Os filhotes de Bento XVI

Ih, rapaz, o Pedro Sette Câmara se doeu com o último post.

Num blog chamado “O Indíviduo”, que emana um certo cheiro de Olavo de Carvalho e tem como epígrafe uma frase do papa Bento XVI, o sujeito começa dizendo que eu sou feio — se é que entendi bem a ironia, porque nunca se sabe se ele está falando sério ou não.

E, poxa, essa me baqueou. No fundo do coração. Porque o Pedro não sabe, mas essa foto aí em cima é a melhorzinha que eu tenho. Tenho outras ainda mais feias. Isso dói, meu filho; o padre devia ter te ensinado a não magoar as pessoas assim. Vou bater a cabeça na parede assim que acabar de escrever isto aqui. Na verdade, só estou respondendo ao seu post por causa disso.

Mas vamos lá.

O melhor mesmo é o adjetivo que o Pedro usa mais abaixo para definir a minha atitude: “mentalidade mimada”. É prima da “superioridade” que ele julga, talvez freudianamente, ver em nós ímpios. Argumento fácil, bobo, que tenta transferir para nós, depravados sem fé, uma noção que na verdade é deles. São eles que julgam que a sua fé nos ditos da Igreja os tornam superiores a essas tentações carnais do demônio, e são eles que pregam soluções imbecis como a “abstinência” em detrimento de medidas preventivas como o incentivo ao uso da camisinha. Pior: dão à camisinha um poder que ela não tem. É nessa tergiversação e nessa inversão da realidade que o proselitismo desses desvairados traz problemas.

O post do Pedro me deixa com um problema nas mãos porque, como disse nos comentários ao post anterior, eu não discuto seriamente com esse pessoal. Não discuto porque é lhes dar uma legitimidade intelectual que eles não têm; não discuto porque, em seu proselitismo fanático, eles tentam impor ao mundo uma visão irreal e prejudicial. Não por ignorância, mas por obscurantismo. Há 400 anos, era esse pessoal que fazia Galileu voltar atrás e dizer que o sol girava em volta da terra, porque se o Homem era o centro da Criação era assim que as coisas tinham que ser. Sua postura atual contra o uso de preservativos é só a versão recauchutada — e, graças a Deus, menos poderosa.

Traduzindo: eu não discuto a sério porque não reconheço inteligência nos seus argumentos. Mais que isso, eu os acho absolutamente nocivos: misturam questões de saúde pública com uma noção específica e inalcançável do mundo que só diz respeito a eles.

Esse tipo de militante religioso é deletério por ser obtuso e por querer tornar sua obtusidade universal.

Embora reconheça ingenuidade no Bruno, ele basicamente repete os mesmos argumentos. Tem o cuidado de citar sua namorada, coitada, que não tem nada a ver com a história, talvez para evitar que eu o chame, também, de “donzelão” (mas me deixa com outras perguntas, também). O que é engraçado, porque se eu sou o “donzelão dos argumentos”, os deles são mais rodados que Maria Madalena; a vida é engraçada. A base deles é a seguinte: “a camisinha incita à promiscuidade”. A única diferença é que o Pedro estrutura sua argumentação de maneira formalmente mais sofisticada, inlusive usando a palavra-mãe de todas as argumentações, “ora”. Pedro, eu acho esses “oras” podres de chique.

Quanto à citação que o Pedro me acusa de fazer sem saber (Mater et Magister em vez de Mater et Magistra), na verdade não vem da encíclica papal, que nunca li (mas confesso ter tido uma queda impressionante por pornografia na adolescência, Pedro). Vem de uma escola com esse nome. Mas fiz uma busca rápida no Google, e as 12 páginas com resultados que citam a encíclica indiscriminadamente pelos dois nomes talvez ponham um pouco de dúvida na certeza cheia de fé do rapaz. Mas eu é que não vou brigar por esse detalhe, nem tampouco ler tudo isso só para provar que o Pedro fez uma correção errada. Se estou errado, tudo bem. Essa simples página do Vaticano, usando as duas expressões, talvez seja o suficiente para mostrar uma coisa: que eles têm uma tendência a encarar o seu jeito de ver as coisas como o único existente.

