Tudo bem, Robin Hood é uma lenda, e com uma lenda pode-se tomar as liberdades que quiser.
Mas não é uma lenda qualquer. E não apenas por ter quase mil anos. Junto à do rei Arthur, é uma das lendas fundadoras da identidade inglesa. Enquanto aquela diz respeito aos nobilíssimos ideais nacionais, a lenda de Robin Hood é, de certa forma, a visão que o povo inglês tem de si mesmo: rebelde, bravo, debochado, justo. Na Wikipedia se pode achar um bom resumo da confusão que se faz em tentar definir uma origem clara para a lend, mas isso importa pouco. A existência histórica de Robin Hood chega a ser desnecessária: o que importa realmente é que nele o povo inglês pintou um retrato excelente de si mesmo, ou ao menos do que gostaria de ser.
A idéia do sujeito ousado que rouba dos ricos para dar aos pobres é a sua verdadeira razão de ser. Sua versão consolidada, a que chegou até os dias de hoje (recontada, entre outros, por Monteiro Lobato), reza que o jovem Robert Fitzhood, tendo seus direitos usurpados pelo xerife de Nottingham durante a regência do príncipe que mais tarde seria o rei João Sem Terra, junta-se a um grupo de foras da lei na floresta de Sherwood, torna-se seu líder incontestável e se dedica a caçar cervos que são propriedade do rei, roubar dos ricos que passam por ali para distribuir entre os pobres oprimidos, e desafiar e insultar seus grandes inimigos, o xerife e o bispo de Nottingham — ou seja, o Estado e a Igreja —, com bom humor, ousadia e inconsequência. Se apaixona por uma jovem dama chamada Marian, e quando o rei Ricardo Coração de Leão volta das cruzadas, o perdoa. Mais tarde irá morrer nas mãos de uma freira, filha do próprio xerife, mas isso é praticamente outra história.
Essa é uma lenda que demorou mais de 500 anos para ser criada. “Robin Hood”, o novo filme de Ridley Scott com Russell Crowe, Cate Blanchett e John Hurt, joga tudo isso no lixo, e o resultado é uma mixórdia medíocre e confusa. Em duas horas, Ridley Scott consegue destruir uma lenda secular por pura e simples incompetência.
Do ponto de vista cinematográfico não há muito que se falar de “Robin Hood”. Não há nada nele que o distinga da super-produção média de Hollywood. É mais do mesmo, filme igual a tantos outros pseudo-épicos que vieram às telas nos últimos anos. Alguns críticos o compararam a “Gladiador”, do mesmo diretor e com o mesmo ator principal; mas as referências mais sólidas do filme estão estão em filmes mais recentes e que abordam a mesma Idade Média, como “Cruzada”, também de Scott, e “Rei Arthur”. Esteticamente, são praticamente o mesmo filme. É quase como se fossem feitos pela mesma equipe: diretor, roteirista, diretor de fotografia e diretor de arte.
A confusão histórica criada pelo enredo desafia qualquer tentativa de compreensão, a começar pela representação simplista, esquemática e falsa das relações entre França e Inglaterra. Que ninguém tente entender a história da Velha Albion naqueles anos dos Plantageneta através deste “Robin Hood”, porque tudo o que se vê ali é, virtualmente, imaginação do roteirista. Essa barafunda tem reflexos também na construção dramática do filme. Uma das cenas mais comentadas, a tentativa de invasão francesa, é alegadamente uma referência à invasão da Normandia como retratada em “O Resgate do Soldado Ryan”, de Spielberg. Mas mas ao ver aquelas barcaças movidas a remo, e sem o brilho de edição e sonoplastia que fizeram da cena dirigida por Spielberg uma das mais impactantes da história do cinema, a imagem que vem à lembrança é a dos Flintstones e suas paródias da tecnologia moderna. (E um detalhe bobo: qual almirante tentaria a invasão de um país por uma praia cercada de falésias e com uma única saída, como a do filme? É praticamente suicídio, mas em nome do visual grandioso Ridley Scott é capaz de qualquer coisa.)
