Quando Rubem Fonseca matou Mandrake

Certo, admito: sou pior que mulher de malandro. Eu apanho e volto, rabo entre as pernas, choro falso e já com vergonha dos vizinhos, esperando uma paz conjugal que nunca vai chegar. Eu sou pior que viciado.

É a única explicação que posso dar por ter comprado “Mandrake: A Bíblia e a Bengala”, de Rubem Fonseca.

O novo livro de um dos maiores escritores brasileiros vivos é um romance, ou quase isso. Só esse fato já devia me deixar com a pulga atrás da orelha. O seu gênio é o do contista, e nisso não há escritor melhor; mesmo hoje, quando sua verve parece ter diminuído irreversivelmente, ele ainda é capaz de lampejos de energia. Mas como romancista o máximo que se pode dizer de Fonseca, em qualquer época, é que ele é eficiente. Só isso, eficiente como um escritor noir razoável em seu décimo livro com o mesmo personagem. Descontando-se o estilo, tão diferente, há algo nos seus romances que os faz ter pontos em comum com os de Graham Greene: ambos escreveram livros leves com alguns toques mais profundos de alguma coisa. A diferença é que, enquanto Greene voou muito alto, Rubem Fonseca sempre esteve um degrau acima do mero romancista policial — mas sempre a uma grande distância de outros romancistas mais profundos e mais ambiciosos.

Mas isso vale para seus bons romances, “O Caso Morel”, “A Grande Arte” e “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”. Suas últimas obras de maior fôlego são, todas, ruins de doer. “O Selvagem da Ópera” é um fracasso sob qualquer ângulo que se tente imaginar, uma investida em um campo, o romance histórico, que Fonseca não dominava e não podia dominar; “E Do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto” é uma tentativa de paródia que, no entanto, não tem humor nenhum, ou se tem é um humor meio forçado e esnobe, um esnobismo que lhe tira toda a graça; “O Doente Moliére” é absolutamente medíocre, um conto que já nasceu aleijado, cresceu demais e morreu novela na sarjeta e pode apenas envergonhar seu autor; e “Diário de um Fescenino” é apenas mais do mesmo, os mesmos trejeitos esgarçados e conhecidos de tantos livros, diluídos em algo que parece cansaço.

Ou seja: um romance de Rubem Fonseca é quase uma certeza de café fraco, a mesma borra coada pela terceira ou quarta vez, e requentado.

Na verdade, “Mandrake: A Bíblia e a Bengala” não é propriamente um romance: são duas novelas curtas encadeadas, o que coloca o livro em um limbo que o faz não pertencer a nenhum gênero específico. Não há invenção aqui: o resultado parece apenas uma gambiarra, um recurso de aguém que tinha um prazo a cumprir e tudo o que tinha na mão eram duas novelas que se interligavam.

Fonseca reaproveita aqui um dos seus personagens recorrentes, o velho e bom Mandrake — outro é o protagonista sem nome de “Matéria do Sonho”. Funcionava perfeitamente bem em contos espalhados por vários livros, funcionou bem em “A Grande Arte”, apenas se perdeu em sua “parceria” com Gustavo Flávio. Seria uma dica que o mínimo que se poderia esperar do livro seria artesanato bem-feito.

Mas aqui o que salta aos olhos são os defeitos de Rubem Fonseca. Por exemplo, o seu truque mais gasto: a avalanche de informacões sobre um tema pouco usual (facas em “A Grande Arte”, sapos em “Bufo & Spallanzani”; agora o negócio são bengalas), sobre o qual ele discorre com a profundidade da antiga enciclopédia Conhecer. É um truque velho e que, em sua enésima repetição, é apenas cansativo e falso.

Resta então a história e os personagens. Mas aqui estão os mesmos personagens que já vimos tantas vezes antes em uma história que também já vimos. São histórias frouxas e repetidas, sem brilho, sem invenção.

Rubem Fonseca foi, provavelmente, o escritor brasileiro mais importante dos anos 60 e 70. Em 12 anos, ele pariu alguns dos livros mais importantes de sua época: “Lucia McCartney”, “Feliz Ano Novo”, “O Cobrador”. Havia algo de novo e brilhante, de genuíno. Mas hoje, e já há algum tempo, Rubem Fonseca apenas reescreve seus livros, cada vez de maneira menos inspirada. Um novo livro de Fonseca e se tem a impressão de estar diante de uma xerox da xerox anterior. E a cada nova cópia o resultado é mais impreciso e irregular, até não sobrar mais nada, até sobrar apenas um borrão que, com um pouco de esforço, lembra um teste de Rorschasch que faz como que nos lembremos que um dia um escritor espantou o país com contos que falavam de violência e amor de maneira indistinta e crua.

