Saint-Honoré

Se alguém quer saber como era Rafinha Galvão aos 20 anos, é simples: é só imaginar um sujeito que, em boa parte das conversas, provavelmente interromperia seu interlocutor dizendo “Isso me lembra Bixiou debochando de Blondet” ou “Esse é o tipo de coisa que um Rastignac ainda pobre faria” ou “Ele fez como Paulo de Mannerville, não ouviu os conselhos de De Marsay e se ferrou.”

Entre os 20 e os 22 anos, eu lia Balzac como outras pessoas liam quadrinhos. À medida que ia comprando novos volumes de “A Comédia Humana”, um mundo absurdamente real ia se delineando diante de mim. Balzac foi a minha primeira verdadeira paixão literária, e provavelmente será a última.

Ainda hoje, se alguém me pergunta que livro eu levaria para uma ilha deserta, não perco tempo em afirmar que levaria “A Comédia Humana”. Nada mais é necessário. Nem Shakespeare. Balzac era, e é, leitura essencial para qualquer pessoa que goste de livros.

Havia obras-primas e havia lixo, claro. Coisas como “A Mulher de 30 Anos”, “A Vendetta”, uma ou outra espalhada por aqui. Mas a cada fracasso correspondem pelo menos dez obras brilhantes, pequenas pérolas como “Gobseck” ou “A Missa do Ateu” ou monumentos como “Ilusões Perdidas” ou “A Prima Bette”. São quase 90 livros na Comédia Humana.

Citar tantos títulos pode dar a impressão de que se trata de muitos livros diferentes. É só parcialmente verdade. Porque na verdade é um livro só, e seu enredo é toda a história de um lugar e um tempo, os estertores do regime feudal e da aristocracia na França e a ascensão irremediável da burguesia. Os romances, novelas e contos de Balzac são apenas episódios de uma obra maior. Aqui você lê uma história de De Marsay, sujeito que encontrou alguns livros antes. Mais adiante você vai conhecer sua origem. Essa falta de linearidade é exatamente igual à da vida, onde os encontros se dão de maneira aleatória e inconstante. E em tudo isso há um poder de observação da realidade que jamais seria igualado, por ninguém.

Não foi à toa que, segundo a lenda, Balzac morreu chamando pelo doutor Bianchon, seu personagem. Ele não podia fazer diferente: havia criado um mundo tão gigantesco e tão completo que às vezes parecia mais verdadeiro que o mundo real. Aqui e ali eu encontro um personagem de Balzac. O avarento como o velho Grandet, a socialite esnobe como a Marquesa d’Espard, o bom advogado como Derville, a moça inocente como Modesta Mignon e a víbora disfarçada como Rosália de Wateville; o talento em carne fraca como Luciano de Rubempré e o futuro vencedor como Eugênio de Rastignac.

Podia não ser um grande estilista — pecado ainda maior nos dias de hoje, em que pigmeus tentam calçar os sapatos esgarçados por gigantes — mas era um grande frasista. Um desses sujeitos que se dedicam a antologias de citações poderia fazer um volume bem alentado apenas com os livros de Balzac. De qualquer forma, estilo puro e simples faz grandes redatores, não grandes escritores. Para esses é preciso ter o que dizer. Estilo é essencial em uma época em que o que parece restar a fazer é simplesmente dizer o que já foi dito com palavras mais adequadas e que possam ser lidas durante os comerciais. Com estilo ou sem estilo, Balzac é um dos três maiores escritores da história. Escolha os outros dois. Quaisquer um. Tanto faz.

O que incomoda em Balzac são, principalmente, suas incursões pelo romanesco, concessões ao pior gosto popular como os piratas que aparecem para coroar a mediocridade espantosa de “A Mulher de 30 Anos”. (Baudelaire, ao contrário, achava que essa combinação de fantasia e observação era uma das qualidades de Balzac). Mas ele compensa tudo isso quando fala dos grandes aristocratas e dos pequenos burgueses, dos funcionários públicos, de tipógrafos, dos ladrões baratos e dos ladrões que se sentam nas diretorias dos bancos. Balzac foi o primeiro a perceber que o verdadeiro protagonista do novo mundo capitalista era o dinheiro, a ação eram os livros-caixa, e a peripécia uma promissória vencida.

Quem mais poderia escrever em 1832 um romance chamado “História da Grandeza e Decadência de César Birotteau, Perfumista, Adjunto do Maire do Décimo-Segundo Arrondissemént de Paris, Cavaleiro da Legião de Honra, Etc.”? Ninguém. Foi preciso um Balzac para perceber a grandeza épica na falência de um simples comerciante burguês, e contar tudo isso com uma profundidade psicológica que, em nenhum momento, deixa de lado a observação crua da realidade.

