Eu nunca vi nada tão bizarro, tão decadente, tão podre quanto esse velório de Michael Jackson transmitido ao vivo hoje.
Chego em casa para o almoço e Lionel Ritchie está cantando uma música na TV. Logo depois se sucedem outros artistas, outras canções — algo semelhante a uma premiação da AFI, ou mesmo ao Oscar. Apenas uma leve lembrança de que aquilo era um “memorial service“. Leve, não: entre os artistas e a platéia, o caixão vistoso de Michael Jackson era sólido, pesado, brilhante como um terno de lamê.
As mesmas pessoas que reclamam que brasileiro tem a mania horrorosa de bater palmas em enterros deveriam se horrorizar com as palmas e os assobios ouvidos. Ou com o preço dos ingressos para o evento, com as pessoas vendendo por preços altos demais os ingressos sorteados. O velório de Michael Jackson se transformou em pouco mais que um show de música pop, nada mais que isso. Passa a impressão de ser a última fronteira do desmonte da individualidade humana. Ou, no mínimo, um fim adequado a um sujeito que, vivendo praticamente toda a sua vida sob os holofotes, já há muito tempo não sabia diferenciar o público do privado.
Talvez as pessoas não vejam nada demais nessa espetacularização levada às últimas conseqüências. Eu vejo.
Eu já tinha visto outros funerais-espetáculo: o de Tancredo Neves, o de Ayrton Senna. Mas embora tenham atraído a atenção da mídia, ali rapinando a imagem pública de um ídolo até o último momento, nenhum deles foi concebido e planejado como um evento totalmente midiático, como aconteceu agora. O velório de Michael Jackson ultrapassou todos os limites de decência e do respeito ao ser humano. Não que o próprio defunto ali embalsamado provavelmente reclamasse: Jackson morreu como viveu, um objeto peculiar diante do escrutínio público, um exemplo vívido de uma nova sociedade que se define através da exposição excessiva e da destruição da própria intimidade.
A morte costuma se tornar também um processo de canonização de ídolos. Um sujeito complexo e muitas vezes detestável como John Lennon se tornou um símbolo da paz mundial. Elvis Presley se tornou um ícone absoluto apenas depois que morreu, depois de um processo de decadência de mais de 15 anos apenas interrompido em 1968 e retomado pouco depois em Las Vegas. George Harrison foi alçado à posição de alma dos Beatles — justo ele, um guitarrista apenas bom, um cantor sofrível e um compositor mediano que deu sorte duas ou três vezes –, e em novembro de 2001 tinha-se a impressão de que Lennon e McCartney não passavam de coadjuvantes diante daquele gênio.
Com Jackson não podia ser diferente. Agora ele está se transformando no maior gênio da história da música, e vai continuar assim até virem os próximos grandes mortos, Bob Dylan, Mick Jagger ou Paul McCartney. Eu ainda estou procurando essa genialidade. Dançarino fantástico, excelente cantor e eventualmente um ótimo compositor, Michael Jackson era um artista competente, sem dúvida. Entre o final dos anos 70 e começo dos 80 teve um momento de absoluto brilho, com dois discos antológicos. Mas até agora ninguém conseguiu entender e separar o que, no fim das contas, era resultado do seu talento como músico, o que era produto de sua máquina de relações públicas, e o que era decorrência de uma felicíssima e única circunstância histórica: Jackson foi o primeiro superstar da era do vídeo, em que a imagem era tão ou — principalmente no seu caso — mais importante que a música propriamente dita, e lhe dava uma dimensão maior da que ele era efetivamente capaz de ter.
Sua importância na evolução da música pop é muito menor do que agora querem me fazer crer. Berry Gordy, que deu uma canja com um discurso no velório de Michael Jackson, é sozinho muito mais influente que o defunto à sua frente, porque foi ele quem definiu o som de Detroit, o que incluía o Jackson 5, Supremes e tantos outros. O que Jackson realmente fez de importante foi ajudar a projetar aspectos da cultura negra americana para o resto do mundo. Milhares de pessoas em tantos países diferentes, que dançam inspirados nele, podem testemunhar isso. No entanto, musicalmente é um ultraje compará-lo aos Beatles e mesmo a Elvis; Michael Jackson estava no nível de uma Madonna, não mais que isso — sendo que volta e meia Madonna consegue se revalorizar, e até lança grandes álbuns como o Confessions on a Dance Floor, de 2005, algo que Jackson não fazia há um quarto de século.
Antes de mais nada, Michael Jackson era um artista decadente. Uma decadência longa, extremamente pública e agonizante: quase 30 anos de uns poucos discos medíocres, de factóides em vez de arte, décadas em que um novo passo de dança mascarava o fato de que ele não conseguia criar boa música. (Sobre o Michael Jackson artista, assino embaixo de tudo o que o Daniel Piza escreveu aqui.)
É talvez por levar em conta o seu status menor que o que lhe é concedido agora, e ter em mente a sua decadência abjeta como poucas antes — mesmo acostumado à genialidade póstuma, à comoção pela morte de um ídolo –, que o seu velório me espanta e me horroriza. Eu ainda não tinha visto nada como isso. O Doni acha que é um momento de fim de era, e Jackson seria o primeiro grande ídolo a morrer nessa época de comunicação total. O Nelson, que está esperando a turnê 2009 do velório de Michael Jackson (brilhante, Nelson), vê nisso a carnavalização da culpa — uma sociedade que expiava ali o incômodo pela pouca importância dada ao astro nos últimos 20, quase 30 anos.
Tanto o Doni quanto o Nelson têm razão, mas algo me sugere que é ainda mais que isso, embora eu não consiga entender nem descrever exatamente o que é. O mundo que vinha se delineando e parece tomar forma definitiva nesse velório é assustador, doente, irreconhecível. O mundo sempre foi um circo, se você soubesse para onde olhar, mas agora é um circo dos horrores. Ainda pior, é onipresente. E isso assusta mais que o rosto deformado de um pedófilo decadente auto-intitulado gênio pairando fantasmagoricamente sobre o seu caixão, enquanto pessoas que pagaram milhares de dólares para ver o seu funeral deliram como numa arena qualquer, diante de uma banda pop vagabunda.