P.S.: Pedro, adorei os “sonhos erótico-profanadores”. Ui.

Mater et magister

O Bruno caiu aqui de pára-quedas e deixou um longo comentário a um post, que comento abaixo.

Infelizmente a mídia conseguiu fazer uma lavagem cerebral nas mentes obtusas de muitos desinformados (grande maioria da população) sobre o tema “Igreja Católica, aids e uso da camisinha”. Colocando a Igreja como uma instituição retrógrada e ignorante, ridiculariza-a por ser contrária ao uso dos preservativos. Os chamados meios de “informação” (neste assunto são desinformantes e deformantes), obscurecem os verdadeiros motivos da discordância da Igreja com relação ao uso do preservativo, buscando colocar a população contra a mesma. Iludindo os telespectadores, leitores, etc, dão a entender que a Igreja condena simplesmente o uso do preservativo e nada mais. Ora, por que não entrevistam uma autoridade da Igreja? Por que colocam em um horário de grande pico de audiência alguém capacitado para falar em nome da Igreja?.

Boa pergunta, Bruno. Não sei. Talvez porque, da última vez que colocaram, um padre italiano falou que reprodução assistida é coisa do demônio. Quem sabe?

Mas as pessoas não costumam falar da ignorância da Igreja Católica. Elas sabem que sua postura deriva de um compromisso doutrinário com uma determinada concepção de vida. Elas só chamam de retrógrada, mesmo.

As propagandas e o programa de combate a aids somente fomenta que devemos nos proteger das doenças, do risco de gravidez indesejada. Mas como ficaria os valores morais? Estes não fazem parte das propagandas. O que importa é “se divertir”, é “aproveitar o carnaval” é “curtir a vida” é “não importar de que lado esteja (anjo ou diabo)”, mas com a final frase “desde que use camisinha”. Ou seja, eu usando camisinha eu posso ter uma vida libertina, sexo sem compromisso, tratar as mulheres como objeto, adulterar, etc, pois eu estarei seguro, e é isto que me importa, e o resto que se dane. Quando se entrega o preservativo ou estimula o seu uso é como se dissesse:
_ Você é livre pra fazer o que quiser, use isto (camisinha) assim estará “garantido” a sua segurança.

Se eu usar camisinha eu posso ter tudo isso aí? Libertinagem, sexo sem compromisso, tratar mulheres como objeto? Você promete? Onde é que compra? Posso comprar mais de uma? Posso dar uns tapinhas na bunda, também?

Certa vez pude comprovar a influência que as campanhas têm sobre as pessoas. Logo após receber 2 preservativos da campanha, imediata e pretendidamente joguei-os fora. Vendo o que fiz, uma das pessoas da campanha, em tom ignorante, me perguntou porque fizera aquilo, que o preservativo não era para ser jogado fora, que se eu não quisesse usá-lo que desse a outra pessoa. Disse àquela pessoa que uma vez que os preservativos fossem meus poderia fazer deles o que quisesse, como não preciso deles, os joguei fora. Não dei a outras pessoas para que essas assim como eu não se sentissem pressionadas a usá-los e o que tinha feito somente foi um teste para comprovar o que eu já havia pensado. Recolhendo os preservativos, sem falar mais nada os deu a outro. A atitude dela é apenas o reflexo do que pensa a maioria das pessoas em relação ao uso dos preservativos. Uma vez que eu tenha a camisinha à mão eu tenho que utilizá-la.

Felizmente a Igreja Católica não faz mais com que seus prosélitos queimem hereges e blasfemos. Agora eles simplesmente jogam camisinhas fora. E o tom da moça não foi “ignorante”: foi de incompreensão diante da estupidez. No mínimo da falta de educação.

De qualquer forma, se a simples posse de uma camisinha lhe faz sentir pressionado a utilizá-la, eu fico pensando nas noites em claro que você tem passado em sessões de auto-flagelação, tentando tirar aqueles pensamentos impuros de sua cabeça, tentando domar aquele calor que sobe pelo seu corpo.

Pior: não é nem uma dominatrix que está fazendo essa sacanagem com você. Ui.

