A revolta de um neo-malê

João José Reis acaba de estragar um projeto meu.

Para quem não conhece, o baiano J. J. Reis é um dos maiores historiadores brasileiros, principalmente no que se refere à escravidão na Bahia. Há quase 20 anos ele escreveu um livro chamado “Rebelião Escrava no Brasil”, em que contava a história da Revolta dos Malês em Salvador, em 1835.

A Revolta dos Malês foi uma das mais importantes rebeliões escravas da história do país, em que os negros muçulmanos, culturalmente superiores aos seus donos, tentaram fundar um califado em plena Bahia. A rebelião durou menos de 5 horas, mas foi mais do que importante na definição do futuro brasileiro, já que a repressão a ela extinguiu praticamente todo traço da cultura muçulmana no país. Se eles tivessem vencido — ou mesmo se não houvesse a revolta, e a conseqüente repressão — o país seria diferente.

Quando li o livro, há dois anos, me veio imediatamente a idéia de escrever um roteiro sobre a insurreição. Afinal, dentro do renascimento do cinema brasileiro a Bahia não tem nenhum filme. E a revolta daria um filme maravilhoso.

Obviamente, o projeto dependia de várias questões: contatos, dinheiro, etc. Por isso, só comecei a escrever o roteiro, que abriria com duas crianças brincando lado a lado, uma branca e outra negra, para logo depois mostrar que a harmonia racial na Bahia era apenas ilusão. Também tinha uma cena final definida — uma escrava rebelde sobrevivente desfraldando um alá. Ao todo, isso dava umas quatro linhas.

Mas agora o JJ resolve estragar tudo relançando a sua obra, por outra editora e com 3 vezes o tamanho original.

Sei não, mas acho que o meu filme dançou. Com essa publicidade é bem possível que a Revolta dos Malês venha a se tornar mais conhecida, e algum baiano que não eu, com mais contatos, fará o filme.

Estou revoltado com o JJ. Vou fazer 4 cortes no meu rosto e sair pela UFBa gritando “Viva Nagô!” até achar aquele sacana.

Idi ao inferno

Idi Amin Dada morreu.

Ele era o meu ídolo quando criança. Era o que de mais monstruoso eu conhecia na época, mais pervertido. Era o equivalente moderno a um Heliogábalo, pelo menos na minha imaginação. Eu pensava que o sujeito estava morto, mas bem que minha avó dizia que vaso ruim não quebra.

Mas agora que ele morreu, e já que é de bom alvitre falar sempre bem dos mortos, não custa lembrar que, por mais insano que fosse, Idi Amin era um produto da África. Que por muito tempo não poderá ser julgada por padrões ocidentais.

De qualquer forma, que o negão vai pro inferno, vai.

A vingança da rameira

Alguém ainda se lembra da Lílian Ramos? Depois daquele episódio no Sambódromo com o Itamar, ela foi jogada no lixo. Lembro da Veja dizendo que ela era garota de programa, e esse talvez tenha sido o maior elogio feito a ela na época.

(Na época, eu ficava me perguntando: “E as outras? Cadê as outras?”)

E então ela sumiu.

Bem, a revista do Amaury Jr. fala do seu paradeiro. E quem acha que ela passou a fazer programas cada vez mais baratos, até parar num banquinho da praça Mauá, está muito enganado.

A moça, mais suja que pau de galinheiro no Brasil, resolveu ir para a Itália (como eu não imaginei isso antes? Para onde mais vão putas e travestis ambiciosos?), casou com um milionário e hoje está na lista das mais elegantes da Itália.

A melhor vingança ainda é viver bem.

A decadência da aviação comercial

Eu não peguei aquela fase dourada em que as pessoas colocavam suas melhores roupas e jóias para embarcarem nos Constellation da Panair.

Mas peguei uma época em que o serviço nos vôos nacionais era bem melhor. A comida da Varig era excelente, sempre serviam uma variedade grande de bebidas. A Transbrasil tinha uma maletinha em que vinha até vinho. Viajar de avião, na época, era quase chique.

Hoje, além de uma série de aeromoças feias e mal educadas, como toda paulista, o serviço se reduziu a uma lanche frio e ruim, quando não algumas barrinhas de cereal, aquela invenção imbecil. A crise é grande.

