Como foi gostoso o meu cinema

Nos anos 70, enquanto o Brasil perdia tempo discutindo Neville d’Almeida e os crimes que ele cometia contra a obra de Nélson Rodrigues, as pornochanchadas eram o que se produzia de mais verdadeiro neste país.

Hoje, olhando em retrospecto, é fácil ver isso, como talvez não fosse na época. Uma parte dos órfãos do cinema novo continuava com aquela visão polianística de “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”, tradução tupi para cinema autoral de pobre, que combinada com a Embrafilme resultou na quase destruição do cinema brasileiro.

A parte “respeitável” do kinemanacional era composta de intelectuais, como ainda é, como sempre será. Mas se os de hoje têm mais senso prático, aqueles ainda viviam imersos da idéia de utopia, fosse ela qual fosse — da revolução popular, da revolução estética, de qualquer revolução. A face mais visível era aquela idiotice de “seja marginal, seja herói”, proferida por desbundados que, enquanto mamavam nas tetas fartas da Embrafilme, tentavam passar uma visão esquisitamente romântica e completamente equivocada da situação nacional, misturando Marx, Freud e o bebum da esquina num samba do crioulo doido que fazia os poucos valentes saírem do cinema ou do cineclube dizendo que o filme era uma merda, mas o diretor era genial.

Enquanto isso as produções populares como as pornochanchadas, que levavam muito mais gente aos cinemas, eram olhadas de cima, com desprezo.

Já tinham feito isso antes. Deram um nome derrogatório às chanchadas da Atlântida e similares, provavelmente o cinema mais genuinamente nacional — e de melhor qualidade média — que já foi feito. A idéia é sempre a mesma: pseudo-intelectuais com uma visão colonizada ou, no mínimo, extremamente elitista do cinema, dizendo que não, que aquilo de que o povo gosta não pode prestar. Que bons são aqueles filmes chatos do Godard, que a frieza alemã é boa e o calor brasileiro é ruim.

O nome dado às pornochanchadas dos anos 70 é extremamente enganador. Não há nada de realmente pornô neles, embora tenham sido a matriz para o cinema pornô brasileiro. São eróticos, sim, embora às vezes de um erotismo quase inocente e com aquele sorriso malandro no canto da boca, mas não pornográficos. São essencialmente cariocas, de um tempo em que o Rio tinha o que dizer, além de ser o melhor lugar do país para se viver.

Assim como Carlos Mossy, talvez o principal rosto dessa época — e muito mais importante do que parecia — sumiu no mundo sem avisar, a pornochanchada desapareceu ao longo dos anos 80. Deixou um trauma tão grande no cinema nacional que durante muito tempo um filme que realmente se respeitasse não podia conter uma cena sequer de nudez — embora eu suspeite desde sempre que esse pudor se deve muito mais ao efeito causado pelos filmes “intelectuais” e sua visão desvairada do sexo como o resultado de uma série de neuroses e sociopatias do que às pornochanchadas.

Muita gente já deve ter percebido o mesmo que eu: se alguém pegasse muitos daqueles roteiros, desse uma recauchutada nos diálogos — sempre a parte mais fraca do cinema nacional — e regravasse tudo com as melhores condições de fotografia, iluminação e som que se tem hoje, teriam nas mãos excelentes comédias, despretensiosas mas profundamente brasileiras.

Mas aí eu tenho que admitir: não demorararia muito até que alguém levantasse a voz e falasse dessas comédias como idiotas, alienantes, e que o cinema basileiro precisa de consistência. A história, dizem, só se repete como farsa.

(O Ina tem uma série de posts sobre o cinema brasileiro. Vale a pena ler.)

(O Canal Brasil, de madrugada, exibe muitos desses filmes, na sessão “Como Era Gostoso o Meu Cinema”. Vale a pena ver.)

(Os cartazes que ilustram esse post são, todos, daquele que talvez seja o maior ilustrador que o Brasil já teve, Benício.)

8 thoughts on “Como foi gostoso o meu cinema

  1. Rafa, o cinema nacional da época, quer seja rotulado de pornográfico ou erótico (mto bem colocado por vc aí) foi ,talvez, uma forma diferente de falar, qdo se tinha mordaças e censura coibindo toda e qq manifestação de arte. Se havia público, e o povo gostava, q mal há nisso? N o vejo como ‘identitário’ do nosso cinema. Acho q foi uma fase, e como toda fase, deixa marcas.

    O q me intriga é o fato do ‘renascimento’do cinema no pós Collor. Foi necessário acabar c a Embrafilme pra q melhorasse, e mto, as produções? Ultimamente, filmes como ‘Narradores de Javé’, ‘Amarelo Manga’, ‘Lavoura Arcaica’, ‘Abril Despedaçado’, ‘Central do Brasil’ e documentários como ‘Janela da Alma’- q lembro agora – têm mto de cinema de primeiríssima.

