Os dragões da maldade contra o kinemanacional

O Marcus já deu um dos principais argumentos a favor do kinemanacional feito com dinheiro público: os únicos países cuja produção cinematográfica independe de financiamento estatal são os EUA e a Índia.

Mas não é só isso.

As pessoas reclamam de Bush e seu evangelismo alucinado, mas esquecem que ele é apenas a face mais radical de uma postura que os Estados Unidos sempre adotaram. Eles sempre foram agressivos na defesa de seus interesses e na sua expansão. É conseqüência indissociável do tal “destino manifesto” deles.

Dentro dessa realidade, uma outra ótica é o já velho discurso liberal contra o financiamento estatal, fingindo que o mercado regula tudo. Não regula. Os Estados Unidos, em suas negociações comerciais, costumam bater pé em relação à distribuição de seus filmes. Em sua face mais branda, financiam grandes campanhas contra a pirataria; na mais dura, emperram acordos comerciais como fizeram, por exemplo, na Europa em 1992 para garantir a livre circulação de sua produção em detrimento da produção local.

Fazem isso porque cultura — ou melhor, filmes e música, e agora TV — é uma de suas principais indústrias internas e um dos principais artigos de exportação. É um dos motivos pelos quais o laissez faire cultural de uma parte da dita intelligentzia brasileira é simplesmente idiota. Outro é o esquecimento da montanha de dinheiro que os Estados Unidos investiram em sua indústria cinematográfica ao longo dos tempos, em investimentos diretos e subsídios.

Lembrando disso, não dá para deixar de imaginar que todos parecem esquecer como funciona o mercado cultural. Os EUA têm mais dinheiro, produzem mais filmes, e conseqüentemente produzem mais filmes bons. Mas para subverter as tais leis de mercado que os outros devem obedecer, fazem questão de empurrar o seu lixo. Para uma TV brasileira comprar os direitos de um filme de sucesso, por exemplo, é obrigada a levar de contrapeso um bocado de filmes abaixo do aceitável. Sempre foi assim, sempre será.

É por isso que, queiram nossos queridos direitistas ou não, os projetos de incentivo ao kinemanacional que vêm desde o governo Sarney foram a melhor coisa que aconteceram à cultura nacional, em sua tentativa de equalizar um pouco essa disputa.

Isso não quer dizer que a atual política de audio-visual não precise de ajustes. Precisa, claro. E certamente precisa estabelecer um cronograma de substituição de investimentos estatais, à medida que o mercado vai se fortalecendo. Infelizmente, não vejo nenhuma proposta do tipo em nenhuma das arengas contra a política cultural. Só a repetição ad nauseam da ladainha “o mercado tudo pode… O mercado tudo pode… O mercado tudo pode…”

Essa crítica vazia, baseada em uma concepção ideológica sem nenhum compromisso com a realidade, é apenas cansativa. É herdeira direta daquela que impôs ao kinemanacional nos anos 50 o nome derrogatório de “chanchada”; críticos embasbacados pelos filmes B americanos, às vezes até financiados por eles, desdenhavam a produção nacional em sua melhor fase, não reconheciam gênios como Oscarito e Grande Otelo; muitos até hoje se recusam a ver a beleza única de “O Pagador de Promessas”. E quando juntam a essa xenomania o paulistismo descem a lenha em filmes belíssimos como “Central do Brasil”.

Se alguém viu Man on Fire, de Tony Scott — o “irmão menos talentoso de Ridley Scott”, como disse o excelente crítico de cinema Ivan Valença — deve ter visto a influência estética que o filme sofreu de “Cidade de Deus” (não tão grande quanto de Traffic, claro), a ponto de contar com dois excelentes atores brasileiros, Charles Paraventi e o magnífico cearense Gero Camilo. Isso só foi possível porque “Cidade de Deus” recebeu verbas estatais. Fosse esperar a famosa iniciativa privada e o filme ainda estaria em uma gaveta do Fernando Meirelles. E mesmo assim Man on Fire, um filme americano típico e mediano, fez mais dinheiro que “Cidade de Deus, garantindo que Tony Scott continue a fazer seus filmes — talvez Top Gun II, quem sabe. É a isso que o mercado leva.