MIB (ou Música Imbecil Brasileira)

A Sula Miranda Cover me presenteou com os versos mais cretinos da música popular brasileira: “Um dia feliz às vezes é muito raro”.

Às vezes é muito raro… Às vezes é muito raro… Às vezes é muito raro… Essa frase não sai mais da minha cabeça.

O que aconteceu com Orestes Barbosa e o seu “Tu pisavas nos astros distraída”, ou com “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor” (de Guilherme de Brito, e não de Nelson Cavaquinho)?

Brega II

Algumas coisas que faltaram no último post.

Faltou combater com mais clareza a falsa idéia de que o brega é, por definição, algo caricato e inferior. Reginaldo Rossi, ultimamente, e Carlos Alexandre divulgaram bastante essa idéia, com letras caricatas e uma atitude condescendente em relação ao universo da música popular.

Nada está mais longe da verdade.

Brilhante no brega é que ele representa não um complexo de inferioridade do povo brasileiro, e sim a sua sensação de superioridade. O brega não é o povo dizendo “olha como eu sou inferior”. Basta ouvir os arranjos das músicas de Odair José para ver que ali estão tentando fazer o que entendem como o melhor. O seu padrão, sempre, é Roberto Carlos; e dentro desse padrão, tenta-se fazer o melhor possível. O brega não é uma prova de incompetência. É, antes de mais nada, um grito de orgulho do povo pelo seu cotidiano e pelo que ele é.

O que bandas como a Vexame, da Marisa Orth, fazem é olhar para o brega com o mesmo paternalismo daqueles que repudiam abertamente o gênero. É negar o valor da música e, ao criar arranjos pop, dar um caráter pejorativo às letras. É um desrespeito à cultura popular, típico daquela geração urbana e alienada, alimentada com os restos do lixo cultural americano e europeu, gente que ouve naturalmente música country mas que não entende Tonico e Tinoco ou um Altemar Dutra. E que por isso desconhece totalmente o que é o Brasil — um país com hábitos culturais extremamente diversos, e explosões de vida em cada grotão que assusta todos aqueles acostumados à unidade cultural da indústria internacional de entretenimento. Gente que nunca tomou um mingau de puba numa feira em Canindé do São Francisco, em Sergipe, ou comeu um pé de moleque em Delmiro Gouveia, em Alagoas.

O outro é que consegui achar uma das letras mais sensíveis do gênero. Ei-la aqui:

Deixe essa vergonha de lado

Eu já sei que nessa casa onde você diz morar
Onde todo dia no portão eu venho lhe esperar
Não é a sua casa

Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo
E se você pudesse fugia desse mundo
E nunca mais voltava

Eu já sei que esse garoto que você leva pra brincar
E que todo dia na escola você vai buscar
Não é o seu irmão

Ele é filho dessa gente importante
E às vezes também é seu por um instante
Apenas dentro do seu coração

Deixe essa vergonha de lado
Pois nada disso tem valor
Por você ser uma simples empregada
Não vai modificar o meu amor

Eu já sei por que você não me convida pra entrar
E se falo nessas coisas você procura disfarçar
Fingindo não entender

Eu já sei por que você não me apresenta aos seus pais
Eu entendo a razão de tudo isso que você faz
É medo de me perder

Eu já sei que na verdade nada disso você quis
Você simplesmente pensou em ser feliz
Aí não quis dizer

Mas você de uma coisa pode ter certeza
O amor que você tem por mim é a maior riqueza
Que eu preciso ter

Deixe essa vergonha de lado
Pois nada disso tem valor
Por você ser uma simples empregada
Não vai modificar o meu amor

Há alguns anos, apareceu uma empregada lá em casa que não tinha o biotipo clássico da empregada nordestina. Rosa era loura, bonita, vistosa — desde que não abrisse a boca e jogasse fora as roupas que usava. Por ter uma aparência “européia”, não tinha dificuldade em dizer a todos que não era nossa empregada, e sim nossa prima. Ela era o próprio retrato dessa música de Odair José.

