Eu falei Faraó-ó-ó

A arqueologia internacional foi sacudida, nas últimas semanas, por uma descoberta que deverá mudar os rumos da história mundial.

O rei Tutankâmon, aquele da maldição que pegou Lord Carnarvon de jeito e cujo túmulo, ao ser descoberto, inspirou as dezenas de filmes B sobre egiptologia (nome bonito para filmes de terror com múmias) que infestaram os cinemas e que até o final dos anos 1970 eram presença constante na TV, era cearense.

(Link, via Boing Boing)

O surfista e o fantasma

Durante algum tempo julguei ter uma idéia genial.

O Fantasma era um personagem com o qual se podia fazer grandes coisas. Graças à sua estrutura podia-se matar o personagem de 20 em 20 anos, ele podia dar respostas mais adequadas a cada geração, seu interesse podia ser sempre renovado. Ele podia ter todo tipo de problemas, podia ser alterado sem que se recorresse a fórmulas arriscadas.

(Era uma idéia equivocada, como admiti em um dos primeiros posts deste blog. É um bom post.)

Mesmo tendo sido criado em 1936 por um americano, o Fantasma é um personagem vitoriano. É um produto da visão colonial inglesa. Se hoje é possível olhar para trás e ver que a data corresponde mais ou menos ao início da decadência do colonialismo britânico na África, na época a percepção era diferente. A consolidação do cinema como principal opção de lazer de massas mostrou para o grande público as imagens da grande África Negra. E se podemos dizer, como Peter Gay, que a era vitoriana acabou em 1914, no imaginário popular (principalmente no americano) as coisas se processam de maneira diversa e mais lenta. Naquela época, mais do que nunca, a mitologia do continente misterioso estava mais viva do que nunca.

Mas o fato é que o progresso matou o Fantasma, ao destruir a aura de mistério que cercou a África no século XIX e que se renovou em imagens durante as primeiras décadas do século seguinte.

E então eu lembro do Surfista Prateado.

Desculpe meu esnobismo, mas tenho pena de quem gosta de quadrinhos e não acompanhou a fase áurea do personagem no final dos anos 60, por Stan Lee e John Buscema. O Surfista Prateado é um personagem preso à Terra por se recusar a servir seu mestre, um devorador de planetas, e impedir que ele destruísse o mundo. É a personificação da bondade e do altruísmo, e não é à toa que seu maior inimigo é justamente um demônio, Mefisto.

Eu tinha 10 anos quando li “O Nulificador Total”, uma das melhores histórias do Surfista. E eu, que nunca choro, terminei a história com os olhos marejados.

Mas o principal aspecto do Surfista, aquilo que o coloca em um panteão dos grandes personagens dos quadrinhos, não é essa bondade. É o fato de ele ser um espírito livre, que viajava por todo o universo, de repente preso a um planeta imperfeito e complexo demais em seus sentimentos. O drama do Surfista Prateado é sartreano, mais do que qualquer outro personagem dos quadrinhos. Quando Jim McBride refilmou o “Acossado” de Godard, em Breathless, percebeu esse elemento, e o personagem que tinha sido de Jean Paul Belmondo foi interpretado por um Richard Gere aficcionado por Jerry Lee Lewis e, claro, pelo Surfista Prateado.

O Surfista pertencia a uma era específica, o fim dos anos 60 com suas indagações e questionamentos sociais e existenciais. O Surfista Prateado era um personagem que derivava imediatamente da cultura beat, e que só tinha sentido dentro de um contexto histórico bastante definido. Com o fim do sonho hippie, ele perdeu sua razão de ser, perdeu o respaldo social que necessariamente sustenta um grande personagem. Os anos 70 não foram feitos para ele.

Assim como aconteceu com o Fantasma, a vida também matou o Surfista Prateado.

Os fidalgos tupinambás

Um velho post do Alexandre sobre nosso egocentrismo é interessante. Concordo com a definição da nossa auto-estima. A gente se acha a última jaboticaba do deserto.

