GhostLovers, Inc.

Como sempre, preciso de dinheiro.

E nessas horas é que a crise pare a oportunidade.

Sempre me incomodou o fato de não saber como ganhar dinheiro com a internet. Mas a Crica finalmente me mostrou o caminho.

Eu vou virar ghost writer daquele pessoal que se expõe nas vitrines do Par Perfeito e similares.

Será um serviço feito sob medida para aqueles homens necessitados e desesperados, ou simples maridos entediados que usam o site para pular a cerca. Gente que precisa urgentemente de uma — ou outra — mulher, mas que não sabe escrever direito e assim perde boas oportunidades de encontrar o amor de sua vida ou, o que é mais provável, a trepadinha do fim de semana.

Porque até no mundo virtual a coisa anda complicada. A mulherada anda seletiva, exige que o sujeito escreva corretamente e com o mínimo possível de lugares comuns. É injusto, porque se fossem bonitos, ricos e inteligentes esses “bons partidos” estariam na rua, aproveitando a vida; mesmo assim elas insistem. Mulheres nunca foram justas, e essa é grande parte de sua beleza.

Começo a me convencer de que há um grande futuro nessa iniciativa. Afinal de contas, em um mundo em que as pessoas têm cada vez mais medo de se apaixonar por alguém real, em que preferem enamorar-se das imagens de si mesmo que vislumbram nas palavras dos outros piscando em seus monitores, há espaço para uma nova carreira. Isso diz respeito a segurança, ao medo de serem magoadas; e é aí que nós entramos.

A GhostLovers, Inc. pretende oferecer um jeito simples de fazer com que esses aspirantes a amantes virtuais evitem cair em lugares comuns escritos em mau português, ou descambem para pérolas do bom humor descolado como “Você já viu perereca tomar leite de canudinho? Quer ver?”.

Porque com essas cantadas ninguém vai longe.

Vai ser simples. O cliente passa o briefing e a gente escreve seus e-mails. A idéia é garantir que a mulher vá para sua cama, e só depois descubra que ele é analfabeto e chato, e que tem frieira no dedinho do pé.

Poderemos falar de amor com ternura e paixão. Não estaremos envolvidos no processo que gera o interesse de uma pessoa por outra, nenhuma combinação química além daquela vontade premente de ganhar dinheiro se processará em nossos cérebros. Teremos a frieza necessária para jogar pacientemente todos aqueles joguinhos de sedução, os pequenos avanços e refugos, os pequenos negaceios que fazem a delícia dos amantes.

Ou seja: seremos apaixonados com juízo.

Estaremos para o amor como os jogos de ação estão para as guerras reais: você pode ter a mesma sensação, sem nenhum dos riscos. Na prática, seremos garantia de sucesso para sua empreitada, esteja você apaixonado ou simplesmente querendo carne nova.

Também poderemos evitar alguns traumas pós-coito. Melhor ainda, poderemos otimizar (já estou treinando o jargão) a única parte mais difícil que a conquista: a separação.

Por exemplo, o sujeito já comeu a coitada e agora quer ir embora. Mas terminar um namoro é sempre chato, e a maioria das pessoas fica tentando achar o melhor jeito de romper sem magoar a outra. Como normalmente esse pudor se deve não aos sentimentos da outra pessoa, mas à sua própria vaidade — porque não quer se sentir mal, não quer que sua imagem seja arranhada –, nós faremos esse trabalho sujo para ele. Cuidaremos de tudo e garantiremos que a pobre-de-cristo nunca mais lhe encha o saco. Ela vai entender o nosso recado, pode apostar.

Também poderemos realizar pequenas vinganças. Por exemplo, ela terminou com você de uma forma que o humilhou para sempre, que lhe deixou minúsculo, e você não sabe o que responder? Deixe que a gente resolve. Nós a humilharemos para você. Podemos ser maus, cruéis, perversos, porque nada disso é difícil quando você não tem nenhuma razão para segurar sua raiva.