É nos romances menores que talvez o gênio de Balzac se manifeste com mais clareza. Porque é relativamente fácil — se você é um gênio, claro — fazer um “Ilusões Perdidas” e um “Pai Goriot” ao longo de uma carreira. Qualquer escritor de primeira linha traz em sua mochila uns quatro ou cinco grandes livros. Difícil, mesmo, é tirar dezenas de pequenas obras-primas com regularidade e constância, em quinze anos de trabalho, de fatos bobos como uma cena entrevista pela janela, um padreco do interior ou uma mal-amada maquiavélica. É o resultado de um processo de criação espantoso, pelo ritmo e pelo método: vários livros escritos ao mesmo tempo, dezesseis horas por dia, sete dias por semana, e as provas tipográficas eram submetidas a revisões consecutivas que aumentavam três, quatro vezes o tamanho original do livro. Ele queria conquistar pela pena o que Napoleão não pôde pela espada. E conseguiu.

Ninguém jamais disssecou sua época como Balzac. Era Tolstói que dizia para falar de sua aldeia? Pois a aldeia de Balzac não era sequer Paris, apesar das aparências; era todo o gênero humano. E se o homem não mudou muito em alguns milhões de anos, mudou ainda menos nesse século e meio. Balzac continua, hoje, mais atual que virtualmente todos os escritores contemporâneos. É mais atual que os futuramente esquecidos Don DeLillo e Paul Auster, para citar apenas dois de uma galeria quase infinita.

Provavelmente, aliás, mais atual que em seu próprio tempo. A crítica da época nunca gostou muito de Balzac, que considerava apenas um escritor de best sellers populares. A crítica da época era retardada. Em 1843, a Academia Francesa (que nunca aceitou Balzac entre seus membros) poderia ter premiado “O Médico Rural” com o prêmio Montyon, dedicado a ações virtuosas na literatura. Em vez disso premiou esse dois clássicos da literatura universal, “O Pequeno Corcunda” e “A Família do Tamanqueiro”, da mundialmente conhecida Mlle. Ulliac-Trémadeure, cuja estátua Rodin não esculpiu e que teria feito arranjo melhor com o mundo se tivesse simplesmente procurado um marido. Certo, “O Médico Rural” não é uma obra-prima; mas certamente é bem melhor que esses dois livros com títulos infantis.

A edição brasileira da “Comédia Humana”, organizada por Paulo Rónai, é uma das melhores do mundo. É um trabalho brilhante, responsável, um guia perfeito para quem ainda não conhece Balzac, e mesmo para quem conhece. Suas notas de rodapé são essenciais; suas introduções a cada peça são um referencial crítico fundamental para a compreensão do universo balzaquiano. Suas falhas, relativas, são a não inclusão de algumas obras que não fazem parte da Comédia Humana, mas que outras edições como a Pleiade da Gallimard incluem, como os Contes Drôlatiques, e o aportuguesamento de nomes próprios. Nada disso, no entanto, mancha a grandeza da edição. O que mancha, mesmo, é o fato de ela estar atualmente fora de catálogo.

Se eu fosse recomendar um roteiro para a leitura da “Comédia Humana”, seria fácil: primeiro a biografia de Balzac escrita pelo Paulo Rónai no volume I. Daí para o Prefácio de Balzac à obra, no último volume. Voltaria para o IV volume, que tem “O Pai Goriot”, “O Coronel Chabert”, “A Missa do Ateu” e “O Contrato de Casamento”, um volume tão genial que o meu perdeu a sobrecapa, de tanto uso. E então o curso normal, a partir do volume I.

Alguns anos sem tocar na Comédia Humana fizeram bem. De repente não consigo lembrar, exatamente, dos detalhes de “Uma Filha de Eva”. Isso quer dizer que chegou a hora de ler tudo novamente. São mais de 10 anos de separação. Mas ainda lembro da sensação de deslumbramento ao ler cada novo livro. Naquela época, e quem leu Balzac nessa idade entenderá facilmente, era fácil querer ser Rastignac tendo um amoral como De Marsay como exemplo, embora no fundo houvesse a desconfiança triste de que se era mesmo um pobre Rubempré. E à medida que o tempo vai passando mais e mais nos parecemos com aquele grupo de que fazem parte Blondet e Lousteau, Bixiou e Finot, cínicos cujos sonhos de grandeza jamais se concretizarão, e talvez não possamos desejar nada melhor que a honestidade simples de César Birotteau. Os tijolos podem ser os mesmos, mas o reboco muda, e muito. Pelo menos fica um consolo: o de achar extremamente chato D’Arthez com seu excesso de virtude aos 20 e aos 30, e saber que continuará achando aos 50.

