O golpe do film d'auteur

Certo, o mundo deve muito à revolução teórica e estética que veio daquele pessoal da Cahiers du Cinéma. Pelo resgaste de gente muito boa em Hollywood, pela apresentação e pela crítica do que a França tinha de melhor e pior.

Mas a tese do cinéma d’auteur é uma das maiores bobagens que já se fez em cinema, com a provável exceção de “Godzilla”. É uma mistificação, e nisso se aproxima muito de boa parte da filosofia francesa moderna.

A idéia de caméra-stylo é, provavelmente, o ápice desse 171. O fato é que a função do diretor é dispensável. E a maior parte do que se convencionou chamar de “marca do diretor” é o resultado do trabalho de outros.

Não que um diretor não tenha nada a acrescentar a um filme. Normalmente tem (embora no mais das vezes seja basicamente um copidesque, retocando aqui e ali o roteiro, inserindo um travelling aqui, um close ali). Mas acrescenta usurpando outras funções, como a do cinegrafista. Em que diferem, por exemplo, a maior parte dos filmes feitos por Spielberg e os de George Lucas? Se Spielberg — e estou escolhendo um diretor que acaba tendo uma marca autoral relativamente forte — dirigisse aquele roteiro bobo e diálogos inanes de Star Wars, qual seria a diferença? Ou seja, o problema não é a pessoa do diretor, que no processo de criação de um filme acaba fazendo mais que simplesmente “dirigir”, mas a função de direção.

É simples. A idéia do diretor como autor do filme é um ultraje. Cinema sempre foi “arte” coletiva, típica da era taylorista. É o resultado do trabalho direto de muita gente, de atores ao assistente de montagem. É difícil, para começo de conversa, dizer que um filme tem um autor, especificamente. O que seria de “O Último Tango em Paris”, por exemplo, sem a atuação de Marlon Brando? E ele foi mais além do que o ator normalmente vai, com a sua interpretação: alterou a própria estrutura do filme, com improvisos fantásticos como o monólogo sobre Buddy.

O fato é que, se é para ter um filme ter um “autor”, este é o roteirista. É uma lógica simples. Um mau diretor pode fazer um bom filme com um bom roteiro, e Peter Bogdanovich é a prova viva. Mas nem um grande diretor consegue salvar um mau roteiro. Não há filme sem roteiro, mas um roteiro tem existência própria — e se for muito bom pode ser lido isoladamente: há alguns anos a LP&M publicava em livro os roteiros de Woody Allen, e eles valiam por si sós. A Rede Globo, uma grande produtora de teledramaturgia, reconhece esse fato primário sem muito alarde: não existem novelas de Dênis Carvalho ou Herval Rossano, mas de Janete Clair e Manoel Carlos.

Por outro lado, coordenação da direção de arte, direção de fotografia, cenografia, são coisas facilmente desempenhadas por um bom produtor. E a melhor prova de que a importância do diretor é superestimada está na própria evolução histórica da função.

Durante a era do cinema mudo, o diretor era rei. Mas com o surgimento do cinema falado e a consolidação do studio system o produtor passou a ser o “dono” do produto cinematográfico, e o diretor se tornou pouco mais que um técnico, algo como um capataz ou um cabo de turma. Normalmente só era chamado quando o produtor já tinha definido o filme com os roteiristas, escolhido a equipe, feito o teste do sofá com os atores. Ainda hoje não é o Spielberg diretor, aquele sujeito que grita “ação!” no set de filmagens, que dá uma cara própria a seus filmes. É o produtor, que concebe o filme e eventualmente mete a mão no roteiro.

Gore Vidal defende que o cinegrafista tem mais influência em um filme do que o diretor, e ele tem razão. Por exemplo, não é o trabalho do diretor Robert Rossen que faz de Body and Soul um filme razoavelmente famoso. Foi a decisão do cinegrafista James Wong Howe de usar patins para filmar as cenas de luta. E o que conheço de ilhas de edição me dá a impressão de que um editor é quem realmente define o resultado final do filme.

