De livros novos e livros velhos

Li com atenção o post do Alex sobre o Kindle. Cheguei à conclusão de que até que poderia me adaptar àquele trequinho com cara de lousa mágica sem problemas. Me orgulho de mim mesmo por estar tão moderno, por conseguir ver nele todas as vantagens que apregoam, como a portabilidade, a praticidade, isso e aquilo. Cáspite. Quem diria.

Mas eu gosto mesmo é de livro, essa coisa anacrônica e superada de papel e tinta e papelão.

É talvez um problema de geração; eu faço parte da última que cresceu sem alternativas consistentes ao livro. Esses eram os objetos em que se adquiria conhecimento sólido, de verdade, uma coisa superior à informação efêmera e circunstancial de revistas, TV ou rádio; talvez essa veneração do livro se devesse em pequena parte ao fato de eu viver em um país de analfabetos, não sei. O que eu sei é que mesmo algumas décadas antes, quando os grandes romances eram publicados primeiro como folhetins em jornais — por gente boa como Machado de Assis e Balzac –, era no livro que a obra alcançava sua realização plena. O objeto tem um simbolismo muito maior que o conhecimento que ele encerra.

A aquisição de informação não é o único prazer que um livro oferece. Há um completamente diferente e independente: o prazer de tocar, de sentir e de ter.

Como eu já disse aqui antes, gosto de saber que tenho uma primeira edição disso e daquilo. Valor objetivo? Quase nenhum. Na verdade, absolutamente nenhum: não é algo que esteja à venda. É algo meio intangível, na verdade, porque são coisas que compro barato e que são retiradas de mercado. A graça nesses livros é justamente o fato eu tê-los; isso não é exatamente bom capitalismo. Gosto também de ter uma edição bem cuidada de algum livro; e para quem quer entender um pouco dessa relação que se cria com um amontoado de folhas de papel eu recomendaria um livrinho bobo, um policial de John Dunning chamado “Impressões e Provas” que explica direito a loucura a que se pode chegar por causa desses gostos estranhos. Meu caso, felizmente, é muito menos grave.

Mas ainda assim é um caso razoavelmente sério. Dia desses, depois de ler o último livro de Rubem Fonseca, “O Seminarista” — um dos pontos baixos em sua carreira, ruim como poucos outros, pior até que “O Doente Molière” e sobre o qual me abstenho de fazer comentário, em nome de um certo pudor e uma gratidão e admiração profundas aos bons livros de Rubem Fonseca –, parei para olhar a capa e a tipologia usada. Ele mudou de editora, foi para a Agir depois de mais de 20 anos na Companhia das Letras. Pelo que pude ver, está reeditando todos os seus livros, como fez na editora antiga.

As novas capas são feias, são medíocres e uniformes. Me fizeram ter saudade das capas de Helio de Almeida na editora anterior, um artista brilhante capaz de belezuras como as de “Lucia McCartney”, “A Coleira do Cão” e “Romance Negro”.

E tem a tipologia. Se a Garamond Light dos livros de Fonseca na Companhia das Letras já estava cansando, e os tempos e o computador estão dando oportunidade a uma espécie de renascimento tipográfico, ainda é um tipo de elegância suprema e imbatível. O novo tipo usado em “O Seminarista”, Minion Pro, é adequado e eficiente, mas é apenas mais um, como as Fairfield e Electra que estão na moda; não tem a graça leve da antiga.

É esse tipo de coisa isso que e-books e e-readers como o Kindle não me oferecem, essas dimensões a mais, ainda que supérfluas. Não é nada fundamental ou imprescindível. Mas eu sempre acreditei que a medida do humano é o supérfluo, que é o desnecessário que faz a cereja no bolo da vida.

Um bom livro lhe dá o prazer da leitura, e satisfaz o seu tato, o seu olfato — e-books não envelhecem, não é? Você não vai sentindo o cheiro mudar com o tempo, não sente o e-book adquirindo aos poucos o cheiro do resto de seus livros. E é uma maravilha, uma dessas dignas de aparecer nos programas da Discovery ou da National Geographic, que eles ainda por cima sirvam para transmitir conhecimento.