Ela vai se arrepender de ter ousado tripudiar de você. Você broxou? Foi porque ela é uma baranga derrubada com crateras de celulite, bunda mole e pele flácida. Você não é mal-dotado; ela é que é larga. Ela disse que você é um fracassado? Na verdade ela é que não vale a pena por você gastar o seu dinheiro, ela é só uma mulher barata. Um tira-gosto.

A GhostLovers diz respeito a competência, não a escrúpulos.

Mas preferimos, claro, ser amorosos e bons. Porque acreditamos no amor, como putas que ao amanhecer voltam para casa e para seus filhos e maridos.

Acho que faremos sucesso.

Originalmente publicado em 06 de setembro de 2004

Antes que abram as urnas

O deputado me pede para escrever uns textos para uma candidata a vereadora — que promete bastante e em quem o seu partido está interessado — e supervisionar sua gravação. Não importa que eu seja redator do programa dos majoritários, não importa que eu não goste de sentar atrás de um monitor de vídeo: esse é o tipo de galho que a gente sempre quebra.

E lá vem ela, trazendo a filha a tiracolo.

A menina tem peitos arrebatadores, impressionantes, controlados a muito custo pelo decote perdulário, e se torna difícil tirar os olhos deles enquanto interrogo a mãe para decidir o que ela deve dizer. Ela não é exatamente a menina mais bonita do mundo, mas um tio filósofo dizia que quem come cara é bexiga. Pergunto seu nome e sua idade — 16 anos de belas coxas e belo, belíssimo umbigo.

Eu, provavelmente meio alto pela quantidade balzaquiana de café que ando bebendo, resolvo que vou aliviar um pouco a minha tensão.

Começo a chamar a candidata de sogrinha. Quando termino a gravação pergunto à menina o dia do seu aniversário, e então digo a sua mãe que exijo ser convidado para a festa no tal dia de 2006. A mãe dá uma risada e eu anoto: se essa menina voltar a aparecer por aqui é porque a mãe liberou.

Somos todos animais políticos, afinal.

***

Nas eleições de 1996 uma candidata a vereadora resolveu quebrar as regras e me pediu para escrever o seu texto da TV.

Eu não escrevia texto para vereador. Eles que se virassem, a barra já estava muito pesada (aquela seria a única eleição que eu perderia) para que eu perdesse tempo com o amontoado de malucos que brigavam pelo dinheiro dos santinhos, camisas e cabos eleitorais e pela oportunidade única de falar bobagem em tempo exíguo na TV.

Mas ela confiava em seu charme. E no de suas meninas.

Tia Fulana era cafetina, dona de um puteiro famoso, ou assim dizia um jornalista que já fora respeitado mas tivera sua carreira destroçada pela cocaína, seu cliente e amigo. Era uma ruína de mulher, e ruínas de putas são sempre mais deterioradas, mais tristes. Ela invariavelmente chegava à produtora acompanhada de duas ou três de suas protegidas, ou funcionárias, ou sobrinhas.

E lá veio ela, rebolando, tentando flutuar no ar: “Gatinho, escreve um texto pra mim”. Pronunciava “gatchinho”, com o sotaque pseudo-carioca bizarro e arrastado que alguns sergipanos usam quando querem parecer sofisticados.

Dava um sorriso sexy, exalava um perfume de mulher velha, peitos gelatinosos apertados numa blusa de lycra. Deve ter achado que eu tinha uns 18 anos; e provavelmente julgava seduzir o garoto encantado ante possibilidades de sexo com uma mulher experiente — ou, sendo mais realista, que estaria disposto a trocar uns 15 segundos de texto por promessas de suas meninas oxigenadas.

Eu dei o meu melhor sorriso e disse que não podia, que não era autorizado a escrever, que aquilo iria custar o meu emprego — ou qualquer outra besteira que eu conseguisse inventar.

E então o seu sorriso foi perdendo o calor e parecia disfarçar uma raiva surda, e eu tinha a impressão que ela estava silenciosamente me xingando de viado filho da puta. O meu sorriso aumentava.