Houve ao longo dos tempos um bocado de exceções, claro. Frank Capra, Howard Hawks, Billy Wilder; todos esses tinham marcas fortes e próprias. Mas essa marca se revela não no trabalho específico de direção, mas em atribuições típicas de um produtor, como a escolha do roteiro e dos atores. Capra só pôde imprimir sua marca porque, antes de tudo, capitaneava uma unidade de produção independente. E todos conhecem o trabalho de Billy Wilder, essencialmente, como roteirista — um dos melhores da história. Os produtores da era de ouro de Hollywood costumavam entender mais de cinema que seus diretores, e “…E o Vento Levou” deveria calar a boca de quem prega a sua primazia. É um grande film d’auteur, se alguém quiser chamá-lo assim, mas esse autor não foram os diretores que se sucederam numa produção tumultuada, e sim David O. Selznick, o produtor. Falar em Chaplin, então, é covardia.

Mas a mística do diretor é muito forte.

Vi “Os Sonhadores” pela primeira vez há algumas semanas, e dele lembrava que houve alguns comentários blogs afora, mais nada. Perdi os cinco minutos iniciais, e no final cheguei à conclusão de que a única coisa que prestava ali eram as tetas divinas de Eva Green. Porque o filme é uma porcaria sem sentido, mal narrado, que não dá resposta a nada e que tem um dos finais mais incompetentes da história.

Há incesto, não consumado. Há homossexualismo, não consumado. Há cinefilia, não consumada. Há um questionamento político, não consumado. Enfim, o que há ali é um filme não consumado.

A impressão que ficou ao final era a de que o filme tinha sido feito por um bando de universitários (categoria onde se inserem, felizes, alguns dos mais burros e mais pretensiosos seres perpetrados pela humanidade) que passaram tempo demais vendo filmes antigos e tempo de menos pensando. Pareciam falar de de um tempo cuja alma não conseguiam apreender, o que talvez explicasse o uso de canções de Morrison Hotel, disco dos Doors de 1970, em um filme que se passa no início de 1968.

No dia seguinte peguei o filme do começo e vi que o diretor era Bernardo Bertolucci.

O mais curioso é que passei a duvidar do meu próprio julgamento. Se o filme era do sujeito que amanteigou a Maria Schneider, que escreveu o argumento de “Era Uma Vez no Oeste”, deveria ter alguma qualidade que eu não tinha conseguido ver.

Não tinha nenhum, na verdade. O fato, triste, é que eu também havia caído no golpe do film d’auteur.

O sumiço das bichas

De uns tempos para cá Hollywood vem se especializando no homossexual da nova era, e a sociedade vem se dando tapinhas nas costas com seus bons sorrisos hipócritas por ver seus preconceitos diminuírem. A visão de si mesmos no espelho, de uma sociedade cada vez mais liberal e tolerante, é corroborada pela aceitação do que chamam de “amor entre dois homens” e que Oscar Wilde, mais sinceramente, chamava de “o amor que não ousa dizer seu nome”.

Talvez ela até esteja certa, e aceite mesmo que dois homens façam sexo entre si. Mas se forem duas bichas, ah, mona, aí a coisa muda de figura.

Viados e sapatões fazem parte de uma comunidade literalmente singular. Se você é pobre, pode ter a certeza de contar com o apoio de ricos que vão aliviar sua culpa defendendo melhor distribuição de renda, desde que não toquem no deles. Se você é mulher, vai aparecer um bocado de homens defendendo os seus direitos (e, talvez, tentar te comer depois, que isso é bom para todo mundo e faz bem para a pele). Se você é negro, uma porção de brancos vai cerrar fileiras ao seu lado contra o racismo.

Mas se você é gay, você vai estar sozinho.

Movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais, como o Dialogay de Sergipe, não costumam contar com o apoio claro de outros setores do que chamam de sociedade civil organizada. Se fazem uma passeata, não se vê heterossexuais nelas — isso quando fazem, porque uma passeata de bichas e sapatões deve ser prato cheio para vaias e ovos podres. Para a maioria dos heterossexuais, bichas e sapatões podem até não ser mais aberrações, como já foram, mas ainda são incômodos. Algumas vezes justamente.