19 thoughts on “De livros novos e livros velhos

  1. e-books não envelhecem, mas e-readers sim?

    “meu primeiro kindle, que ainda uso às vezes, nostálgico, quando quero ler algo lá dos idos de 2010… o botão principal já meio afundado, as teclas com a impressão gasta, o lcd enfraquecido, a bateria que só dura uma hora…”

    não que eu ache melhor que livro 🙂 somos todos colecionadores do nosso zeitgeist pessoal. o que eu me pergunto é se estamos vivendo as últimas gerações dos que tem fetiche pelo livro impresso (eu também tenho :)). não que ele vá desaparecer — queimem todas as bibliotecas, gritarão? –, mas se irá tornar-se objeto de museu, visitado com a mesma frequencia, reverencia e excentricidade.

    um bom uso pra esses leitores seria no ensino público, talvez? mandar produzir uma versão basicíssima a 2 dólares na China (se é que já não tem) e eliminar a barafunda dos livros didáticos? certamente é mais fácil e viável que a ideia do OLPC (One Laptop Per Child).

  2. Me dá vertigem até mesmo pensar que, num futuro provavelmente próximo, pode ser que eu tenha de ler numa fria e padronizada tela de qualquer coisa.

    Compartilho do fetichismo por livros. Tentarei nunca largá-lo.

  3. O Sérgio Rodrigues, do Todo Prosa, fez um post bem sarcástico sobre os fetichistas do “cheiro do livro”…

    Provavelmente comprarei um Kindle algum dia, mas a minha opinião é que, se ele não existisse, não faria falta, nem seria imaginado pelos escritores de ficção científica do passado (o que é o mais paradigmático que temos sobre “tecnologias que precisamos”).

    Como disse esse texto maravilhoso do Millôr, o livro já é o suporte perfeito.

    (“texto maravilhoso” é um link; tenho que avisar, porque percebi que o seu template não sublinha automaticamente)

    • “Kindle algum dia, mas a minha opinião é que, se ele não existisse, não faria falta, nem seria imaginado pelos escritores de ficção científica do passado.”

      Não éextamete a mesma coisa, mas o roteiristas de Jornada nas Estrelas, a Nova Geração introduziram nos anos 80, o PADD, que lembra muito um tablet ou Kindle avant la lettre.

      • Na verdade já havia algo semelhante (embora talvez fosse mais adequado falar em “prancheta eletrônica”) na série original. Percebi isso há pouco, e fiquei impressionado.

  4. Instado por um repórter a dar um conselho aos jovens, Nelson Rodrigues disse: “Envelheçam.”

    Sábias palavras … A pátina do tempo dá a medida certa das coisas.

    E se essa engenhoca ainda não transmite o cheiro das velhas páginas, permite-nos ao menos apreciar as marcas da passagem do tempo tirando-lhe a alvura, comendo-lhe as bordas , esmaecendo o negrume da tinta.

    Refiro-me às velhas páginas do diário de Jean-Christof Zamenhof publicadas em http://www.heliojesuino.wordpress.com que nós da F&b CASA EDITORIAL pretendemos publicar em breve.

    Parabéns pelo Blog, Sr. Rafael, muito interssante.

  5. Rafael:

    Eu não sei e é o pior, mas um péssimo livro do Rubens Fonseca e A Grande Arte. Eu o assisti depois de ter visto o filme do Valter Salles, que por incrível que pareça, pelo fato ter o roteiro enxugado pelo diretor, em relação ao livro, ficou muito melhor que o próprio livro. Eu sei que é raro um filme ser melhor que o livro, mas, neste caso, aconteceu.

    Estou falando isso porque, assim como você, também adoro livros e livros, mesmo que ruins, ainda são bons companheiros: apesar que, as vezes, indigestos, como o citado acima.