A cada negativa ela percebia que seu tempo já tinha passado. Ela me deu as costas e, rebolando, foi para o estúdio, com suas meninas sorridentes a tiracolo.

Originalmente publicado em 30 de agosto de 2004

A lenda de Vanderlei

Apesar de toda essa empolgação esportiva que tomou conta do Brasil nos últimos dias, a verdade é que este é um país que, em se tratando de Olimpíadas, nunca passou do medíocre. Um país que até 1980 tinha apenas 3 campeões olímpicos — Adhemar Ferreira da Silva, duas vezes, e o primeiro, Guilherme Paraense — e que, juntando todas as 20 medalhas de ouro que conquistou nesses 108 anos, mal se equipara ao que os Estados Unidos conquistam em um único dia, em qualquer Olimpíada.

Acima de tudo, o Brasil nunca protagonizou um único grande momento nas Olimpíadas. Vencemos algumas, perdemos muitas, mas com raras exceções cumprimos apenas o papel que outras nações desempenham com mais brilho.

Os grandes momentos, aqueles inesquecíveis, não são definidos pelas medalhas que se conquista, pelas vitórias ou derrotas. Às vezes são memoráveis pelo que poderiam ter sido, às vezes são a derrota que toca em algum lugar obscuro do subconsciente mundial.

Jesse Owens entrou para a história não pelas medalhas que conquistou na Alemanha, mas por ter feito Hitler abandonar o estádio enquanto passava em sua cara a teoria da superioridade ariana. A ginasta americana que saltou com o pé torcido ou quebrado em 1992 entrou para a história dos jogos pelo seu esforço, pela disposição em superar seus limites em prol de um ideal de competição.

E, acima de tudo, a suíça Gabrielle Andersen-Scheiss entrou para a memória coletiva de todo o mundo ao conseguir completar a última volta da maratona de 1984.

É uma das imagens mais belas da história das Olimpíadas, e dificilmente será igualada, muito menos superada. Por uma eternidade ela se arrasta pela pista de atletismo, contorcida, pernas dobradas. Se há algum limite de esforço e resistência humanos, ela o havia transposto uns dez quilômetros atrás. À margem da pista os médicos esperam que ela cruze a linha de chegada ou caia de uma vez, para que eles possam atender a uma mulher que já tinha dado mais do que tinha para dar, há muito tempo.

Não havia nada em jogo ali. Ela não iria ganhar nada. Ninguém a reprovaria por desistir. Ela não tinha que provar nada a ninguém. Ela já tinha perdido.

E mesmo assim ela insistia em completar aquela prova, como Fidípides correu para avisar que haviam ganho a batalha. Ela conseguiu. E entrou para a história.

Agora diga o nome da vencedora da maratona daquele ano.

Até hoje pela manhã, ninguém fazia idéia de que existia um sujeito chamado Vanderlei Lima que se considerava capaz de repetir o feito de Fidípides, ou pelo menos o da suíça Gabrielle. Quando a corrida começou, ninguém estava interessado em acompanhá-la. Só quando as pessoas perceberam que aquele brasileiro desconhecido tinha chances reais de vencer uma das provas mais nobres das Olimpíadas é que esqueceram um pouco a vitória no vôlei masculino e passaram a praticar o esporte preferido do Brasil, o de torcer pelos vencedores.

E foi então, quando Vanderlei liderava a corrida e se aproximava da realização de um sonho que nenhum brasileiro além dele sonhava, que apareceu o irlandês maluco e o segurou.

Agora o Comitê Olímpico Brasileiro quer a revisão do resultado da maratona.

Ganhar a maratona não vai fazer Vanderlei entrar na história. Ele vai ser apenas mais um, entre tantos. Ninguém lembra dos nomes dos vencedores das maratonas. Nem mesmo do pastor de ovelhas grego, cujo ídolo era Fidípides e que ganhou a primeira em 1896.

Mas a história do sujeito que poderia ter vencido, que estava na frente até ser atrapalhado por um louco, iria fazer de Vanderlei uma lenda, o símbolo do “quase realizado”, do “faltou pouco”, o homem que quase venceu a maratona. E há uma diferença abissal, incompreensível para os poucos neurônios do Comitê Olímpico Brasileiro, entre “o brasileiro que ganhou a maratona” e “o homem que quase ganhou a maratona”.