É quando o Alex reclama da nossa mania de “achar a nossa identidade” que as divergências começam.

Fazer comparações com os alemães e franceses é bobagem. Os sujeitos têm dois mil anos de história nas costas — nem um pouco plácida, por sinal — para terem ultrapassado essa fase, ainda que por cansaço. Eles não precisam discutir quem são porque se formaram aos poucos, com culturas semelhantes e que foram se adaptando umas às outras, ao longo de séculos. Mesmo que a Alemanha, como Estado Nacional, exista há menos de 150 anos, ninguém em sã consciência vai conseguir encontrar uma diferença significativa entre a cultura prussiana e a bávara.

Do outro lado, aqui está o Brasil, pouco mais de 400 anos de história (alguém leva a sério os primeiros 100?). Seus escravos foram libertados há pouco mais de 100 anos, até hoje a situação jurídica de seus índios é polêmica. Pior: uma parte importante de sua cultura, principalmente em seu maior centro, foi formada no último século, com uma influência descomunal de italianos e, em menor medida, japoneses. Sem falar nos alemães do sul.

Mas mesmo quando compara os brasileiros com outras culturas que conhece o Alex está exagerando, até porque seria duro bater os americanos nesse quesito — e ele sabe disso. Não se pode esquecer, inclusive, que os ianques têm algumas vantagens a mais — colonização do seu núcleo original feita de maneira razoavelmente uniforme, um sistema político revolucionário e extremamente sólido desde a sua emancipação, um processo de construção nacional traumático mas eficiente a partir de 1860.

Mas mesmo assim os Estados Unidos ainda estão mais ou menos na mesma situação dos brasileiros sem-noção. Os livros sobre os founding fathers abundam, às vezes com trocadilho, e cada geração faz questão de dar uma interpretação diferente, geralmente antagônica à anterior. Washington, Jefferson e Madison passam, a cada 20 anos, de santos a filhos da puta, e vice-versa. A escravidão continua sendo debatida, ainda tentam entender a questão índia. E eles fazem isso não porque são hiper-potência ou porque são provincianos: fazem porque ainda não tiveram tempo de deglutir a sua história.

Talvez o ponto central da argumentação do Alex seja um reconhecimento da maneira como aconteceu o modernismo no Brasil.

Se devemos algo — melhor dizendo, se os paulistas devem algo — ao futurismo italiano, nao dá para negar que o principal aspecto do modernismo no Brasil é justamente a busca da identidade nacional, porque era essa a resposta que aquela geração tinha que dar. É diferente do que aconteceu na maior parte da Europa, muito mais preocupada com aspectos da consciência e do tempo, além, claro, das questões formais da arte. (Analogamente, o futurismo italiano dizia mais respeito à necessidade de assimilar a unificação nacional, à qual aquela bobajada de Marinetti oferece uma resposta ao mesmo tempo que reconhece seu condicionamento por ela.)

De certo modo, a opinião mainardiana do Alex sobre nossa mania apenas ressalta o outro ponto de sua argumentação: a de que ele, como todos nós bons brasileiros, quer sempre mais deste pequeno país simpático.

Nosso complexo de inferioridade

É lugar-comum falar do complexo de inferioridade que os brasileiros têm.

Costumamos reclamar que não levamos a sério as nossas coisas, que damos importância desmedida à opinião dos outros. Quer dizer, costumamos, não: uma parcela do que agora chamam de elite e que na minha época era reconhecida apenas como burguesia costuma dar.

Essa opinião não condiz com a opinião que o resto da América do Sul tem a nosso respeito. Para eles, nós somos os arrogantes. O papel que reservamos à Inglaterra e aos Estados Unidos, por exemplo, como as grandes potências imperialistas e agressoras, é ocupado por nós no Paraguai — e considerando o papel indigno e sujo do Brasil ao final da guerra de 1865, não é algo injusto.