12 thoughts on “Quando Rubem Fonseca matou Mandrake

  1. Olha, Rafael. Vastas Emoções foi o último que eu gostei. Agosto foi o último que eu comprei. Depois desse, desisti. Prefiro ler, reler e treler Romance Negro e continuar a ver o Rubem Fonseca como grande escritor. Me dói um pouco ler qualquer coisa mais recente dele.
    Então fico assim, com o Rubem Fonseca que eu conheci e amei.
    Bjs.
    Daniela

  2. Ruben Fonseca tinha que seguir o exemplo de alguns outros menos exibidos e “para por cima”. Romance não é a praia dele. E agora, consegue sepultar um grande personagem. Mandrake mostra seu vigor até na adaptação televisiva pra HBO. Ficou legalzinho com o Marcos Palmeira.
    Zé Rubem: vai dormir e deixa o Mandrake com as glórias do passado.

    Boa, Rafael.

  3. Rafa, estás parecendo o marido traído falando da ex. Não é pedra demais para uma só vidraça? Fonseca não se repete, apenas é o mesmo sem a mesma intensidade. Assim como Márquez ou Greene depois de suas obras marcantes. Posso entender a decepção mas não entendo a não compreensão.

  4. Rapaz, só posso dizer alguma coisa depois que ler o livro, mas aviso logo que raramente concordo com o que dizem os críticos de qualquer espécie no campo das artes.

  5. Acontece-me com os escritores e com os artistas que aprecio, o que me vem acontecendo com os amigos…por vezes crescemos divergindo e os interesses que, num dado momento eram garante de “simpatia” e cimento do afecto, vão eles próprios conhecendo a transmutação que é apanágio do tempo.

    Decidimos tolerar e mesmo aprender a amar os defeitos alheios ou afastamo-nos progressivamente sem dramas… Movimento browniano, átomos e moléculas atraindo-se e afastando-se, dança da realidade…

    Penso que o Rafael está sendo algo severo com o Rubem Fonseca. Eu gostei muito do “Agosto” que foi o último livro que li dele. Não desmerece as obras anteriores. Continua a ser um grande carpinteiro da língua com um sentido muito agudo da trama.

    Reconheço as minhas limitações: quando amo sou cego. Como com o Caetano, a quem defendi contra tudo e todos quando trouxe a Lisboa e a Bruxelas, o “Fina Estampa”,estou disposto a pôr as mãos no fogo pelo Rubem…

    Quanto ao resto, grande blogue…

    Abraços.

  6. Realmente o forte do Rubão são os contos. O Diário de um Fescenino foi a última coisa que li dele. Feliz Ano Novo, que aliás, está completando três décadas, continua sendo o seu melhor trabalho.
    gd ab

  7. Quando vc fala de romance histórico para se referir ao Selvagem da Ópera já é usado um critério que não é plenamente estabelecido, depende da proposta do autor.Normalmente as pessoas confudem seus preconceitos com critérios seguros de avaliação.Eu particularmente valorizei o livro na medida em que a personalidade do músico é dissecada e criada pelo autor, o que eu acho que foi muito bem feito.
    Em relação ao Diário de um Fescenino e o Doente Molière as tramas como pano de fundo ao pequenos dramas dos narradores, que são de ordem tão mais fugaz e ao mesmo tempo mais eterna, são sobrepostas de maneira tão tranquila que alguns leitores acabam lendo nas entrelinhas apenas senilidade.Entretanto, pode ser o contrário.Com um pouco menos desse espírito amargo que gera comentários sem pé nem cabeça esses três livros de Rubem Fonseca podem ser muito bem recebidos.

  8. Rubem Fonseca, oitenta anos, não é o velho atento de Onze de Maio. Tudo foi escrito muito antes do atual A Bíblia e a bengala. Longe de mim condená-lo por não escrever mais os tais bons livros… O melhor é não esperar nada. Não espero nada de Rubem Fonseca. Como o viciado com alguma experiência, devemos, sim, dar um tempo. Ele que ja escreveu sobre o vicio da escrita. Talvez esquecendo um pouco da droga, possamos desviar o olhar da materia e trombar nossos olhos. Quem sabe na próxima dose do mesmo o efeito é outro.
    Rubem fonseca, eu o amo.

  9. Ótimo artigo, discordo, + é muito interessante mesmo, se fosse autor receberia com muito agrado a crítica… + o fato é que não gosto dos endeusados “O Cobrador” e “Feliz Ano Novo”, prefiro os contos mais recentes, quanto os romances, todos que li me parecem estar no mesmo nível (ou seja muito bom!) como A grande arte, Agosto, Buffo, Vastas emoções, Diário… quanto ao fato de serem “cansativos”, acho que isso corresponde mais a uma característica de textos longos mesmo… Abraço!

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