O Comitê Olímpico Brasileiro, mais acostumado às safadezas e negociatas da CBF, deveria respeitar a grandiosidade das lendas olímpicas. Que deixem os tapetões para os Flamengos, Vascos e Fluminenses da vida. As Olimpíadas têm, ou pelo menos deveriam ter, um ideal bem maior que isso.

Tentar dar esse título a Vanderlei é lhe tirar uma glória maior: a grandiosidade a que só as lendas podem aspirar.

Originalmente publicado em 29 de agosto de 2004

O desprezo de Casablanca

Vieram parar aqui atrás dessa frase:

casablanca desprezaria

Se estão se referindo ao meu filme preferido, eu tenho uma idéia do que Casablanca desprezaria.

Casablanca desprezaria homens que levam vidas mesquinhas e vis. Mas desprezaria ainda mais homens vis mas incapazes de uma ação de coragem às portas da morte.

Casablanca desprezaria aqueles que não amam os prazeres da vida, e que não são capazes de pequenas torpezas no dia-a-dia para consegui-las. Mas desprezaria ainda mais aqueles que não sabem reconhecer a hora, entre tantas outras horas, de atirar no seu Strasser, e não no seu Rick.

Casablanca desprezaria aqueles que abandonam um ideal, mas desprezaria ainda mais aqueles que nunca tiveram um ideal para abandonar e reencontrar.

Casablanca desprezaria mulheres que não fossem capazes de ceder a um hedonista corrupto por amor ao seu marido, mas desprezaria ainda mais um homem que, sabendo disso e podendo evitar, não contrariasse todos os seus princípios e a preservasse porque ainda acredita no amor.

Casablanca desprezaria homens que não sabem a hora em que devem se separar da mulher que amam, mas desprezaria ainda mais aqueles que não se deixam amar uma mulher por medo da separação.

Casablanca desprezaria mulheres que não entendem o dilema entre o dever e a paixão, e desprezaria ainda mais aquelas que não escolhem a paixão. Piores, apenas, só os homens que não as fazem seguir o dever.

Casablanca desprezaria aqueles que não conseguem ouvir uma velha canção porque cada acorde os destrói por dentro; mas desprezaria ainda mais aqueles que, quando ela entra em seu bar, entre todos os outros bares do mundo, não exigem que Sam a toque, porque tocou para ela.

Mas, acima de tudo, Casablanca desprezaria aqueles que não têm Paris. Porque esses nunca tiveram nada, e provavelmente jamais terão.

Originalmente publicado em 27 de agosto de 2004

Carlos Zéfiro e eu

Em 1981 um sujeito foi até a agência onde meu pai trabalhava.

Era ilustrador e tinha uns 50 anos, talvez mais. Sobraçava algumas peças e tinha carinho especial por um jornal ilustrado, ou algo parecido, que estava tentando lançar e cuja boneca trazia consigo. Talvez trouxesse outras coisas de que não me lembro. Eu dormia às 8 da noite, e já tinha dormido em algum canto quando ele chegou. Acordei umas duas horas depois.

Eu tinha 10 anos, e naquela noite aprendi muitas coisas. Uma de suas histórias era sobre um pracinha brasileiro que, na Itália da II Guerra, tinha um ataque de “paúra” — foi quando li a palavra pela primeira vez. A capa do seu jornal, no traço inconfundível que só o nanquim em bom papel dá, trazia um alferes Joaquim José da Silva Xavier jovem, bonito, barbeado. Ele explicou que a iconografia tradicional de Tiradentes era uma mistificação, que por ser alferes Tiradentes seria necessariamente enforcado com a barba feita, em respeito à honra e hierarquia militares. Sua barba, seus cabelos longos eram apenas a tentativa da história oficial de aproximá-lo de Cristo e criar um herói nacional de caráter semi-divino e inspirador.