Há anos atrás eu lia numa revista adolescente, um rapaz de mais ou menos 16 anos relatando como foi a 1ª relação sexual que teve quando tinha 14 anos, “estava sozinho com minha namorada na casa dos pais dela, lembrei que tinha ganhado do MS 1 preservativo, perguntei a ela se estava afim de transar, ela topou e aí rolou”. Somente pela linguagem, com que este rapaz relata o assunto, já se denota a imaturidade e irresponsabilidade perante o modo com que trata coisas sérias, e pior, as expõe a terceiros. Se esta camisinha tivesse se rompida (o que não é raro), poderia ter havido mais uma criança de 14 anos grávida e talvez até como uma doença sexualmente transmissível. Se este ao invés de camisinha tivesse recebido instrução sobre valores humanos, não teria corrido este risco.

Bruno, senta aqui do meu lado. Está na hora de você aprender uns fatos sobre a vida, que o padre não pode te ensinar.

Em primeiro lugar, não é bem assim que as coisas funcionam, tá? Bem que queríamos: já imaginou você, do nada, dizer para a gostosa à sua frente “olha, tenho uma camisinha, vamos transar?” e ela aceitar? Deus, isso seria o paraíso. Mas não é assim que as coisas acontecem e o rapaz provavelmente omitiu uma porção de detalhes.

Como você é leigo no assunto eu vou explicar.

Normalmente, no caso de dois namorados, é preciso um longo processo para que se chegue a esse momento. Algum tempo de reconhecimento, sabe como é — bem, talvez não saiba.

Primeiro uma mão nos peitinhos, prontamente repelidos. Mas não desista, quem não arrisca não petisca. Continue tentando. À medida que a intimidade aumenta, e com ela a confiança, as coisas seguem seu curso naturalmente. Mãos. Bocas. São adolescentes, é tudo novo, é preciso um pouco mais de tempo, você entende. Até que, depois de dias planejando o que fazer — como aquele apaixonado por uma moça que mora no cu do judas e toda noite aparece na porta da casa dela, dizendo que “eu estava passando por perto…” — ele aparece com uma camisinha, isso depois de saber que a moça está subindo pelas paredes.

Não incluo aqui, claro, os casos fortuitos de sexo casual, libertinagem e etc. Esses só acontecem quando você tem muita sorte. E, claro, quando você tem uma camisinha no bolso, cujo poder demoníaco lhe força a fazer coisas indizíveis e absolutamente indecentes.

Finalmente, como é que o pobre rapaz, ainda virgem e na flor dos seus 14 anos, podia já ter uma doença venérea? Você realmente implicou com o sujeito.

Quando a Igreja exorta a seus fiéis a não usarem camisinha, o que Ela pede aos solteiros é que sejam castos, e deste modo não pratiquem a fornicação, aos casados, o adultério e aos homossexuais o homossexualismo. Do mesmo modo aos casados, Ela pede a castidade conjugal, que não use de maneira descontrolada o sexo com a finalidade somente do prazer, que não tente controlar a vida usando o preservativo como método antincepcional.

A essa altura eu tenho uma grande dúvida e várias hipóteses:

Hipótese 1: Você é casado e só dá no couro da patroa com fins exclusivamente reprodutivos.
Hipótese 1.1: Você teve umas três relações sexuais em toda a vida, porque leite, escola e planos de saúde estão pela hora da morte, e isso é broxante;
Hipótese 1.1.1: Você agradeceu a Deus por ela não ter engravidado em uma dessas e você teve a chance de dar mais uma, que não estava no roteiro, e depois teve que se penitenciar por ter se alegrado com algo tão torpe.
Hipótese 1.2: Você está cheio de filhos e eu quero ser seu amigo, porque você é rico e eu, como disse ao Brigatti, já estou de saco cheio de só ter amigo pobre.

Hipótese 2: Você é solteiro.
Hipótese 2.1: Você é donzelão e vive às custas de muita oração e banho gelado.
Hipótese 2.2: Você é um punheteiro.
Hipótese 2.2.1: Isso aí também não é pecado?