O pessoal que reclama contra os subsídios estatais deveria lembrar para que servem impostos. Eu só não entendo por que reclamam de dinheiro público financiando cinema, e não reclamam de estradas sendo privatizadas, por exemplo.

Entre os defensores da aplicação cega das leis do libérrimo mercado à cultura estão muitos bons escritores inéditos, que usam blogs para veicular sua produção. Eles sabem, mais do que ninguém, que escritores brasileiros iniciantes são as primeiras vítimas do mercado. Eles não são publicados porque as editoras preferem apostar no certo, em direitos de best sellers americanos, ingleses, ou em livros chatos que a crítica européia incensa. Foi assim, por exemplo, que caímos no golpe do nouveau roman francês.

Eu, se fosse editor, publicaria todos esses bloguistas. A razão é simples: prejuízo eles não dariam. Quem duvida que o Alex daria retorno à sua editora? Se ele consegue dinheiro com aqueles anúncios do Submarino, imagine quantas cópias ele não venderia de “Mulher de um Homem Só”. Todos esses bloguistas: se vendessem direto apenas em seus blogs já recuperariam o investimento.

Mas cinema não é literatura e os custos são outros. Em mercados como os EUA é relativamente fácil conseguir investidores. Porque nenhum filme dá prejuízo. Ainda que o filme fracasse miseravelmente nas salas de exibição, há ainda o mercado de DVD e as emissoras de TV de países sub-desenvolvidos, cujos gênios da raça engolem a lenga-lenga do livre mercado e compram esses filmes ruins para serem exibidos nos Supercines da vida.

13 thoughts on “Os dragões da maldade contra o kinemanacional

  1. rafael, obrigado pelos elogios, mas o dinheiro público pertence a todos e foi ganho com muito suor. eu nao vejo pq todos os brasileiros, do camelô da esquina ao abílio diniz, teriam qualquer obrigação, ou ganhariam qualquer vantagem, em dar dinheiro na mao de cineasta pra fazer filme.

  2. Alex, bora definir o que é imposto: dinheiro que o Estado arrecada em benefício da nação.

    Se a gente vai reclamar de cineastas ganhando dinheiro do Estado para fazer filmes, tem que reclamar de professores ganhando dinheiro do Estado para dar aulas, de médicos ganhando dinheiro do Estado para tratar pacientes, engenheiros ganhando dinheiro do Estado para… Ah, deixa pra lá.

    A não ser que tenham mudado a Constituição — e a própria concepção filosófica de Estado — cultura é parte integrante e fundamental desta bodega.

  3. Concordo com seus argumentos, Rafael. O problema é a enorme dificuldade de fazer as coisas funcionarem satisfatoriamente. Como os recursos são limitados, é necessário estabelecer um critério de seleção estreito. Qual seria o critério? Não dar dinheiro pra Sandy & Júnior e Xuxa? Mas por que não? Dar para o Cláudio Assis? Por que dar? O ponto é a escassez dos recursos. O ideal seria financiar muita coisa. De padre Marcelo a Julio Bressane. É a quantidade que vai gerar qualidade. Mas temos outras contas a pagar.

  4. se o estado tem obrigação de proporcionar cultura a todos os cidadão pq eu tive q pagar 2 vezes para assistir cidade de deus, 1 com o imposto segunda com o ingresso.
    eu sou contra essa “doação” de recursos do estado, existem outras formas do estado contribuir culturalmente.

  5. Existem ajustes que podem ser feitos, Vítor, entre eles a devolução, ao próprio Estado, de parte do lucro que os filmes eventualmente derem, como acontece em alguns países europeus.

    O que não dá é para dispensar o apoio estatal. O cinema brasileiro morre sem isso. Não adianta tapar o sol com a peneira.

    Putz, quando eu crescer quero ser que nem você, Rafael. Achei perfeito o texto. Estou aguardando a resposta do Alê.

    Linkei de volta e coloquei meu comment passado lá no corpo do Velho…

  6. sobre o financiamento, o lance é complicado… o vitor tá certo e concordo também com o alexandre – embora o estado tenha que ajudar de alguma forma. mas uma coisa curiosa: alguns dos melhores cineastas brasileiros estão fazendo filmes nos eua… o salles, o meirelles e parece que o arraes também vai… os americanos são bem espertos, vai dizer?