Pelo que consigo lembrar dele, o sujeito era um grande desenhista, de traço acadêmico, mas extremamente sólido. Pertencia a uma geração em que o respeito à anatomia e ao desenho, ao detalhe, eram fundamentais; uma época em que artistas primeiro aprendiam a técnica para só então transcendê-la. Os que conseguiam se tornavam estrelas; os que não conseguiam se restringiam à batalha cotidiana.

Mais tarde foram comer algo num restaurante que ficava no térreo do edifício Sulacap, na praça Castro Alves. Àquela hora, madrugada avançada, eu estava em um novo mundo. E sempre aprendendo: ele falaria que tatu transmite lepra, coisa de que jamais esqueci.

Depois daquela noite eu nunca mais veria o aquele homem. Ele não conseguiu os freelances que queria, e eu só não esqueceria dele porque, afinal, tinha aprendido muito naquelas poucas horas.

10 anos depois, a Playboy trazia Ísis de Oliveira na capa e, no miolo, uma matéria revelando a identidade de Carlos Zéfiro. Era um funcionário público e co-autor de alguns sambas, como “A Flor e o Espinho”, chamado Alcides Caminha.

Ao furo de reportagem a Playboy juntava uma retranca, esta não tão interessante: um baiano tinha tentado aplicar um golpe na revista se dizendo passar por Carlos Zéfiro. Mas a revista foi avisada a tempo e revelou a fraude que tinham tentado lhe empurrar. O engraçado é que o sujeito tinha um traço infinitamente melhor que Carlos Zéfiro. Mas, infelizmente — embora tenha provavelmente desenhado algumas histórias pornográficas –, ele não era Zéfiro. Só queria algum dinheiro.

E minha mãe, ao ver o nome do sujeito, comentou comigo: “Você lembra dele, Rafael? Ele foi uma vez na agência, atrás do seu pai.”

Originalmente publicado em 19 de agosto de 2004

Resultados do DataVão

Resultados da pesquisa do Instituto DataVão sobre as eleições no país:

Lula: 36%
Alckmin: 28%
Cristóvam: 8%
Heloísa: 4%
Nulos, brancos e indecisos: 22%

Obviamente, essa pesquisa não tem absolutamente nenhum valor científico.

Mesmo assim, há coisas interessantes nela. Nesse meio tempo mais uma pesquisa da Sensus saiu e apontou outra queda de Alckmin, ao contrário da tendência que o DataVão indica. Não acho que seja um processo a ser revertido com o início do horário eleitoral gratuito. Pelo contrário: a avalanche de dados que o Lula deve apresentar provavelmente vai fazer com que uma parte razoável dos eleitores das classes C, D e E ainda indecisos adiram a ele.

(A queda de Alckmin vai abrir espaço para a Gralha das Alagoas. Ela é a preferida dos órfãos de Lula, aqueles que se sentiram traídos pelo pragmatismo que Lula adotou quando chegou à presidência ou, depois, pelos escândalos do mensalão. Diz menos respeito às propostas dela — boa parte das quais anacrônica e impraticável — do que à atitude de crítica de esquerda.)

Pelas características deste blog, governista convicto, eu esperava mais votos em Lula e mais na Heloísa Helena. O grande número de votos em Alckmin me surpreendeu. Isso é bom. Quer dizer que o blog pode ser lulista, mas não repele os apreciadores de chuchu.

E embora o Cristovam Buarque (que segundo o Maurício Vivas é a cara do chefe do Dilbert — e ele tem razão) tenha uma candidatura que está sempre dentro da margem de erro, aqui ele aparece lá em cima.

No fim das contas, os resultados dessa pesquisa apenas provam que este, definitivamente, não é um blog sério.

A próxima edição da pesquisa será feita quando terminar o horário eleitoral.

Nasce uma lenda

Cidades pequenas sempre têm seus loucos de estimação.

São conhecidos por todos, passam a fazer parte do cotidiano e, quando desaparecem, demora um pouco até que alguém de repente se pergunte o foi feito dele, pergunta que raramente tem resposta. São ubíquos e conspícuos, se integram à paisagem e, às vezes, à lenda de cada cidade, como Gentileza atravessou a baía para se integrar à do Rio de Janeiro.