Finalmente, por uma convenção da gramática portuguesa, os pronomes relativos a Deus usam maiúsculas. Os da Igreja, não. Mas parece que para muita gente há uma confusão grande entre Deus e Igreja.

O erro (pecado), não estará no uso do preservativo, mas no motivo porque se usa. Ou seja, se uma pessoa solteira pratica sexo com outra solteira, independente de estar usando ou não camisinha o pecado foi a fornicação. Ou se uma casada tem relacionamento extra conjugal, seja o sexo feito com camisinha ou não o pecado foi o adultério. Quando alguém não tendo domínio de si adultera ou fornica, torna-se necessário o uso do preservativo, não como um método 100% seguro (pois não é), mas com a intenção de evitar um mal maior, como uma doença sexualmente transmissível, e uma gravidez seguida de aborto (observe como um erro conduz a outros).

Vou te dizer uma coisa, Bruno, e não me leve a mal por isso, porque eu só quero o seu bem. Depois de ver as conseqüências terríveis que você inconscientemente associa ao sexo (doenças venéreas, aids, abortos, danação eterna no segundo círculo do inferno), e ver o tanto de culpa que você carrega, eu juro que se fosse mulher ia querer distância de você. Para evitar ser obrigada a lhe colocar um par de chifres na testa. Sabe como é. Eu ia ter necessidades, você entende.

Uma mulher (ou homem) que suspeite que seu (a) cônjuge a (o) esteja traindo tem não só o direito de usar preservativo desde que seja por motivos de preservação da saúde. Como ação primária deve abster-se do sexo e pedir exames que comprovem que seu (a) cônjuge esteja livre de doenças. A Igreja jamais fará campanha a favor da camisinha, pois vão distorcer, e falar que Ela liberou o sexo livre.

E aí, faz o quê? Pede o divórcio?

Ah, desculpe. Esqueci. A Madre Educadora não permite o divórcio.

RESUMINDO:
A Igreja Católica como Mãe e Educadora apresenta o melhor e mais barato programa de combate a todas as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez fora do matrimonio. Este programa é baseado não na distribuição irresponsável de preservativos, mas na educação, valorização da população. Mas a mídia como se fosse o pior vírus, destorce, prestando um grande serviço de desinformação. Culpando a Igreja pela disseminação da aids, ela (mídia) apresenta um programa caro e fracassado. Quem ouve a igreja não adultera, fornica e pratica o homossexualismo, portanto não precisa usar preservativo. Os que não ouvem, pouco vão se importar com o que a Igreja pensa sobre a camisinha. Dizer que a Igreja terá que pedir perdão às vítimas da aids é uma grande hipocrisia.

Certo.

Agora, olha, fala baixo. Porque se você falar muito alto o padre Joseph Smith, daquela paróquia em Boston, vai te ouvir. E aí vai se atrapalhar no boquete que está pagando naquele menininho.

Mas finalmente concordo com você: a Igreja não tem que pedir perdão aos portadores de HIV. Eles deram ouvidos às besteiras que ela disse porque quiseram.

E já que concordamos em uma coisa, e podemos nos considerar amigos, queria te pedir um favor: você conhece alguma freira gostosinha? Me apresenta? Tenho até vergonha de confessar, mas fico imaginando como deve ser, ahn…, educativo bater com um crucifixo na bunda de uma freira, hábito levantado, enquanto… Ah, esquece.

Que tem que pedir o perdão são os que incentivam o “sexo livre” o “aproveitar o carnaval” o “faça sexo seguro” “etc, etc, etc”. A camisinha tem um índice de mais ou menos 83 a 93% de segurança, a castidade que a igreja pede a seus fieis tem 99,9999% (porque nada é 100%) de segurança. Termino com a frase de um padre católico: “A CAMISINHA PREVINE A AIDS, A CASTIDADE E A FIDELIDADE ACABAM COM A AIDS”.

Um dia vão te mostrar as pesquisas que mostram que aqueles que dizem se comprometer a praticar a abstinência têm os mesmos índices de gravidez e doenças venéreas que as pessoas, digamos e sem ofensa, normais. Mas aí você vai dizer que elas não ouviram a voz da Mãe e Educadora.