  7. acho que a grande diferença aqui é que vcs pensam o dinheiro do Estado como sendo do Estado, e eu penso o dinheiro do Estado como sendo MEU, e por isso, ainda não entendi pq EU teria que pagar pro cinema nacional não morrer. e daí se morrer? pq deveríamos sustentar um cinema nacional deficitário? no isso nos favorece? o Estado existe sim para manter instituições deficitárias que não teriam como se sustentar na iniciativa privada: escolas, hospitais, forças armadas. Mas por que Olga e Central do Brasil? O país estará melhor se pegarmos esse dinheiro e construirmos mais escolas públicas ou aumentarmos o salário dos professores primários.

  8. Concordo com o Rafael em gênero número grau. Alexandre, o dinheiro que falta nas escolas e hospitais não foi para o cinema nacional. Foi para FMI para fazer superávit primário. Outra coisa, dinheiro seu vírgula. Dinheiro da coletividade que o produziu. No momento em que a gente substitui a primeira pessoa singular pela primeira pessoa plural a coisa muda de figura. E a maioria da população brasileira é a favor de que criemos/mantenhamos políticas que permitam que o cinema brasileiro sobreviva forte.

    O que mais me espanta nos fundamentalistas de mercado quando falam de cinema é que enchem a boca para falar dos americanos, para dizer que a ´eficiência se sustenta sozinha´, ignorando *toda* a história das violentas reservas de mercado nos EUA, das violentas negociações através das quais eles impôem seus produtos, às vezes até por meios militares (como na República Dominicana em 1962, onde a ´cultura´ foi parte da justificativa da invasão). O cinema americano sobrevive sozinho vírgula. Sobrevive sozinho agora. Vai lá ver a história nos anos 30 como foi.

    O que não quer dizer que a gente não possa melhorar os mecanismos de distribuição dos recursos. Tudo bem: há panelinhas, etc. etc. Agora, entrega tudo pro mercado procê ver, neném, onde a gente vai parar.

  9. Bravo, Rafael.
    Eu tinha ficado entalada com o monte de asneiras que o Alexandre falou no blog dele sobre lei de incentivo cultural e impostos, ler o seu texto foi um alívio.
    Bravo!

  10. “[…] o esquecimento da montanha de dinheiro que os Estados Unidos investiram em sua indústria cinematográfica ao longo dos tempos, em investimentos diretos e subsídios.”

    Ora, lá, como cá, os políticos precisam de alguém para pagar seus banners, bottons e comerciais na TV (bem, aqui eles não precisam tanto, já que a lei confisca uma parte da programação das TVs para exibição da propaganda política obrigatória) e é uma troca bem tentadora estabelecer (ou fazer pressão para que o Executivo o faça, no caso dos representatives) um “subsidiozinho” (que a população nem vai notar) em troca de, bem, “apoio” nas próximas eleições. É uma simbiose tão perversa quanto incompreendida (no Brasil, claro – lá fora isso é arroz-com-feijão em qualquer faculdade de Ciência Política ou afins): políticos e empresários dão-se as mãos em detrimento da massa de consumidores. Aqui, não apenas não enxergamos essa perversão, como ainda a exaltamos, achamos o máximo que o governo tome nosso dinheiro e, ao invés de usá-lo onde realmente é necessário (escolas, hospitais e delegacias), dê a quem menos precisa dele!

    P.S.: Num güentei e ‘cabei fazendo um post sobre isso – http://alfredneuman.blogspot.com/2005/01/blogosfera-em-chamas.html

  11. O estado não deve “sustentar” o cinema, o estado deve “investir” no cinema, afinal investimento implica retorno. Acho interessante quando o sujeito foge do fedor do brasileiro para cheirar bunda de americano. Cultura deve ter um investimento como qualquer outro setor comercial. O problema é a tendência a se criar peitilhas para a velha mamada. Isso é que deve ser evitado. Prá mim o grosso do investimento deve ir para a divulgação.

  12. O problema é a falta de confiança no governo para distribuir verbas. O Governo é isento? É justo? Decide com critérios que seriam aprovados pela maioria? Estes critérios são, ao menos, divulgados?

    Quatro “não” como resposta.

    Pessoalmente, eu preferia que o governo incentivasse o cinema através do imposto de renda. O Governo libera um desconto no meu IRPF e EU escolho para quem eu quero mandar a merreca.

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