E estes são dias de espanto, porque uma lenda está nascendo em Aracaju.

Ela é uma mulher em seus 50, 60 anos. É negra, mas em algum lugar de sua loucura decidiu que isso pode ser disfarçado. Passa pancake em todo o rosto, e assim cria uma máscara grosseira, óbvia e agressiva. Talvez quisesse se tornar uma boneca de louça, mas a imagem mais fidedigna é a de um aborígene australiano. Se a blusa que está usando deixa os ombros à mostra, ela também os maquia, outra camada grossa de pancake colocada de forma descuidada. Seus olhos, que podem denunciar a si mesma diante de um espelho, estão sempre escondidos atrás de óculos escuros.

Vaga principalmente por centros comerciais: shopping centers, hipermercados. Sua loucura é alimentada pelo consumismo de uma sociedade à qual ela não se julga adequada. Não parece comprar nada, jamais; é como um fantasma que contempla, distante e marginal, a lei da oferta e da procura.

Ela já começou a se tornar conhecida, mas ainda causa espanto. As pessoas olham constrangidas, disfarçadas, assustadas ainda; e tentam uma explicação racional, porque ainda não desistiram de entender.

Mas não vai demorar até que desistam de explicações que nunca virão, ao menos não satisfatoriamente, e apenas se acostumem à sua presença. Sua lenda começa a ser criada, e já dizem que ela era professora. É só o começo; ainda é cedo para a lenda tomar sua primeira forma a partir de pequenas informações biográficas. E mais cedo ainda para que dispense até mesmo esses fiapos de verdade, e adquira dimensões fantásticas e irreais.

Para que isso aconteça é preciso que as crianças de hoje cresçam. Porque apenas crianças não se incomodam com a loucura alheia; são elas que vão dar a essa mulher o seu caráter legendário e sua integração à rotina da cidade, ao crescerem com a sua visão bizarra, às vezes fantasmagórica.

Ela tampouco tem um nome. Não é a louca da máscara, nem a maluca dos shoppings. É uma louca pública ainda muito recente, e talvez a cidade tenha crescido demais e não esteja mais preparada para seus loucos. Enquanto isso ela vaga pelos shoppings, pouco se importando com a impressão que causa nas pessoas, porque não são elas que a aterrorizam, é o espelho.

Estes são mesmo dias de espanto.

Originalmente publicado em 12 de agosto de 2004

Carlos Alberto

De madrugada, vindo do bar do Pinto com os bolsos vazios como de costume, Carlos Alberto senta à máquina e declara ao resto da redação:

— Tem um concurso de poesia vindo aí. Tô precisando de dinheiro. Vou fazer um poema pra ganhar o primeiro prêmio.

Faz.

— Agora vou fazer um pra ganhar o segundo prêmio.

Faz.

— Agora, o terceiro.

Faz.

Vence o primeiro e o terceiro lugares. Mas as Parcas insistem em cortar o fio da sua empáfia, como farão repetidas vezes com seus descendentes, e o segundo prêmio vai para outra pessoa.

***

Nega Lia vive sendo presa. E um dia Carlos Alberto lhe dá algumas dicas sobre o que fazer quando lhe prenderem.

Em sua próxima prisão, Nega Lia segue à risca o conselho.

Lambuza o corpo inteiro de merda e sai andando, tranqüila, em direção à porta. Conforme a previsão, ninguém tem coragem de pará-la. E então ela avisa que vai cumprir a última parte do roteiro que lhe foi dado:

— Agora vou dar um abraço no secretário de Segurança.

Os policiais entendem que isso é demais. E avisam que ela pode ir ambora, mas se subir à sala do secretário eles atiram.

Com um mínimo de sensatez, ela sai da Secretaria de Segurança. Na porta se vira e começa a fazer escândalo.

— Vocês são um bando de merdas. É tudo burro. Foi Chatô quem me disse o que fazer. Chatô é mais inteligente que vocês todos.