Em vez disso, ouviram os gemidos, as juras de amor, sentiram o cheiro do suor.

Pobres coitados. Se perderam diante das portas do paraíso. Rezemos por suas almas.

Cine Tamoio

Semana passada este blog recebeu um comentário de um estudante da Unibahia, fazendo uma pergunta sobre o cine Tamoio. Curiosamente, eu soube que o Tamoio tinha fechado (para se transformar — adivinha? — em uma igreja evangélica) por outro comentário, deixado aqui em fevereiro ou março.

Olá Rafael!
Apesar de você discorrer sobre o filme “Em algum lugar do passado”, não é este o motivo que me traz aqui. Sou estudante de jornalismo da Unibahia e estou fazendo um trabalho sobre o fechamento do cine Tamoio, como você cita sua visita a este cenema gostaria de contar com sua ajuda para desenvolver o trabalho. Você se importa em me relatar suas experiência no cine Tamoio e como você se sente por ele ter virado uma igreja evangélica?
Caso seja possível envie um e-mail para xxx@xxx
Obrigada pela atenção,
Cássia Carneiro.

Cássia,

Faz muito tempo desde a última vez que entrei no Tamoio. Foi em 1993, acho, para assistir a “Corpo de Evidência”, filme ruim com a Madonna e o Willem Dafoe. Na verdade, a época em que mais fui àquele cinema foi no começo dos anos 80.

Em primeiro lugar, o Tamoio é só mais um. Todos os cinemas do centro de Salvador fecharam as portas ou, com “sorte”, se transformaram em exibidores de filmes pornográficos, adiando um pouco o primeiro fim, que é inevitável. Um ou outro, esses foram os destinos do Excelsior, do Jandaia, do Pax, do Bristol, Liceu, Astor, Tupi, do Popular. Duvido que a maioria dos soteropolitanos na casa dos 20 anos sequer lembre de todos esses cinemas.

O problema é que não há saída para os cinemas de centro. Seu fechamento progressivo é o resultado de um processo de modernização das cidades, de migração da classe média consumidora para os shopping centers. Não dá para evitar. É até uma prova do valor desses cinemas, como elemento cultural urbano, que tenham sobrevivido tanto tempo mesmo décadas depois de todas as lojas chiques terem ido embora da rua Chile. O Tamoio sobreviveu à Sloper por muito tempo.

Para que esses cinemas sobrevivam é preciso fazer o que o Unibanco fez com o Glauber Rocha aí em Salvador. Mas mesmo esse não é exatamente um “cinema de centro”; está mais para um “míni-shopping cultural” no centro da cidade, com várias salas de exibição. Um exemplo melhor seria o que a Petrobras fez com o Odeon, no Rio. Em qualquer desses casos, é um investimento que tem pouco a ver com o mercado.

Há um outro lado, também. Eu acho meio irônico que, sempre que um cinema feche as portas (e quando é para virar igreja evangélica a grita parece ser maior, talvez porque a classe média católica se assuste com o crescimento das igrejas pentecostais entre os pobres), as pessoas reclamem, chorem suas saudades dos velhos tempos. Elas só não se fazem uma pergunta simples: há quanto tempo elas não iam para aqueles cinemas, preferindo o conforto e a maior adequação social dos cinemas de shopping? As pessoas parecem esperar que cinemas funcionem sozinhos, apenas para manter uma paisagem urbana familiar, talvez a sensação de que as coisas continuam como eram. Mas isso é impossível.

De certo modo há uma grande hipocrisia em tudo isso, como é típico da classe média.

De qualquer forma, eu acho melhor que um cinema desativado vire igreja do que estacionamento ou loja. Pelo menos eles continuam, de uma maneira meio torta, fazendo o que sempre fizeram: criando sonhos.

Um abraço, e espero que tenha ajudado,
Rafael

Infância

Em 1977 eu cheguei à alfabetização — naquela época, nos breus da ditadura, chamava-se ainda pré-primário –, já sabendo ler e escrever. Minha mãe tinha me ensinado uns dois anos antes. E eu escrevia normalmente, em letra cursiva.

