Kind of Blue

Há algo de desgraçado no jazz. Algo que faz com que ninguém o ouça impunemente, que condena aquele que o conhece a nunca mais conseguir voltar atrás, a nunca mais se contentar de verdade com menos que aquilo; algo que eleva, para sempre, os padrões pelos quais se julga a música, qualquer tipo de música, não apenas a popular.

É difícil, para aquele que ouve o trumpete de Louis Armstrong, ouvir qualquer outra música com trumpete e não exigir que seja no mínimo tão boa, que tenha a mesma qualidade dramática, a mesma síncope, o mesmo swing — em última instância, as mesmas oitavas altas e desesperadas. E isso vale também para o piano, para o trombone, para o saxofone. É no jazz que a banda de música tradicional atinge o ápice, e eleva a arte de tocar esses instrumentos à perfeição.

O jazz é a forma superior de música popular. É o que de melhor fez um século que viu a música erudita se diluir em redundâncias medíocres como as trilhas para cinema ou grandes vazios como a música experimental, e que teve como principal trilha sonora o rock e o pop, galhos menos floridos do mesmo tronco que gerou o jazz.

Kind of Blue, disco de Miles Davis, é a forma superior de jazz. Nunca mais se atingiria um ponto semelhante. Foi ali que o jazz atingiu a perfeição, em um disco com a participação de mestres como John Coltrane e Bill Evans, gravado em duas sessões e com o primeiro take sendo o que valia. Kind of Blue é um desses discos fundamentais por uma razão: é perfeito. Das notas iniciais de So What ao último alento de Flamenco Sketches, o que se tem não é a apenas a obra-prima do que chamavam jazz modal; é uma síntese de tudo o que o jazz tinha feito até aquele momento, do dixieland ao bebop: é a música popular elevada ao nível máximo, talvez mesmo ao nível da música erudita tradicional.

Embora tenham sido Louis Armstrong e Duke Ellington a dar ao jazz o status de arte, foi aquela geração — Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Miles Davis e John Coltrane, pela ordem — que o elevou ao ponto máximo da música ocidental. Uma geração ambiciosa, consistente, que explodia os limites do gênero e apontava uma infinidade de caminhos ao mesmo tempo em que solidificava, com um talento nunca mais igualado, uma tradição de 50 anos de música. Infelizmente, quase na mesma época surgiria Ornette Coleman com uma nova mudança, e a porteira seria aberta para bobagens como free jazz e fusion; mas isso não importa. Ouve Ornette Coleman quem quer e quem gosta. O importante, mesmo, é que há um disco que explica, sem sequer uma palavra, o que é o jazz, que concentra em cinco faixas cinqüenta anos do mais assombroso gênero musical que o século XX criou. E esse disco é Kind of Blue.

A Barracuda, do Freddy Bilyk, lançou no começo deste ano um livro que narra a saga desse disco: “Kind of Blue — A história da obra prima de Miles Davis“, de Ashley Kahn, conta essa história de maneira inteligente e simples. Contextualiza-o em sua época e nas trajetórias de seus músicos, sem perder tempo com fofocas e explorações sensacionalistas ou simplesmente mundanas de detalhes pouco importantes, como os problemas com drogas que praticamente todos eles enfrentaram.

Kahn mostra todo o processo de criação do álbum, explicando a razão de cada termo utilizado com clareza e simplicidade notáveis. Detalha cada sessão e explica cada música de um jeito simples mas abrangente. Explica por que o disco foi tão importante. E explora o legado de um álbum que foi recebido sem tanta euforia, mas que aos poucos se consolidou como o mais importante da história do jazz.

A importância de Miles Davis pode ser medida pelo que ele disse em um jantar na Casa Branca. Naquela ocasião, ele não mentiu. E Kind of Blue foi uma dessas revoluções. Talvez não tão importante, do ponto de vista da “inovação”, quanto Birth of Cool; mas um disco estupidamente superior.

Por explorar com simplicidade um assunto tão fascinante mas ao mesmo tempo tão complexo, “Kind of Blue” é um daqueles livros indispensáveis para quem gosta de jazz. Mas não apenas para eles: também para músicos que querem saber como pode funcionar uma sessão de gravação. É importante, também, para compositores que buscam densidade em seu processo criativo.

Há alguns anos a Gabi me convidou para escrever uma coluna sobre jazz no site da Antena 1. A resposta foi a costumeira, uma recusa, mas dessa vez não foi apenas pela falta de tempo crônica: eu sabia que jamais poderia escrever sobre jazz porque isso requer uma erudição que eu, definitivamente, não tenho. Palavras e expressões como diatônica, escala cromática, modalismo não fazem parte do meu vocabulário habitual. E ler “Kind of Blue” me deixou com a certeza de que eu estava certíssimo ao dizer não. Mas, ainda mais que isso, me deu o conforto de saber que um sujeito como Ashley Kahn pode tornar essas palavras difíceis compreensíveis até para mim.

Republicado em 07 de setembro de 2010

7 thoughts on “Kind of Blue

  1. Fiquei com muita vontade de ler esse livro depois desse texto seu. Mas há outro disco q assombrosamente me assusta: “A love supreme”, de Coltrane. Há algo de mágico naquela dissonância que apaixona. Eu não deixaria de citar tbm o clássico “A night in Tunisia” na versão ao vivo longa de Dizzy Gillespie (que existe acho q num disco chamado Winter in Lisbon). É coisa de gênio mesmo, de revolucionário – inclusive pros neurônios de quem ouve.

    Agora, discordo de “bobagens como free jazz e fusion”. Porque é claro, eu amo fusion e acho q quanto mais free, melhor. Mas isso sou eu, viajandona do jazz assumida. 😀

  2. ah, belo e justo post.

    mas, não; o ápice do jazz é A Love Supreme, do Coltrane. e como digo isso num mérito pessoal, é uma questão onde me eximo de entrar num debate contigo do qual provavelmente sairia perdendo 🙂

  3. vlw aew rafa,

    perdi meu cabaço jazzístico aqui no seu blog ehehehe

    bons toques sobre jazz, beatles and so on, ainda mais para um aspirante a pojeto de músico,
    mas esses conceitos são fáceis cara, escala diatônica, cromática, etc… vc pegaria rápido
    flw aew

  4. Esse post me fez viajar no passado onde aprendi MUITO sobre jazz e rock em uma banheira quente…saudades…

  5. Opa. Que bom que gostou tanto. Estamos aqui trabalhando no outro volume do Ashley, justamente sobre o Love Supreme. O Ashley é realmente um jornalista dedicado e generoso. Abraços.

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