E nos próximos dias Carlos Alberto tem que ouvir as reclamações do pessoal, que acha que alguns conselhos não devem ser dados.

***

Noite de sexta-feira, Carlos Alberto e Marcelo sobem a Ladeira da Barra chutando lata, reclamando dos bolsos vazios.

De repente uma vernissage, e Carlos Alberto descobre onde beber.

Entra, se aproxima de um quadro e começa a fazer comentários elogiosos e aparentemente eruditos sobre a peça. O marchand se aproxima, deliciado. Agora o uísque e os canapés chegam a eles com fartura e pontualidade.

— Passe na agência segunda à tarde, para entregar o quadro e pegar o cheque.

E então a noite está liberada, e mais uísques e mais canapés.

Segunda-feira e o marchand bate na agência, trazendo o quadro embrulhado para presente numa Kombi.

— Carlos Alberto, tem um sujeito aí fora dizendo que veio entregar um quadro que você comprou.

Ele sai e vê o sujeito.

— Pois não, meu amigo?

— O quadro que o senhor comprou…

— Eu não comprei quadro nenhum. Eu nem conheço o senhor.

— Como não? O senhor foi à vernissage na sexta, comprou o quadro, bebeu uísque…

— O senhor me deu uísque? Então tá explicado. Mas vai, mostra aí o quadro.

O sujeito desembrulha seu pacote.

— Esse quadro é uma merda. Eu nunca compraria uma coisa ruim dessas.

E volta a entrar na agência.

***

O prazo para apresentação do anúncio está chegando ao fim, mas Duda olha em volta e não tem anúncio e não tem Carlos Alberto.

A agência, a esta hora, está desesperada. As secretárias choram.

Carlos Alberto chega na agência e Duda lhe dá um esporro:

— Porra, Jesus, cadê o anúncio?

— Duda, eu deixei na sua mesa ontem.

E começa a procurar. Duda corre, chama as secretárias, colocam a sala de pernas para o ar.

A essa altura Carlos Alberto já saiu. Vai para sua sala, senta à máquina, escreve o anúncio e volta para a sala de Duda. Disfarçadamente coloca os papéis no meio da bagunça e espera acharem.

Quando acham — e aquela é uma bela peça — é a vez de Carlos Alberto comentar:

— Sabe qual é o problema, Duda? É essa bagunça em que a sua sala vive. Você devia ser mais organizado.

***

Antigamente era muito pior, mas ainda hoje, de vez em quando, me apresentam a gente da velha guarda:

— Esse daqui é o filho de Carlos Alberto.

Há muito me acostumei a fazer uma pequena correção.

— Não é bem assim. Aquele ali é o pai de Rafael Galvão.

A ordem dos fatores altera o produto.

Originalmente publicado em 08 de agosto de 2004

O inimigo do meu inimigo

Uma conspiração de oficiais nazistas para assassinar Hitler no final da II Guerra já foi tema de vários filmes, e agora os conspiradores foram reconhecidos pelo primeiro-ministro Gerhard Schroeder como “patriotas“.

O reconhecimento tardio não é apenas um equívoco histórico. É também uma tentativa da Alemanha de se reconciliar a qualquer custo com a herança mais maldita que um país já carregou. Mostra que o desconforto alemão com a sua história está longe de acabar.

Esse reconhecimento passa por cima de várias questões importantes. Por uma analogia torta, tenta fazer da tentativa de golpe de Estado uma espécie de ápice da resistência alemã. Tenta fazer crer ao mundo que o nazismo, afinal, não foi a coroação de um longo processo de formação da identidade nacional, e sim a conseqüência de um putsch numa cervejaria de Munique, restrito a uns poucos alucinados. Que a culpa pelo Holocausto não é da Alemanha, mas de uma excrescência histórica específica e impossível de se repetir, antes ou depois.