É uma das primeiras lembranças, se não a primeira, que tenho da escola: a professora tentando me fazer escrever em letra de forma porque era assim que as outras crianças estavam aprendendo, me fazendo regredir a um ponto pelo qual, aliás, eu nunca tinha passado.

Depois as pessoas não entendem por que nunca gostei da escola.

Seara Vermelha

O Grilo vê “Seara Vermelha” de uma forma exatamente contrária à minha. Acha que o problema é o realismo socialista em si (“O problema maior é que JA escreve de modo a tentar convencer o leitor que a solução é o comunismo”).

Em termos literários, o realismo socialista nunca foi um problema. Não há nada de errado — a não ser que você jogue em cima de uma obra literária todos os seus conceitos ideológicos — em escrever um final de livro dentro desses parâmetros, como não havia no naturalismo. É só uma escola a mais, não é melhor ou pior que o realismo fantástico, ou que Chaplin e Paulette Godard terminando “Tempos Modernos” seguindo estrada afora. O realismo socialista só se transformaria em problema com o zhdanovismo.

Se esse fosse o problema de Jorge Amado, então praticamente toda a sua primeira fase seria ruim. Ele tentou convencer a todos que o comunismo era a redenção em vários outros livros, com bons resultados artísticos. Pedro Bala, líder dos Capitães da Areia, se torna líder sindicalista (mas Jorge Amado não deixa que o futuro do proletariado atrapalhe uma das mortes mais belas da literatura mundial, a de Sem Pernas). Linda, personagem de “Suor”, vira militante de distribuir panfleto na rua e levar porrada da polícia. Os exemplos são muitos.

Em todos esses casos, são transformações — ou evoluções — lógicas, conseqüentes, aceitáveis dentro de um ambiente urbano, e onde saiu praticamente todo o movimento comunista brasileiro.

Mas os problemas do sertão nordestino nunca tiveram muito a ver com o comunismo, e o próprio fato de o Ismael notar que há algum problema naquele final é um indício de que há, sim, quebra narrativa ali. Ainda que historicamente não seja exatamente um absurdo (não foram poucos os sertanejos que se tornaram militantes comunistas ao migrar para as cidades, e o personagem é uma fotografia de José Praxedes, líder da Revolução de 1935 em Natal), o resultado é mais ou menos como contar a história de uma favela a partir de um ganhador da loteria. Para utilizar uma linguagem marxista, as contradições sociais da região se manifestavam de várias formas — mas a militância comunista certamente era a menor delas. Mesmo um velho comunista como eu não consegue sentir verdade nessa situação.

Um dos defeitos desse final vem do fato de enxertar um ambiente urbano em um livro que se passou inteiro no interior do país. Até aquele momento, cada segmento se relaciona harmoniosamente com o outro, estão todos dentro de um mesmo mecanismo social; o panorama revolucionário traçado em Natal não tem absolutamente nada a ver com o resto do livro.

O outro problema é o final revolucionário, quase um corpo estranho dentro do que seria um dos mais completos painéis da realidade sertaneja. É aquele painel, e não a saga da família retirante ou a de cada irmão, que faz de “Seara Vermelha” um grande livro, ao mostrar um sertão dividido entre as principais forças existentes na época: a natureza pouco dócil, o messianismo religioso, o cangaço, um Estado ineficiente e repressor. E Jorge Amado avança pelo livro sem cair naquela armadilha que fez com tanta gente considerasse um exemplo acabado do atraso como Canudos um marco imaculado de resistência, e bandidos como Lampião heróis populares.

Se terminasse o livro ali, “Seara Vermelha” seria a “Ilusões Perdidas” da literatura brasileira.

Mas com a história do último filho o livro se apequena, recua diante da grandeza do painel que traçava e o transforma em mero pretexto para sua profissão de fé. É isso que possibilita a leitura reducionista que o Grilo faz; e é isso que faz de “Seara Vermelha” uma promessa não cumprida.

BloomBlogsDay

Dia 16 de junho, nos meios literários, é o Bloomsday.

É o dia em que transcorre toda a ação de “Ulisses”, provavelmente o livro mais fascinante do século XX.