    Vc falou de uma coisa interessante: os diálogos. Hj temos um texto (verbal, digo) mto bom. ‘A dona da história’, por exemplo, tem diálogos mto bem construídos. Acho q foi o q mais me chamou a atenção neste filme.

    O Canal Brasil é excelente. Vi por um tempo, apesar da minha preferência, sempre, pela telona.

    Pronto. Opinião de quem gosta de um cineminha e do filme qdo se vê seduzida, transportada, e levada a sonhar.

    Te beijo,

  2. Recentemente escrevi no Nós Por Nós que eu me dou o direito de não gostar de uma série de coisas que todo mundo (mídia) gosta e eu não. Mencionei filmes iranianos, Cidadão Kane, Pasolini e Fellini. Acho tudo de uma chatice só. Quanto às pornochanchadas, confesso que nunca gostei, mas não por pedantismo. Já as chanchadas dos anos 50/60, eu MORRO DE PAIXÃO. O cinema americano é o que é porque ele feito para o povo e não para meia dúzia de intelectuais. Beijocas

  3. A produção feita com paixão hoje não trará os dividendos de amanhã. Esse conceito é seguido à risca, infelizmente. Deveríamos começar do zero; não buscar desesperadamente uma identidade, mas simplesmente re-adiquirir o gosto por essa arte; algo difícil, dado o fato
    de nosso cinema estar em mãos erradas.

  4. Escrevi há um tempo um post sobre o cinema caipira, estilo Mazzaroppi, que também teve grande aceitação pelo público.

    A falta de identidade entre os cineastas e a população brasileira é um dos grandes problemas da produção nacional pós-embrafilme. Mas não é o único: poucas salas, concorrência do produto estrangeiro, distribuição indigente.

    Eu acho que a indústria do cinema é um dos pontos mais quentes na discussão entre Estado e mercado. E um daqueles onde francamente acho difícil ficar do lado do Estado, porque esse lado se traduz facilmente em tentativas de dirigismo cultural.

    Eu sou fã do Cine Brasil. Os filmes cariocas dos anos 70 principalmente, com sua profusão de externas mostrando um Rio que não existe mais, me deixam em estado de catatonia nostálgica.

  5. Que discussão maravilhosa!!!

    O maior árbitro da qualidade de um filme nem sempre é o mercado, Yvonne, apesar de concordar em parte contigo.

    Acho que além de arte, prazer estético, meio de difusão de conceitos e idéias e agente cultural o cinema é tb diversão. Neste sentido estão as maravilhosas (algumas, claro!) pornochancadas brasileiras.

    Quanto à intelectualidade, bem, esta é um caso sério. É uma pena que o pedantismo geralmente a acompanhe e a deforme, afinal, “aquele que julga tudo saber perde a chance de ter uma das experiências mais fabulosas da vida que é aprender”. (tá é meio clichê, mas funciona!).

    De qualquer forma nunca precisamos tanto de cultura e arte quanto hoje. Nunca precisamos tanto de “verdadeiros” intelectuais que pensem e repensem nosso realidade e critiquem, proponham mudanças que visem a melhoria de nosso decadente “status quo”.

    A qualidade técnica dos filmes brasileiros melhorou devido a um fator simples: grana. Cinema é, sempre foi e continuará sendo um empreendimento cultural e entretenimento caro. A parceria pivada em certa parte talvez tenha contribuído para esta melhora.

    Quanto aos diálogos, infelizmente a tal “câmera na mão e idéia na cabeça” matou a alma de qualquer filme que é o roteiro. Sem roteiro bom e consistente, não existem boas falas e nem bons filmes. A qualidade do roteiro dos cinema nacional atual tem melhorado gradativamente. Em parte graças à rápida linguagem dos comerciais e videoclipes herdada pelos roteiristas em parte pela conscientização de que sem um bom roteiro não há bom filme.

    É isso.
    Abraço.

  6. Grande Rafael!

    maravilhosa e bem realista essa sua crônica celuloidicamente saudosista.
    Sumi, bem verdade, mas quem sabe, estarei novamente na telona, dirigindo e atuando para o desespero dos insistentes “herméticos”
    Abçs
    carlo Mossy

  7. Caro Rafael, você saberia me dizer como posso adquirir o dvd do filme as Granfinas e o camelô, com Carlo Mossy?
    Desde já, muito obrigado.

  8. Rafael sou fã do CArLO Mossy e gostaria de saber como conseguir os filmes dele em DVD, SE É QUE JÁ SAIU. Principalmente o GISELLE.

    Grato;

    Marcelo Lucas

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