Se Reginaldo Rossi hoje assume uma postura caricata e deliberadamente camp, ele é o autor de uma das mais singelas letras do gênero, em “A Raposa e as Uvas”. Principalmente no Nordeste, até meados dos anos 80, o modo de vida que Rossi apresenta naquela canção é extremamente comum. Em sua melhor forma, os grandes cantores brega são os verdadeiros cronistas musicais do Brasil. Suas músicas são “A Canção de Rolando” de um país que ainda tem vergonha de se assumir.

Brega é bom.

Brega

Não conheço ninguém que tenha um nível considerado “razoável” de cultura que admita gostar de música brega. Não me refiro aqui a essas aberrações tipo Chitãozinho e Xororó ou Kelly Key, mas ao grande e vigoroso brega dos anos 70 e 80. Fernando Mendes, Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista.

Com exceção de Roberto Carlos, a grande trilha sonora deste país, esses nomes são talvez o que de mais puramente popular a cultura brasileira produziu em sua história.

Musicalmente o brega é derivado da Jovem Guarda, e principalmente de Roberto Carlos. Que por sua vez já é derivado do pop dos anos 60 e da música romântica dos anos 70. Os versos são geralmente simples, simplórios até. Mas trazem uma grande virtude: verdade.

Eis alguns versos de “Menina do Subúrbio”, de Fernando Mendes:

Lê as colunas sociais
Sonha com seu nome nos jornais
Espera um convite para ser atriz
E pede a Deus para ser feliz

Ouve música estrangeira
Sentada na janela
Não entende uma palavra
Mas pensa que é pra ela

Finge que é importante
Pras meninas lá da rua
E não vê que no subúrbio
A vida continua

Eu, pelo menos, conheci algumas pessoas assim.

O mérito da música brega, quando ela é realmente grandiosa, é a verdade que contém. Esses versos contêm muito mais verdade do que, por exemplo, aqueles versos imbecis dos Tribalistas: “Não sou de ninguém, sou de todo mundo e todo mundo é meu também”.

Mesmo a simplicidade musical pode ser enganosa. Algumas dessas músicas têm excelentes seqüências de acordes, e principalmente em Odair José os valores de produção são semelhantes aos utilizados por Roberto Carlos.

Mais ainda, elas refletem a vida do povão deste país:

Olha, a primeira vez que eu estive aqui
Foi só pra me distrair, eu vim em busca do amor
Olha, foi então que eu lhe conheci
Naquela noite fria, em seus braços
Meus problemas esqueci

Olha, a segunda vez que eu estive aqui
Já não foi pra distrair, eu senti saudade de você
Olha, eu precisei do seu carinho
Pois eu me sentia tão sozinho
Já não podia mais me esquecer

Eu vou tirar você desse lugar
Eu vou levar você pra ficar comigo
E não interessa o que os outros vão pensar

Eu sei que você tem medo de não dar certo
Pensa que o passado vai estar sempre perto
E que um dia eu posso me arrepender
Eu quero que você não pense em nada triste
Pois quando o amor existe, não existe tempo pra sofrer
(Odair José, Eu Vou Tirar Você Desse Lugar)

É, putas eventualmente se casam. E é assim que funciona.

O que o mundo da alta cultura — que se considera alta por ouvir Caetano Veloso, igualmente pop; na verdade, são extremamente middlebrow — não consegue admitir é que a música é um espelho do país: português e africano, melancólico, às vezes sem vergonha de expressar sentimentos básicos e constrangedores.

Mais ainda, é essa identificação com o que o país tem de mais popular, com a herança das classes mais baixas, que parece incomodar. Graças a um sentimento de colonizados, é curiosamente mais fácil virar as costas para o povo brasileiro e abraçar cegamente a cultura de outros países. E então idolatram os hollers dos escravos americanos catando algodão, transformados no blues. É parecido com o que se ouve nas feiras do interior, mas a esses se tem aversão.

Talvez seja até mais grave do que isso. O brega, por ser dinâmico, por ser atual, não conseguiu se tornar pitoresco como o cordel, por exemplo. É fácil cantar loas a um gênero cuja relevância social acabou-se há tempos, desde que o rádio chegou aos confins do país.

Mais que a maior parte dos cantores chiques da MPB, os cantores brega pintam um retrato fiel e simples do cotidiano do povo brasileiro. E isso parece ser insuportável.