O Leandro Oliveira, do Odisséia Literária, teve uma grande idéia: resolveu transferir a tradição para o mundo dos blogs e comemorar o Bloom-Blogsday.

Dia 16 ele vai postar trechos e comentários de “Ulisses” no blog. Você pode participar enviando o que quiser sobre o livro: trechos, links, comentários. Ou simplesmente comentando no blog dia 16.

É uma bela idéia e vale a pena participar. Ou simplesmente ler.

Gosto literário se discute

Qual o livro que você mais relê?
“Como Era Verde Meu Vale”, livro de início de adolescência. Minha primeira cópia, comprada em 1984 por acaso, está quase se desfazendo pelo uso de 20 anos, primeiro relendo, depois voltando a ele apenas para aquelas cenas de que gosto. Há alguns anos comprei uma versão inglesa, porque o melhor do livro são a linguagem e o ritmo e no original é ainda melhor (Is he dead? For if he is, then I am dead, and we are dead, and all of sense a mockery), que tem uma história curiosa.

E que livro relido ficou melhor?
“O Caso Morel”, Rubem Fonseca. Continuo achando Fonseca um romancista muito inferior ao contista, mas reler esse livro me fez mudar a opinião original de que ele era ruim.

Dê exemplo de livros injustiçados que, apesar de muito bons, nunca foram devidamente louvados.
Não é que nunca tenha sido apropriadamente elogiado: a injustiça contra ele é posterior, é a mudança radical de opinião da crítica, o desprezo de que sua obra foi vítima. O livro é “1919”, de John dos Passos. Seu método narrativo era inovador, mas agora — e já há algum tempo — o julgam cansativo, datado, o diabo. No entanto ele continua atual num mundo disperso, cada vez mais fragmentado. A maneira como Dos Passos estrutura o livro é quase uma antevisão do mundo da internet e de multi-tarefa.

Cite um livro decepcionante, que frustrou suas melhores expectativas.
Tantos, tantos… Para escolher um, que seja “Dublinenses”, de James Joyce.

E um livro surpreendente, isto é, bom e pelo qual você não dava nada?
“O Lobo da Estepe”, de Hesse. Eu esperava algo tipo “Demian”. É outra coisa, embora com boa vontade Harry Haller possa ser intepretado como um Emil Sinclair mais velho, mais cansado e menos chato.

Há cenas marcantes na boa literatura. Cite duas de sua antologia pessoal.
Uma é o assassinato das velhas por Raskhólnikov em “Crime e Castigo”. Foi a minha preferida por muito tempo, e nenhum romance policial jamais conseguiu chegar perto dela. A morte do pai Goriot no livro homônimo de Balzac. E Rastignac acabando de enterrar o pai Goriot no Pére Lachaise, voltando-se para encarar Paris e desafiando-a: “A nous deux maintenant!”

Há personagens tão fortes na literatura que ganham vida própria. Cite os que tiveram esta força na sua imaginação de leitor.
Lucien Chardon. Lucien de Rubempré (é, eu sei, não precisa me lembrar). Julien Sorel. Humbert Humbert sofrendo pela labareda em sua carne. E Phllip Marlowe e Lew Archer.

Qual o livro bom que lhe fez mal, de tão perturbador?
Nenhum livro me fez mal. São só livros. Minha conta no psiquiatra ainda é baixa.

E qual o que lhe deu mais prazer e alegria?
“Minha Vida, Meus Amores”, Frank Harris. Sem comentários. E não que se comparasse às Mini Fiestas, claro.

E o que mais lhe fez pensar?
Provavelmente os dois primeiros volumes de “A Experiência Burguesa – Da Rainha Vitória a Freud”, de Peter Gay, e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.

