Numa tarde em Fortaleza

Eu morava em Fortaleza e minha casa ficava perto da agência onde trabalhava, uns três ou quatro quarteirões.

Eu voltava do almoço (almoço era a hora em que eu ia tocar guitarra para minha filha), subindo a Rui Barbosa, quando encontrei um cego no cruzamento com a Torres Câmara. As pessoas passavam por ele sem se deter, atravessavam sozinhas a rua porque, afinal de contas, atravessar a rua era problema dele. Ofereci o braço, ele segurou e atravessamos a rua.

Fomos conversando pelos próximos dois quarteirões. Acho que fui eu a iniciar a conversa, e reclamei daquele sol miserável de Fortaleza, daquele calor miserável de Fortaleza. E ele disse que sim, estava muito quente, mas então lembrou que era pior quando chovia.

Em uma mão ele segurava sua bengala, na outra uma pasta: ele era vendedor. E me disse que quando chovia tudo ficava mais complicado para ele, porque tinha que segurar o guarda-chuva com uma das mãos e dar um jeito de levar a pasta e a bengala na outra.

“Ué”, eu disse, “uma capa de chuva é mais prático.”

E então ele disse que não, que uma capa de chuva era uma verdadeira tragédia, porque cobria seus ouvidos e sem ouvidos ele não podia se localizar. Sem ouvidos ele se tornava um inútil. Nos poucos metros que restavam ele me contou que não podia se dar ao luxo de não trabalhar, porque tinha responsabilidades, mulher e filhos para sustentar.

Ele se despediu de mim em outro cruzamento.

Alguns quarteirões antes, eu tinha parado para fazer uma boa ação. Uma que fizesse Deus, na hora da morte, contrabalançar um pouco as tantas más e me garantir, com um pouco de boa vontade, um lugarzinho no purgatório. Acabei recebendo uma lição de vida, uma espécie de recado para nunca mais reclamar de bobagens. Eu saía de um apartamento ventilado e ia para uma agência onde o ar-condicionado estava ligado no máximo, e reclamava de cinco minutos de sol e calor. Enquanto isso aquele sujeito agradecia pelo sol que o mesmo Deus que lhe tinha tirado os olhos lhe dava.

De vez em quando eu vejo as pessoas reclamando do quão difícil é a sua vida.

Já estou velho o suficiente para saber que não dá para comparar as pessoas, que a cruz de cada um parece às vezes pesada demais independente do tamanho, e elas sempre têm razão porque cada um sabe o quanto ela lhes pesa. Mas hoje, antes de reclamar das coisas, eu tento lembrar daquele cego que dobrou à esquerda na Santos Dumont, bengala branca em uma mão e uma pasta velha e batida em outra, e que se afastou enquanto eu ouvia o ruído de sua bengala batendo na calçada.

Originalmente publicado em 28 de março de 2005

9 thoughts on “Numa tarde em Fortaleza

  1. O cobertor realmente é do tamanho do frio que nos basta sentir. Mas nem isso é suficiente pra fazer lembrar que o frio podderia ser muito maior e o tal do cobertor, muito mais fino. Enfim, mesmo que, dia-pós-dia, façamos força equilibrar nossas insatisfações e reclamações, ainda assim somos insatisfeitos por natureza. Abraços.

  2. Nossos problemas são do tamanho do nosso mundo e esse mundo é medido pela nossa sabedoria e ignorância, generosidade e egoísmo e COMO organizamos esses sentimentos dentro de nós. Aquele cego te fez um grande.

  3. Eu acho que ninguém devia usar capa de chuva. além de cobrir os ouvidos, molha os pés. e é brega.

    Mas quanto ao fato de as pessoas sempre reclamarem demais… eu acho que cada um sabe do peso que carrega. Então ee pode parecer meio ínfimo… mas tudo depende do modo da pessoa de ver as coisas. Certa vez escrevi uma redação sobre como é muito difícil falar da pior coisa que aconteceu na sua vida, porque o nosso foco está no que está acontecendo no momento. Se alg ruim está acontecendo, nos parece a pior coisa do mundo.
    Quando a se consolar com o mal dos outros, pensando coisas como “que droga eu reclamar, não sou cego. blabalblá” ou “Eu posso estar deprimido, mas tem gente passando fome na áfrica” , acho lamentável. Mas não acredito que possamos escapar disso, sabe? é como tentar desesperadamente fazer a nossa grama ficar tão verde que até a gente a inveje.

  4. Eu acho que ninguém devia usar capa de chuva. além de cobrir os ouvidos, molha os pés. e é brega.

    Mas quanto ao fato de as pessoas sempre reclamarem demais… eu acho que cada um sabe do peso que carrega. Então ee pode parecer meio ínfimo… mas tudo depende do modo da pessoa de ver as coisas. Certa vez escrevi uma redação sobre como é muito difícil falar da pior coisa que aconteceu na sua vida, porque o nosso foco está no que está acontecendo no momento. Se alg ruim está acontecendo, nos parece a pior coisa do mundo.
    Quando a se consolar com o mal dos outros, pensando coisas como “que droga eu reclamar, não sou cego. blabalblá” ou “Eu posso estar deprimido, mas tem gente passando fome na áfrica” , acho lamentável. Mas não acredito que possamos escapar disso, sabe? é como tentar desesperadamente fazer a nossa grama ficar tão verde que até a gente a inveje.

    (Ui, acho que o comentário não foi. O.O)

  5. Como é bom ler isso. Faz bem! Certas coisas estão um tanto atreladas à nossa intimidade, ao eu, ao nosso alienado umbigo, que mal vemos além da nossa sombra. Então, singelamente, um milagre desnecessário nos ocorre, para notarmos a obviedade gritante e nos situarmos.

  6. fui procurar o que fazer de tarde em fortaleza e descobri esse texto ^^

    é legal ver que coisas importantes aconteceram a alguém aqui tão perto de casa… porque, ultimamente, nada de muito bom me acontece.

    mas não vou reclamar de barriga cheia… to só comentando :}

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