Palavras são como pessoas. Algumas têm origem nobre e acabam na lama; outras, vindas do nada, conquistam sua ascensão lentamente, pela persistência e pela determinação.
Como acontece às pessoas, é tão fácil esquecer suas origens. É fácil, por exemplo, esquecer que esculhambação, palavra se não nobre com livre trânsito no Country, é aquilo que sai dos colhões. Das alcovas, de contratos escusos feitos em casas de má fama, a palavra conseguiu limpar sua origem e adentrou os salões graças ao seu talento pessoal, à sua sonoridade, ao seu aplomb.
Enquanto isso sua irmã, coitada, desenxabida e sem tantas graças, continua desprezada. A porra continua aí, pelos cantos. Mas se não tem brilho tem vontade férrea, velha maquiavélica e calculista que veste minissaia e continua a beijar a boca dos meninos ansiosos por se tornarem homens. A porra sabe que seu dia chegará, e então poderá beijar livremente, e mesmo recusar pretendentes com coquetismo e brejeirice de menina.
É com essa porra que a porrada tenta negar qualquer parentesco, explicando sempre que sua origem está em uma velha clava com ponta redonda e reforço de ferro; e assim a porrada tenta mistificar a todos, tenta se dar uma origem nobre que não tem porque sua família vem do mesmo degredado que engendrou a porra, o alho-porro. Mulata de gingado macio e navalha escondida nas dobras do vestido, a porrada bem que preferia poder dizer que de alguma forma é gêmea da esculhambação, com quem sente ter muitas afinidades, mas sabe que suas mães são diferentes.
Algumas palavras levam a vida imutável do interior, debruçadas na janela, vendo a vida passar com a tranqüilidade de quem se sabe permanente. Xibiu (ou xibio, na versão que começa a ser dicionarizada) é provavelmente uma palavra índia, dos tempos heróicos dos bandeirantes, e ainda hoje dá nome às mesmas duas coisas: um diamante pequeno e “a vulva”, como sempre dizem os dicionários; vulva, para quem não sabe, é o pseudônimo da boceta. Tão belo substantivo, amado ainda nas ladeiras da cidade da Bahia, ciosa de suas origens e de sua cultura — substantivo que no fundo continua a significar a mesma coisa, porque um e outra têm o mesmo valor para alguns.
Sorte diversa teve o viado perdido em lembranças de tempos de respeitabilidade, em que era apenas um tecido de lã riscado. Ainda hoje tenta salvar o que acha ser a tradição honrada de sua história dos amantes que conquistaram o direito de ousar dizer seu nome. O viado pertence a outros tempos, tempos de uma elegância e hipocrisia que a vida moderna destruiu, e ainda não percebeu que eles só continuam a existir em sua memória.
Ou aquele caralho — caralhete, se pequeno, tímido e envergonhado diante do xibiu glorioso lavando roupa nas águas escuras da Lagoa do Abaeté — nascido como estaca, palavra de bem, que se majestade não tinha podia ostentar a honra do trabalho duro, e que agora se esconde em cuecas sob as calças, reticente em se mostrar como velha senhora de beleza esvaecida, escondida em seu quarto escuro para que ninguém veja a ruína corrugada em que o tempo a transformou.
A vida das palavras traz histórias tristes como a da puta e sua trajetória de decadência e humilhação. Em terras d’El Rei era apenas uma menina de venerável família romana, mas ao transpor o Equador em busca de vida nova seguiu caminhos tortuosos de degradação. Hoje a puta está lá, nas praças, nos bordéis, seu rosto antes infantil agora maculado pela maquiagem excessiva; ela já não se lembra de tempos diferentes e doces em que era inocente e pueril.
Palavras são como pessoas, e dicionaristas são meros recenseadores de estreitos horizontes; para contar a sua história é preciso um Balzac que invente todo um mundo em que se conte a saga de cada uma delas e sua convivência umas com as outras. Palavras, como pessoas, só existem dentro de sua sociedade, com suas grandezas e suas mesquinharias. Um dia alguém ainda vai escrever a Comédia Humana das palavras, a história de sua ascensão e de sua queda.
Originalmente publicado em 23 de abril de 2004.
“ostentar a honra do trabalho duro”, metáfora brilhante!
Um dia alguém ainda vai escrever a Comédia Humana das palavras… não teria sido esse dia 23/4/2004?
Já que você falou de palavras, eu só tenho uma a dizer, a respeito do texto: FODA!
A própria boceta tem uma outra origem. Queria dizer um pequeno frasco em forma alongada que lembra mesmo…uma boceta. Em italiano bocceta ainda se refere a um pequeno frasco de tinta com a mesma forma. Tenho um tio que assim que chegou no Brasil foi trabalhar em um banco e causou um certo escandalo quando, isso era decada de 30, pediu à sua colega que lhe fornecesse a bocceta. Ele se referia à tinta mas levou certo tempo a entender e depois se explicar.
Brilhante, é a palavra!!!
Beijos,Rafa!
Somos seres atravessados pela palavra e são elas que constroem nosso inconsciente. Não sou eu que digo, apenas repito Lacan. Melhor o Drummond: “Lutar com palavras é luta mais vã, entanto lutamos mal rompe a manhã”.
Muito bom!!!!!!!!
Agora sei pq o Bia viaja tanto…..pra não dar pinta aqui em Americana….peço sua ajuda para contar a verdade para o padawan, ele vai ficar arrasado…..ou talvez não…….
Gostei, Rafael, ótimo.
Mas meus preferidos ainda são: Jack e aquele sobre o filme romântico (esqueciiiii o nome).
bjo