Na verdade nós nos achamos superiores. Talvez nossos valores não sejam os mesmos, e nos orgulhemos de nossa cordialidade e de nossa tropicalidade enquanto outros se orgulham de algo totalmente diferente; mas ainda assim nos achamos melhores, e esperamos que o mundo reconheça isso imediatamente, sem esforço; porque Deus é brasileiro e não parece admissível que os outros não percebam isso e se ajoelhem a nossos pés.

É o mínimo que se pode esperar, porque somos todos fidalgos, amantes da inteligência não-aplicada, válida por si só.

Também temos um grande complexo de vencedores. Gostamos apenas daquilo que fazemos bem. Ninguém dava um penico furado pelo vôlei, até que a geração de Bernard, William e Montanaro apareceu. E de repente o Brasil passou a gostar do esporte (provavelmente o único caso de esporte que mesmo perdedor conquistou as graças do Brasil tenha sido o futebol. Mas futebol e brasileiros são o único exemplo que me faz acreditar em almas gêmeas).

Depois das eleições presidenciais de 1989, por exemplo, um analista estrangeiro que acreditava nessa bobajada disse que Lula perdeu as eleições por causa do complexo de inferioridade dos brasileiros. Teríamos preferido votar no europeu bonito personificado em Collor.

Foi Elio Gaspari quem mostrou a grande fraude nesse raciocínio: Collor era brasileiro. Lula perdeu, na verdade, para o imensurável complexo de superioridade do brasileiro.

E da próxima vez que alguém me vier falar da baixa auto-estima do brasileiro, eu juro que dou as costas.

Seu dotô

Que me perdoe a Lulu, mas eu encaro médicos com a desconfiança que costumo reservar a advogados (perdão também, Roger).

Esta semana resolvi fazer um checkup pela primeira vez na vida. Fazia uns 20 anos que não ia a um clínico geral; e a especialistas também, com exceção de oftalmologistas e de uma ou duas emergências, como quando peguei dengue ou fui picado por uma lacraia em um hotel de Aracaju. Fui por duas razões: para confirmar o que eu sempre soube — que eu não estou morrendo — e para me preparar psicologicamente para um eventual exame isidoriano daqui a uns 10 anos.

Foi a segunda tentativa, na verdade. Eu tinha ido há alguns anos, quano morava no Ceará. Fui a um tal de dr. Salomão. Eles fez os exames de praxe, e implicou com o fato de eu fumar. Pelas fotos espalhadas no consultório vi que ele era um esportista, um espírito jovem que teimava em desmentir os cabelos brancos e as muitas rugas. O tipo que acredita que juventude é mesmo um estado de espírito. Já vi velhos reumáticos entrevados cegos esclerosados acreditando nisso também.

Por recomendação da minha então sogra, fiz uma pergunta sobre as eventuais dores de cabeça que sempre tive. Ele foi taxativo:

“É o cigarro.”

“Mas dotô, eu sempre tive, mesmo desde muito antes de começar a fumar.”

“Não interessa. É o cigarro.”

Nunca fiz os exames que ele prescreveu. Tive medo.

Ano retrasado, acompanhei minha avó a um neurologista na Visconde Silva. Aproveitei para fazer a minha própria consulta. E o dr. Marcelo foi taxativo: cigarro e dor de cabeça não têm nada a ver. Nada.

Foi o que eu pensei: o dr. Salomão não era um sábio.

Bolero

A campainha tocou.

Ante surpresa tão rude, nem sei como pude chegar ao portão. E lá estava ela.

Ah, como esse amor demorou a chegar. Ela disse-me assim: “Tenha pena de mim”.

Sem saber o que fazer, as palavras saíram da minha boca: “Entre, meu bem, por favor, não deixe o mundo mau lhe levar outra vez. Entra, podes entrar: a casa é tua, já que cansaste de viver na rua e teus sonhos chegaram ao fim.”

Ela entrou, cabeça baixa, e ficou ali parada, no meio da sala, à luz difusa do abajur lilás.