  6. Bem, se não houvesse computador, celulares, mp3, mp4 etc os formatos anteriores seriam os suportes perfeitos.
    As câmeras digitais, por exemplo, me tiraram da bolsa um grande peso. Antes eu viajava com kilos de filmes, e depois o trabalho todo de revelação e impressão ( esqueci o termo exato) era um saco. Eu não tenho saudades das fotos em papel.
    Às vezes eu pego e vejo algumas fotos amareladas de um passado não tão distante que me enchem de saudades, mas o sentimento é o mesmo quando vejo na tela de um computador recordações digitais de minhas últimas viajens.
    Aquela cor amarelada não significa nada para mim. A noção do tempo ido, distante, não depende do suporte, não dependem das orelhas retorcidas de uma foto em papel. O curioso é que pelas minhas contas , eu pertenço a uma geração anterior à sua Rafael. Isso não é uma crítica é apenas uma constatação.
    Eu tenho algumas primeiras edições, como por exemplo, a de um livro de Eça de Queiros, e um outro de Augusto dos Anjos, mas específicamente o “EU”, e que estão perdidos aqui na minha biblioteca. Não acho nem a pau.
    Eu também li atento o post no LLL sobre o kindle. E vou comprar um , sem dúvida.
    Uma técnica antiga que alguns povos sem pátria utilizavam para manter o patrimônio era comprar pedras preciosas. Se precisassem sair rapidamente de um lugar era só pegar as pedrinhas, o patrimônio, e dar o fora. Para mim a lógica é a mesma; A facilidade e agilidade da compactação.
    Penso que o diamante é o antecessor dos processos modernos digitais de compactação eheheh.
    A ‘fortuna’ deve caber no bolsos.
    É por isso que eu quero um kindle. Ir para qualquer lugar e carregar comigo um monte de livros compactados, e o que é melhor, sem cheiro, e acima de tudo sem peso.
    Eu sou alérgico e toda vez que revisito um livro antigo é decorrente os espirros. A cada página um espiro.
    Eu não me importaria com a ‘tela fria’ do kindle, muito menos com a padronização, Pois também não me incomoda a padronização representada pelo formato clássico do livro, como não me incomoda o meio padronizado que utilizo para escrever este comentário eheheh.
    Eu acho meio sinistro ouvir as opiniões do Millôr como parâmetro sobre o que é um livro. Se eu me apoiasse em alguém, eu ouviria, por exemplo, a opinião de Antonio Candido, ou de Oswald De Andrade. Mas como um não se pronunciou e o outro está morto eu vou comprar um kindle eheheh.
    Quanto as capas eu concordo, mas essa coisa de tipologia, na boa, é coisa de viado eheheh!
    Bricadeiras à parte, eu desejo um grande ano pra vc Rafael, tudo de bom para você.

  7. Fetiche? Se há algum condenável, é dos que se encantam com brinquedo novo. Colega de fetiche seu, caro rafael (só deste fetiche, bem entendido), acho que ele é só a noção inconsciente da superioridade tecnológica do ivro, em certos aspectos. O Kindle tem a vantagem de permitir buscas de palavras, por exemplo. E de abrigar milhraes de livros num só objeto 9enquanto esse objeto não começa a sofrer a deterioração acelerada de toda traquitana eletrônica) Mas para quem não se convence, sugiro o teste que propus lá no Digestivo Cultural:

    1)Pegue um Kindle onde você baixou o Dom Quixote e uma versão de papel do mesmo livro.
    2) Mergulhe rapidamente os dois numa piscina, ou na beira da praia.
    3) deixe secar com cuidado.
    4) Deixe-os cair de cima de uma mesa de altura média, sobre um piso de pedra.
    5) Sem se deixar levar pelos feticihismos do cheiro, da textura, essas babaquices, tente ler o texto e podemos conversar sobre a inevitabilidade da extinção do livro de papel.

  8. Sleo,
    se a intenção é provar a longetividade do livro, substitua a água pelo fogo.
    De outro modo, eu fico com as sandálias havaianas eheheh

  9. Repito o que eu já vi escrevi: até poucos anos atrás era a mesma discussão com relação ao MP3. E assim como os primeiros Mp3players eram muito ruins, os e-readers não devem ser avaliados pelo que são hoje. Com relação ao teste, olha, a maioria desses trecos eletronicos tem boa portabilidade. Dá para colocar no bolso ou na bolsa. Livro estraga fácil nesses lugares.