A atuação de Russel Crowe é catastrófica. Se a versão de Michael Curtiz, de 1938, trazia um Errol Flynn elegante, irônico e alegre, Crowe faz um Robin Hood tão chato quanto Kevin Costner quase vinte anos atrás; mas enquanto Costner tinha também uma cara inamovível de banana, Crowe agrega ao seu uma ferocidade trazida diretamente dos seus tempos como gladiador no Coliseu romano. Se a lenda fosse respeitada, em vez de encarnar o protagonista Crowe poderia fazer Guy de Gisborne, um de seus antagonistas. Seria mais adequado. Porque Robin Hood é, acima de tudo, um boa-vida. E seu grupo, “vestido no verde pano de Lincoln”, era conhecido como “Robin Hood and his Merry Men”.
Mas o trabalho canastríssimo de Crowe não é o principal problema de “Robin Hood”. O que assusta, mesmo, é a capacidade impressionante de Ridley Scott para destruir a essência de uma lenda fantástica.
Agora Robin Hood é Robin Longstride, arqueiro de Ricardo Coração de Leão que deserta depois de castigado. A demagogia populista contemporânea tira do homem que um dia foi Robert de Locksley a sua nobreza hereditária — o que em tese o aproxima mais de suas eventuais raízes reais: historicamente, o mais provável é que a sua origem seja algum Robert que não passaria de um yeoman. Em algum momento deu-se a ele um título de nobreza que lhe teria sido usurpado; e disso nunca se conseguiu passar.
Mas a tradição de nobilitação de Robin Hood é antiga demais para que se consiga sair dela. E mais uma vez tenta-se dar uma origem nobre, de alguma forma, ao personagem. Ridley Scott vai mais longe do que alguém já sonhou, e agora, além de guerreiro experimentado no Oriente com um certo de tipo de ligação real, Robin Hood é filho do homem que, nem mais nem menos, escreveu a Carta Magna de João Sem Terra, o documento precursor da democracia moderna.
Se era para esculhambar dessa forma, poderiam ter dito que Robin Hood era Artur da Bretanha, o sobrinho em que o Rei João deu um sumiço jamais explicado. Seria mais decente, mais nobre e historicamente mais acurado.
Como se não bastasse, a própria razão de ser de Robin Hood — o homem que tomava a justiça em suas mãos, roubava dos ricos e dava aos pobres — é virtualmente eliminada. De acordo com Scott, Robin Hood é um sujeito que ajuda os barões em sua busca de consolidação do feudalismo, em vez de roubá-los. O único roubo de Robin Longstride (sem contar o saque de alguns mortos, algo perdoável porque o Inferno não cobra entrada) é para beneficiar a sua amada da pequena nobreza rural.
Scott conseguiu criar um Robin Hood que trabalha dignamente para a os ricos, e não é fácil imaginar um destino mais indigno para o pobre sujeito.
Tudo bem que o filme é repleto daqueles clichês que infelizmente já podem ser tomados como indissociáveis da grande produção cinematográfica comercial. Há inclusive os clichês políticos, seja no sentido de integrar os celtas à Inglaterra (João Pequeno é retratado como escocês, enquanto outro do grupo é referido como irlandês), seja no de utilizar os franceses como referência negativa maior, numa manipulação de emoções que atende mais ao doutrinamento ideológico (no caso, pró-objetivista) que dá o tom do atual confronto geopolítico, no qual se busca sublinhar a virtude anglo-saxã (britânica e estadunidense) em contraste com a malícia ou tolice da Velha Europa Continental.
Reconheço que tais vícios são enjoativos, mas confesso que ficaria surpreso se não os encontrasse em uma megaprodução da atualidade, cuja formatação é ditada no âmbito da produção. Apesar de tais coisas, não achei o filme tão ruim ou desastroso como o entendeu o autor da resenha. Na verdade, o mesmo não se propõe a ser uma estória acabada, mas sim início de trilogia, ou, no mínimo, há de ter ao menos uma sequência, na qual o protagonista viverá as aventuras que lhe são tradicionalmente atribuídas. Resumindo, daria para apelidar o filme de “Robin Hood – A Origem” ou coisa que o valha.