Infelizmente, não houve absolutamente nada de heróico nesse complô. O que se via ali eram oficiais nazistas, participantes entusiasmados da aventura expansionista e anti-semita alemã, desesperados ante o fracasso iminente. A tentativa de golpe nem longe se assemelha, por exemplo, à atuação dos maquis franceses. Não se tratava de resistência popular ao nazismo, nem mesmo de divergências ideológicas internas. O que estava em jogo, ali, eram as peles daqueles oficiais. Mais que “patriotas”, eram políticos oportunistas que se viam encurralados, percebendo que o sonho megalomaníaco tinha acabado e que precisavam de um expediente que lhes permitisse escapar a um destino que, acertadamente, adivinhavam problemático.

Para que os conspiradores pudessem ser chamados com justiça de “patriotas” seria preciso que se insurgissem contra a base ideológica do nazismo. Seria preciso que acreditassem que o anti-semitismo foi o maior crime já cometido contra o gênero humano; e se isso for pedir demais, deveriam ao menos ter bem claro que as políticas interna e externa nazistas eram moralmente erradas, e não apenas um erro estratégico. Eles não discordavam do arcabouço moral ou ideológico do nazismo: basicamente, achavam apenas que tudo aquilo tinha sido mal conduzido. O problema de Hitler era não ter feito as coisas direito.

Há dois elementos básicos que constituem o nazismo. Um é o totalitarismo político combinado ao tradicional expansionismo teutônico; mas o que realmente o diferencia de outros regimes totalitários, como o fascismo, é o seu conteúdo anti-semita. Nisso a chata da Hannah Arendt (que criou o conceito delirante de “riqueza que não explora”) está corretíssima. A noção hedionda de que se pode estabelecer um sistema mecânico e extremamente funcional para a eliminação total de um povo cujo único crime era descender da tribo de Judá, e transformar isso em política de Estado, foi um momento único na história, e não pode ser esquecido ou minimizado com a glorificação de meros oportunistas.

Não era a Solução Final que horrorizava os conspiradores, muito menos o anti-semitismo; não era sequer a guerra que causou a morte de cerca de 60 milhões de pessoas. O que os amedrontava era a perspectiva de declínio e queda, de fim de suas carreiras. Não são mais patriotas do que Himmler tentando negociar a rendição alemã em meio ao caos de uma Berlim em ruínas, pouco antes de ser expulso do partido por Hitler.

E isso não é patriotismo. É política barata, pragmática, que qualquer vereador de cidade pequena entende e pratica. É sobrevivência. Seria preciso que se revoltassem contra a Noite dos Cristais, contra as meninas judias trancadas nos porões da Alemanha e escrevendo diários de desespero, contra os milhões morrendo na Rússia. Mas não fizeram isso; fizeram apenas o que qualquer rato faz quando o navio está afundando.

Louvar a memória de golpistas de última hora não é resgatar a dignidade alemã. É manipulação barata que visa, unicamente, maquiar a história e tornar um passado degradante algo mais palatável. A Alemanha, 60 anos depois da grande mancha em sua alma, ainda precisa desesperadamente de alguns exemplos que mostrem que o nazismo não pode ser confundido com a própria identidade nacional naquele momento.

Simplismos desse tipo ajudam a obscurecer a compreensão do mais aterrador fenômeno de massas já visto. Dão a ele uma dimensão extraodinária que o desliga do seu processo de construção. Levam o nazismo ao território dos contos de fadas, removendo-o da realidade, dos pequenos oportunismos dos Speer e Göring da vida, e o tornam tão fantástico que é apenas como se fosse um sonho maluco já esquecido.

Talvez isso possa servir de acalanto ao sentimento de honra alemã. Talvez. Se acreditam que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, talvez isso possa servir como um consolo mínimo. Mas ao fazerem isso se afastam da verdade, e o consolo não se torna sequer um analgésico. Não dá para encontrar a paz com mentiras. A dor e a vergonha vão continuar.

Originalmente publicado em 22 de julho de 2004

***

A partir de hoje começa uma série de republicações do que considero os melhores posts deste blog entre julho de 2004 e julho de 2005. Enquanto isso eu vou ali, tentar ajudar a eleger um novo governador para Sergipe.