Eu interrompi o silêncio: “Que queres tu de mim? Que fazes junto a mim?”

Olhando nos meus olhos, o mesmo olhar, ela perguntou: “Como vai você? Eu preciso saber da sua vida, razão da minha paz tão esquecida.”

Balancei a cabeça, e então lembrei de tudo: “Só louco amou como eu te amei. Só louco quis o bem que eu te quis.”

Ela deu um sorriso triste: “Esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei.” Devagar, se aproximou de mim, o mesmo perfume, o mesmo andar: “Negue o seu amor, o seu carinho. Diga que você já me esqueceu. Diga que já não me quer, negue que me pertenceu que eu mostro a boca molhada, ainda marcada pelo beijo seu”.

Explodi: “Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.”

Ela levantou a cabeça, e tentou mostrar a velha altivez de antes:

“Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz! Se meu passado foi lama hoje quem me difama viveu na lama também.”

Aquelas palavras me deixaram descontrolado. Gritei: “Agora você vai ouvir aquilo que merece. As coisas ficam muito boas quando a gente esquece; mas acontece que eu não esqueci a sua covardia, a sua ingratidão, a judiaria que você um dia fez pro coitadinho do meu coração!”

Seu Orestes e dona Dolores, meus vizinhos, ouviram os gritos e foram até a janela perguntar o que estava se passando. E eu disse a ele: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher? E depois encontrar esse amor, meu senhor, ao lado de um tipo qualquer?” Seu Orestes abanou a cabeça e levou um cutucão de dona Dolores. Nesse instante uma voz ecoou: “Magoou-se, pobre filho meu?” Era dona Dolores, preocupada. Respondi que não, que eu resolveria aquilo, e eles se foram.

Olhei para ela: “Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem. A nossa casa, querida, já estava acostumada, guardando você; as flores na janela sorriam, cantavam por causa de você. E tu pisavas nos astros distraída…”

Aos prantos ela se ajoelhou aos meus pés: “Nunca mais vou ouvir o que o meu coração pedir! Nunca mais vou fazer o que o meu coração mandar! Eu fiz mal em sair, eu fiz mal em deixar o que eu tinha em você! Hoje eu volto vencida, a pedir pra ficar aqui, faz de conta que eu não saí!”

A estrofe derradeira merencórea revelava toda a história de um amor que não morreu.

Mas isso não bastava. Não para mim: “Quando eu queria o teu amor não davas atenção ao meu. Pra mim tu não tens mais valor, agora quem não quer sou eu. Nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim as pazes contigo eu farei.”

Ela continuou: “Se eu soubesse naquele dia o que eu sei agora, eu não seria este ser que chora, eu não teria perdido você”.

Quem sou eu pra ter direitos exclusivos sobre ela?, pensei. Menti: “Se acaso você chegasse no meu chatô e encontrasse aquela mulher? Eu falo porque essa dona já mora no meu barraco, à beira de um regato.

“Quem é ela?”

“De quem eu gosto nem às paredes confesso. Provei do amor todo amargor que ele tem. Então jurei nunca mais amar ninguém. Porém, eu agora encontrei alguém que me compreende e que me quer bem.”

Ela ficou em silêncio.

Apontei para fora. “Eu estou lhe mostrando a porta da rua pra que você saia sem eu lhe bater.”

Ela ficou parada, estática. Limpou as lágrimas, alisou o vestido e, dirigindo um último olhar para mim, falou: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor. E às pessoas que eu detesto diga sempre que eu não presto, que o meu lar é o botequim; que eu arruinei sua vida, que eu não mereço a comida que você pagou pra mim.”

E ela se foi.

Hoje eu quero a paz de criança dormindo e o abandono de flores se abrindo para enfeitar a noite de meu bem. Mas quando eu morrer, na minha campa nenhuma inscrição: quando eu morrer não quero choro nem vela, quero uma fita amarela gravada com o nome dela.