não iria ousar as ousadias que se ousam no cinema, e minha mão não desceria dos seus ombros, cautelosa, hesitante, esperando a reação ou o suspiro dela, ela que nem seios teria.

E bolinar a namorada em meio a um filme dos Trapalhões é simplesmente errado.

E então, quando os créditos finais terminassem de subir a tela, com as luzes já acesas, e se fosse bom o filme, eu esperaria uma nova sessão, sem que nenhum lanterninha falsamente gentil e eficiente viesse me convidar a sair.

Se não me falha a memória, essas lembranças vão completar um quarto de século.

Originalmente publicado em 07 de outubro de 2004

Antes que abram as urnas

O deputado me pede para escrever uns textos para uma candidata a vereadora — que promete bastante e em quem o seu partido está interessado — e supervisionar sua gravação. Não importa que eu seja redator do programa dos majoritários, não importa que eu não goste de sentar atrás de um monitor de vídeo: esse é o tipo de galho que a gente sempre quebra.

E lá vem ela, trazendo a filha a tiracolo.

A menina tem peitos arrebatadores, impressionantes, controlados a muito custo pelo decote perdulário, e se torna difícil tirar os olhos deles enquanto interrogo a mãe para decidir o que ela deve dizer. Ela não é exatamente a menina mais bonita do mundo, mas um tio filósofo dizia que quem come cara é bexiga. Pergunto seu nome e sua idade — 16 anos de belas coxas e belo, belíssimo umbigo.

Eu, provavelmente meio alto pela quantidade balzaquiana de café que ando bebendo, resolvo que vou aliviar um pouco a minha tensão.

Começo a chamar a candidata de sogrinha. Quando termino a gravação pergunto à menina o dia do seu aniversário, e então digo a sua mãe que exijo ser convidado para a festa no tal dia de 2006. A mãe dá uma risada e eu anoto: se essa menina voltar a aparecer por aqui é porque a mãe liberou.

Somos todos animais políticos, afinal.

***

Nas eleições de 1996 uma candidata a vereadora resolveu quebrar as regras e me pediu para escrever o seu texto da TV.

Eu não escrevia texto para vereador. Eles que se virassem, a barra já estava muito pesada (aquela seria a única eleição que eu perderia) para que eu perdesse tempo com o amontoado de malucos que brigavam pelo dinheiro dos santinhos, camisas e cabos eleitorais e pela oportunidade única de falar bobagem em tempo exíguo na TV.

Mas ela confiava em seu charme. E no de suas meninas.

Tia Fulana era cafetina, dona de um puteiro famoso, ou assim dizia um jornalista que já fora respeitado mas tivera sua carreira destroçada pela cocaína, seu cliente e amigo. Era uma ruína de mulher, e ruínas de putas são sempre mais deterioradas, mais tristes. Ela invariavelmente chegava à produtora acompanhada de duas ou três de suas protegidas, ou funcionárias, ou sobrinhas.

E lá veio ela, rebolando, tentando flutuar no ar: “Gatinho, escreve um texto pra mim”. Pronunciava “gatchinho”, com o sotaque pseudo-carioca bizarro e arrastado que alguns sergipanos usam quando querem parecer sofisticados.

Dava um sorriso sexy, exalava um perfume de mulher velha, peitos gelatinosos apertados numa blusa de lycra. Deve ter achado que eu tinha uns 18 anos; e provavelmente julgava seduzir o garoto encantado ante possibilidades de sexo com uma mulher experiente — ou, sendo mais realista, que estaria disposto a trocar uns 15 segundos de texto por promessas de suas meninas oxigenadas.

Eu dei o meu melhor sorriso e disse que não podia, que não era autorizado a escrever, que aquilo iria custar o meu emprego — ou qualquer outra besteira que eu conseguisse inventar.

E então o seu sorriso foi perdendo o calor e parecia disfarçar uma raiva surda, e eu tinha a impressão que ela estava silenciosamente me xingando de viado filho da puta. O meu sorriso aumentava.

A cada negativa ela percebia que seu tempo já tinha passado. Ela me deu as costas e, rebolando, foi para o estúdio, com suas meninas sorridentes a tiracolo.

Originalmente publicado em 30 de agosto de 2004

Carlos Zéfiro e eu

Em 1981 um sujeito foi até a agência onde meu pai trabalhava.

Era ilustrador e tinha uns 50 anos, talvez mais. Sobraçava algumas peças e tinha carinho especial por um jornal ilustrado, ou algo parecido, que estava tentando lançar e cuja boneca trazia consigo. Talvez trouxesse outras coisas de que não me lembro. Eu dormia às 8 da noite, e já tinha dormido em algum canto quando ele chegou. Acordei umas duas horas depois.

Eu tinha 10 anos, e naquela noite aprendi muitas coisas. Uma de suas histórias era sobre um pracinha brasileiro que, na Itália da II Guerra, tinha um ataque de “paúra” — foi quando li a palavra pela primeira vez. A capa do seu jornal, no traço inconfundível que só o nanquim em bom papel dá, trazia um alferes Joaquim José da Silva Xavier jovem, bonito, barbeado. Ele explicou que a iconografia tradicional de Tiradentes era uma mistificação, que por ser alferes Tiradentes seria necessariamente enforcado com a barba feita, em respeito à honra e hierarquia militares. Sua barba, seus cabelos longos eram apenas a tentativa da história oficial de aproximá-lo de Cristo e criar um herói nacional de caráter semi-divino e inspirador.

Pelo que consigo lembrar dele, o sujeito era um grande desenhista, de traço acadêmico, mas extremamente sólido. Pertencia a uma geração em que o respeito à anatomia e ao desenho, ao detalhe, eram fundamentais; uma época em que artistas primeiro aprendiam a técnica para só então transcendê-la. Os que conseguiam se tornavam estrelas; os que não conseguiam se restringiam à batalha cotidiana.

Mais tarde foram comer algo num restaurante que ficava no térreo do edifício Sulacap, na praça Castro Alves. Àquela hora, madrugada avançada, eu estava em um novo mundo. E sempre aprendendo: ele falaria que tatu transmite lepra, coisa de que jamais esqueci.

Depois daquela noite eu nunca mais veria o aquele homem. Ele não conseguiu os freelances que queria, e eu só não esqueceria dele porque, afinal, tinha aprendido muito naquelas poucas horas.

10 anos depois, a Playboy trazia Ísis de Oliveira na capa e, no miolo, uma matéria revelando a identidade de Carlos Zéfiro. Era um funcionário público e co-autor de alguns sambas, como “A Flor e o Espinho”, chamado Alcides Caminha.

Ao furo de reportagem a Playboy juntava uma retranca, esta não tão interessante: um baiano tinha tentado aplicar um golpe na revista se dizendo passar por Carlos Zéfiro. Mas a revista foi avisada a tempo e revelou a fraude que tinham tentado lhe empurrar. O engraçado é que o sujeito tinha um traço infinitamente melhor que Carlos Zéfiro. Mas, infelizmente — embora tenha provavelmente desenhado algumas histórias pornográficas –, ele não era Zéfiro. Só queria algum dinheiro.

E minha mãe, ao ver o nome do sujeito, comentou comigo: “Você lembra dele, Rafael? Ele foi uma vez na agência, atrás do seu pai.”

Originalmente publicado em 19 de agosto de 2004