    E administrar uma biblioteca é uma tarefa tão trabalhosa que bibliófilo de verdade(Não gente tarada por papel) vê possibilidades gigantes num aparelho destes.

  10. alguém já disse, referindo-se a algumas das vantagens do livro sobre os novos dispositivos de leitura, para jogar um livro e um kindle do sétimo andar. o livro continuará legível. como gosto de ler na cama, um incômodo é livro pesado – como um calhamaço de 700 páginas do richard dawkins que estou lendo agora, “evolução”. acho que já deveriam ter inventado há mto tempo uma traquitana para facilitar a leitura por parte de gente preguiçosa como eu. algo no mesmo nível de eficiência das traquitanas usadas pelo personagem de um antigo filme, incapaz de se alimentar fora da cama, e que se utilizava de umas cordinhas para fazer sua comida descer e subir enquanto permanecia refestelado. em vez de nacos de carne, de queijo ou de pão, eu preferiria que as cordinhas fizessem descer sobre minha cama, pairando no ar sobre um suporte, os livros que estivesse lendo. apesar de ser um mecanismo primitivo, fala mais à minha sensibilidade de homem das cavernas livrescas do que o kindle.

  11. Como diz o LLL, o Kindle tem várias utilidades e alguns de seus defeitos serão superados em breve. Olho para minha estante forrada de livros e vejo que todos eles no futuro caberão em algo do tamanho da capa de um deles.

    Só sei que Walter Benjamin estaria ainda mais desolado e não posso deixar de concordar com ele. Cada livro tem sua identidade, sua forma de exibir seu conteúdo e até eventuais erros de impressão tornam-se parte de sua constituição. Dizer que isso não importa é utilitarismo demais para mim.

    Uma amiga minha, durante sua adolescência, colocou uma pequena rosa em uma página de um livro de Álvares de Azevedo. Pueril? Sem dúvida. Simbólico e significativo? Com certeza.

  12. Teste concluído, joguei um livro na piscina!
    Esperei alguns minutos retirei e deixei secar, e confesso, não sobrou muita coisa.
    O livro se desfez!!!.
    Ainda não secou totalmente, mas creio que não conseguirei ler.
    Os blocos de páginas se separam e saíram da ordem. Eu sempre desconfiei dessas colas antiquadas com as quais se colam os livros.
    Só um detalhe, eu usei no teste o livro do Alan Dershowitz ‘ em defesa de israel’- que o pedro doria sugeriu para um debate com o Idelber, debate que não houve-, porque não sou maluco, é claro, de fazer isso com Cervantes.
    O resultado até que ficou criativo, parece a proposta de ‘Rayuela’ do Cortázar, na qual você pode ler em qualquer sequência que não alteraria o conteúdo eheheh.
    As folhas enrolaram todas. O livro que tinha umas 300 páginas parece ter 5000 e picos. O que dificulta um pouco a leitura.
    Eu sei, o livro em questão não ajuda, mas constatei algo que deve valer para tudo que é livro;
    O cloro ataca principalmente as cores, e a capa de ’em defesa de israel’ ficou severamente desbotada, e como preto também é cor, as letras também estão quase apagadas, sem consistência.
    Mas se você for um leitor decidido e nonsense, com algum esforço ainda dá pra ler as páginas avulsas. Mesmo que sem qualquer sentido.
    Do ponto de vista do volume, o ‘livro’ em questão se dissolveu, é só um amontoado de folhas de papel.
    Enfim, o ‘livro’ não passou no teste da piscina.
    Recebi uma multa por sujar a piscina mas confesso que valeu. Foi divertido.

    Obs.; 2×2 🙂

  13. fm, no seu caso, a julgar pela maneira como interpretou minha sugestão, acho que o melhor é o Kindle mesmo. mas evite manuseá-lo diretamente, peça para o enfermeiro fazer isso para você.

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