E nesse processo, parece ter se tornado fácil aceitar os dois extremos mais visíveis. Por um lado o homossexual que não trai os códigos comportamentais de seu sexo, como o viado com pose de homem e a sapatão de batom; por outro a caricatura, inofensiva de tão estridente, como a drag queen. Então a sociedade elogia os viados machos de Brokeback Mountain e se diverte na parada gay de São Paulo.

Este último caso é um dos mais interessantes. Porque ali não há mal nenhum. Porque desde que o carnaval é carnaval as pessoas vão aos montes para bailes gays, e se travestem em desfiles como os das Muquiranas em Salvador. Porque as bichas encapsuladas em paetês são engraçadas. Porque a partir do momento em que a coisa se assume como festa e paródia não há mais ameaça. As paradas gays são apenas um carnaval fora de época.

Enquanto isso o mito propagado por Brokeback Mountain, e outros tantos filmes que tratam ou tocam na temática gay, acaba sendo o de que viadagem é aceitável, desde que os homens falem grosso e as mulheres se mantenham femininas. A sapatão barra pesada, de calças baixas e pose de Humphrey Bogart sem saco, está automaticamente banida da imagem sanitizada do novos gays hollywoodianos.

No fim das contas, esse estereótipo do viado comportado de Hollywood é confortavelmente anódino. A única coisa que os diferencia de heterossexuais comuns é o fato de, à noite, dividirem sua cama e seus fluidos corporais com outros homens. Não há sequer uma sombra da bicha louca que usa jeans apertados e fala sibilando afetação. Fazendo uma comparação com o movimento negro, é como se seus defensores brancos definissem como padrão aceitável apenas os mulatos clarinhos.

Apesar das aparências, Brokeback Mountain não mostra gays; não tem sequer a gayety que lhes deu o nome. Mostra apenas uma variedade de amor e sexo perfeitamente aceitável por uma sociedade que se sente desconfortável ao lidar com algo que foge aos seus padrões.

Até há pouco tempo — antes que o politicamente correto levasse os bobos a acreditar que chamar alguém de “diversamente orientado sexualmente” o tornava menos viado e que homófobos iriam deixar de espancá-lo — , o termo preferido pelos gays americanos para se auto-definir era queer, esquisito. Partia do reconhecimento de que ser gay não era apenas manter relações homossexuais, mas principalmente ostentar um comportamento diferente. Uma bicha não está dentro dos padrões de uma sociedade baseada na família nuclear. E ao evitar tocar no direito dos homossexuais de assumir um comportamento diferente, filmes como Brokeback Mountain acabam reforçando o preconceito, definindo o padrão pelo qual homossexuais devem ser julgados.

É muito fácil aceitar homossexuais machos (aparentemente mais machos até que eu, este velho porco chauvinista, porque eu não falo grosso daquele jeito) como Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, ou lésbicas extremamente femininas e bonitas como as que de vez em quando colam um velcro discreto nas novelas das oito. Levantar a voz para dizer que não tem preconceitos porque não vê estranheza nesses casais é muito fácil, porque isso não representa nenhuma superação dos próprios preconceitos. Difícil, mesmo, é se sentir à vontade — ou pelo menos tolerar, de verdade — com a bichona que mora no apartamento do lado e tem um comportamento que, definitivamente, lhe incomoda — aquelas festas noite adentro ao som de Maria Bethânia e risadas quase histéricas. A bicha cheia de trejeitos, escandalosa, às vezes apenas uma caricatura de mulher, essa não aparece nos filmes, a não ser como motivo de riso. Porque, se aparecesse, não despertaria os mesmos bons sentimentos em uma sociedade que, por mais que se orgulhe de defender obviedades como a união civil homossexual, ainda cuida para que seus filhos mantenham distância do tio viado.

Mas, voltando a Hollywood, o que parece estar acontecendo é curioso. Se esse modelo se afirmar, o que parece ser um avanço social vai se tornar um retrocesso enorme. Porque a partir dele, as bichas acabarão perdendo o direito de ser bichas.