Muito me surpreendeu a boa qualidade deste blog, que fiquei feliz de descobrir, mas penso que, se quisermos nos divertir, não podemos esperar demais das produções cinematográficas. Não nos esqueçamos que as mesmas também possuem uma dimensão que seus produtores jamais negligenciariam, em vista do mais elementar pragmatismo, que é a de instrumentos de semeadura de paixões nos corações e mentes das massas globais. O negócio é fazer como um dia postulou Marta Suplicy: relaxar e gozar.
Rafael, parabéns por sua página “sobre o autor” – uma obra-de-arte cômica.
Impagável.
Na minha escala de interesse, este filme estava em ‘Ver no Telecine no ano que vem’.
Depois desta crítica, passou para “Dar uma olhada quando estiver passando dublado no TNT”.
Achei bastante pedante os seus comentários, tendo em vista que fazer cinema não é o mesmo que escrever um tratado de História Geral. Há que ter liberdade para criar personagens e enredo ficticios. Creio que o diretor não pretendeu jamais fazer um filme de precisão histórica. Até porque 1000 anos se passaram… Fatos ocorridos recentemente ainda assim suscitam interpretações as mais estapafurdias. O filme, como entretenimento, é muito superior à média do que temos visto.
Agora, criticar é muito fácil. Mais dificil é planejar, produzir e dirigir um filme. Quando leio uma critica como a sua, acho que tem todo o direito de destilar seu mau humor. Da mesma forma, também tenho o direito de achar que você procura notoriedade ao fazer uma critica gratuita. Com todo o respeito, essa é minha opinião. Por fim, gostei muito do filme.
Eu já tinha lido algo sobre o filme e estava completamente inclinado a evitá-lo. Agora, então…
Poderia ser uma obra de arte, mas definitivamente, não se deve mexer com lendas nesse ponto de não a reconhecermos, seja a intenção deste filme passar como um prequel ou não! Que chamem o filme de ‘Maximus, o Rei da Floresta’, então!
Sensação parecida tive quando li o livro do Jô Soares com o Sherlock Holmes como personagem. Por mais genial que o livre tenha sido para alguns, fã do personagem como eu sou, não desceu bem. Depois disso, prometi a mim mesmo que evitaria, sempre que pudesse, uma deturpação como essa!
Mas em prol do Jô Soares, pleo menos, tenho que admitir que ele não se levava a sério quando fez o livro. Já o sr. Scott…
Celso,
Deixa ver se eu entendi: porque eu não concordo com a sua opinião medíocre sobre um filme mediano, eu sou pedante?
É, eu sou.
Não, meu caro Rafael. Eu não disse que você é pedante e sim os seus comentários. Peço não confundir a pessoa com as suas opiniões. Como disse Voltaire, “posso não concordar com suas palavras, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las”. Do seu ponto de vista, creio que a sétima arte deve ser a última, pois 99,99% dos filmes produzidos não resistiriam à sua critica, é ou não é? Um abraço.
Celso.
Tá voando flecha pra todo lado, hein? rs
mas é pior que 2012?
esse sim é pra esquecer …..
fiquemos então com a versão de mel brooks, não? que, ao menos com manjados clichês,ainda assim faz-nos rir
abrasssssssss
ps: pedante!
aliás, o que de bom se anda fazendo em hollywood ultimamente, além dos sitcons?
Cara, tu não és pedante… és muiiito pedante. E é brabo um cara ser medíocre como qualquer mortal e se imaginar o último biscoito do pacote. O filme é um baita épico. Recomendo a todos.
Rafael, num tempo em que até vampiro de cinema não só toma um solzinho como também reluz feito Clóvis Bornay em baile de carnaval, não duvido mais de nada. Ainda vem muito mais lenda a ser desfigurada por aí. James Bond virou um brutamontes; Sherlock Holmes e Watson (!!!), se tornaram lutadores tão exímios quanto Neo e Morpheus; Guinevère, além de morena, tornou-se arqueira, guerreira; em breve teremos Fabio Assunção no papel de Macunaíma?