Só quem conhece Balzac sabe o prazer absurdo que essa releitura será.

22 thoughts on “Saint-Honoré

  1. Brilhantíssimo post, dos melhores da história do blog. Balzac foi para você o que Dostoiévski foi para mim. A diferença é essa que você apontou: cada livro de Dostoiévski é um livro. Balzac escreveu um único, gigantesco.

    O que Paulo Rónai fez realmente não tem preço. Que merda que a edição brasileira esteja fora de catálogo.

  2. Ainda que medíocre foi em plena crise existencial dos 30 que fui iniciada em Balzac; ganhei justo “A Mulher de 30 anos” pra ler. Às vezes, mesmo começando errado a gente aprende a gostar do que é bom.

  3. Um post, no mínimo, genial. A editora Globo está colocando algumas obras-primas novamente no catálogo. Parece que ainda neste ano será lançada uma nova edição de “Em Busca do Tempo Perdido”. Quem sabe não estão preparando também uma nova edição de “A Comédia Humana”?

  4. O post está maravilhoso; é até desnecessário reforçar. Só queria dizer o quanto foi bacana pra mim que a primeira “conversa” entre os nossos blogs foi na época eu usava o pseudônimo Luciano Chardon, e você citou esse fato para falar de Balzac.

    Eu já li uns dez títulos da Comédia Humana, pois a biblioteca que eu freqüentava tem a edição inteira organizada pelo Paulo Rónai. É interessante que as anotações que ele fez não tiveram qualquer referência da edição anotada francesa, pois havia a II Guerra Mundial na época e ele estava impossibilitado de importar livros da Europa. Foi um trabalho de gênio mesmo.

    Eu não sabia que essa edição estava fora de catálogo. Coisas assim deveriam estar sempre nas livrarias. É por isso que cada vez mais eu compro pela internet: as livrarias daqui de Belém privilegiam mais o que está sendo lançado no momento, deixando de repor os estoques dos grandes autores.

    Um dia desses eu fui ler Eugênia Grandet, que eu tinha numa edição bem antiga e nunca tinha pego. Foi como reencontrar velhos amigos. Existe uma unidade impressionante entre os livros da Comédia Humana.

    O que mais me impressionou no Balzac foi a profundidade psicológica. A gente vê as motivações internas de cada personagem, para além de seus “valores morais” e imagem pública. Ele mostra a hipocrisia nossa de cada dia, e o quanto a soma de várias hipocrisias gera algum tipo de acomodação. Para um adolescente católico (eu) que acreditava na bondade humana, esses livros foram um aprendizado e tanto.

  5. Rafael,

    é sempre um prazer encontrar outro admirador do Mestre, desse Homero da burguesia, embora eu seja apenas um iniciante nos fascinantes caminhos da Comédia.

    Abraços

  6. Me senti uma ignorante por ainda não ter lido Balzac. Depois dessa sua postagem dá vontade de sair correndo atrás da obra. Pena que a obra organizada por Paulo Ronai não esteja disponível! Corrigirei isso na primeira oportunidade. Quem sabe ele não desbanque Goethe? meu preferido…beijus

  7. Que droga! A mesa de cabeceira já tá cheia e agora mais um bocado pra ler (e reler). “Ilusões Perdidas” tá no meu top de livros que mais marcaram.

  8. Tenho um ponta de inveja de quem teve contato com livros de grandes escritores na idade que tenho…

    Me dá uma angústia pensar em tanta coisa que ainda não li e quero ler e a bosta da faculdade tira o tempo pra isso…

    Bem, como disse que a edição tá fora do catálogo fui procurar nem sebo virtual e encontrei por
    autor: Balzac
    título: A Comédia Humana – 16 Vol.
    editora: Civilização Brasileira
    ano: 1978
    preço: R$ 340,00
    vendedor: Sebo Bela Cintra

    Se alguém que se empolgou pelo Balzac tiver com esta grana pra comprar taí a dica. O site que pesquisei foi: http://www.estanvirtual.com.br

    Tem muitos sebos online.

    Se eu tivesse dinheiro eu comprava, como não tenho, passo a oportunidade adiante.

  9. Só para não parecer que tô fazendo propaganda do sebo, depois olhando melhor a pesquisa vi que tem muitos outros sebos, no mesmo site que citei no comentário anterior, oferecendo a coleção completa por outros preços, maiores e menores.

    hehe

    é que foi o primeiro que vi.

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