Cite…
a) um livro meio chato, mas bom

“Infância”, de Tolstói.

b) um livro que você acha que deve ser muito bom mas que jamais leu
“Os Buddenbrook”, Thomas Mann.

c) um livro que não é um grande livro, apenas simpático
Quase todos os livros que tenho se encaixam nessa categoria.

d) um livro difícil, mas indispensável
“Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust.

e) um livro que começa muito bem e se perde
Que lembre agora, “Estorvo”, de Chico Buarque. E poderia citar também “Enderby por Dentro”, de Anthony Burgess.

f) um livro que começa mal e se encontra
Não consigo lembrar, embora deva conhecer alguns. Normalmente, se um livro se encontra, acaba absolvendo um eventual início fraco, provavelmente necessário para o desenrolar da história, e então deixa de ser ruim. Mas se demora a se encontrar ele me perde.

g) um livro que valha apenas por uma cena ou por um personagem, ainda que secundário
“O Morro dos Ventos Uivantes”, por Heathcliff.

Qual o início de livro mais arrebatador para você?
It was the best of times, it was the worst of times“.

De que livro você mudaria o final? Como?
“Seara Vermelha”. O livro é brilhante, o melhor da tal “literatura da seca”. É uma obra-prima. Mas por causa das imposições do realismo socialista Jorge Amado precisa fazer a apologia da revolução e de José Praxedes, e inclui um final desnecessário sobre a revolução de 1935 em Natal, quebrando a unidade narrativa do livro e fazendo do que poderia ser uma das grandes obras do modernismo brasileiro quase um panfleto. Eu simplesmente retiraria essa parte.

Que livros ficariam muitos melhores se um pedaço fosse suprimido?
Qualquer livro com mais de 150 páginas poderia perder um ou outro pedaço.

Que livros que não têm nada a ver com você, até contrariam algumas de suas convicções e que ainda assim você considera bons ou recomendáveis?
Os livros de Evelyn Waugh.

A literatura contemporânea é muito criticada. Cite livro(s), escrito(s) nos últimos dez anos, aqui ou no mundo, que mereça(m) a honraria de clássico(s) ou obra-prima(s).
Não posso. Sou um dos que criticam a literatura contemporânea. De modo geral, em que pesem excelentes livros publicados aqui e ali, vejo aqueles que fazem a literatura contemporânea como combatentes de uma revolução já vencida (ou perdida); não vejo respostas novas a problemas que foram abordados, por exemplo, durante o modernismo; e não tenho essa cultura do novo, de me sentir obrigado a estar atualizado em literatura. Há muito tempo decidi que há livros muito importantes que não li, em mais de 2000 anos de história, para que eu perca tempo. Vou morrer e não vou ler tudo o que devia. Mas pelo menos eu vou tentar. Exceção aberta para uma ou outra eventualidade e para a literatura policial, claro. Hard boiled, de preferência.

Por falar em clássicos. Para que clássico brasileiro de qualquer época você escreveria um prefácio daqueles que incitam a leitura?
Longe de ser o melhor, mas “Brás, Bexiga e Barra Funda” me faria escrever algo decente, talvez.

Cite um vício literário que considere abominável.
A necessidade hemingwayana. De objetividade. Acima de tudo.

E qual a virtude que mais preza na boa literatura?
Partindo-se do princípio de que boa literatura contém necessariamente verdade, seria um bom ouvido.

De que livro você mais tirou lições para seu ofício?
Ogilvy on Advertising, David Ogilvy.

E que frase ou verso que escolheria como epígrafe desta entrevista?
“Nada nos salvará”, Isaac Bashevis Singer.

(Copiado do Milton e do Alex.)

Se eu atendesse a conta da revista Cláudia

Comercial da revista Cláudia na rua. Eu faria uma versão levemente diferente.

***

Cliente: Ed. Abril
Campanha: Revista Cláudia
Peça: Filme
Tempo: 30″
Título: “Versão Rafaeliana”

A câmera abre numa cozinha moderna, bonita, iluminada. Em BG, música instrumental.

Uma mulher jovem está preparando o jantar e pica alguns legumes.

Pega um vidro de palmito e abre, normalmente. Imediatamente fecha o vidro novamente.

Corta para o marido na sala, com um laptop no colo. Ela se aproxima e, de maneira bem feminina, oferece o vidro para que ele abra. Sorrindo, ele abre o vidro.

OFF: Você já finge orgasmos. Finja que não consegue abrir um vidro de palmitos.

Corta para packshot da revista.

LET.: Cláudia. A revista da mulher moderna.

OFF: Cláudia. A revista da mulher (ui!) moderna.