Eu não tenho nenhuma dúvida de que a maior surpresa cinematográfica que poderia ter em 2016 foi “Chatô — o Rei do Brasil”, o filme-odisseia de Guilherme Fontes que demorou 20 anos para ficar pronto.
A trajetória peripatética de “Chatô” é tão longa que é fácil perder de vista a sequência dos acontecimentos, e fazê-la maior que o próprio filme. Para que se tenha uma ideia do que aconteceu, pode-se ler a entrevista que Guilherme Fontes deu à revista Trip no ano passado, no início do processo de finalização e divulgação do filme, em que conta a sua versão dos fatos. Ali parece estar um bom resumo desses 20 anos.
Ao que tudo indica, a entrevista à Trip deveria servir para, além de preparar o terreno para o lançamento do filme, limpar a imagem de Fontes; mas a mim, pelo menos, o cineasta passou a impressão de um megalomaníaco inveterado e de um sujeito que torce a verdade de acordo com uma visão toda própria do mundo. A todos nós que já tínhamos esquecido dessa história, a entrevista serviu também para reacender os medos sobre a qualidade artística do filme.
Um trailer semi-acabado e divulgado no início do ano passado aumentou o pessimismo. Era muito, muito ruim. “Chatô” parecia, ali, reeditar todos os defeitos e vícios do cinema nacional: a alegoria inconsequente, a chacota patropi, a caricatura do personagem principal. Eu estava entre os que tinham certeza de que o filme seria uma grande, monumental tragédia.
Por isso a surpresa ao assistir “Chatô”, que depois de um lançamento modesto em algumas praças foi vendido rapidamente para a Netflix, no que parece ter sido um movimento acertado. Porque o filme que eu esperava que fosse uma tragédia medíocre é decente, digno, quase bom.
Em um aspecto, ao menos, ele está um ponto acima da média do cinema nacional atual: tem uma ambição estética que falta a grande parte dos filmes que chegam ao circuito comercial. Está longe, felizmente, da estética de novela das 8 de parte significativa da produção atual; mas recorre a fórmulas antigas e batidas como o julgamento do moribundo, usa a chanchada como principal referencial estético, repetindo algumas dezenas de filmes antes dele, e de certa forma está firmemente ancorado nos anos 70, com os quais parece compartilhar uma visão niilista e elitista de um Brasil simultaneamente incurável e exuberante.
Mas o recurso da alegoria, que no trailer me pareceu temerária, salvou “Chatô” do destino medíocre de “Mauá, o Imperador e o Rei”, de Sergio Rezende, que ao tentar contar uma biografia vasta de maneira linear acabou se resumindo a uma costura rasa e mal feita de episódios esparsos. Deu consistência à obra. Ainda que não seja excelente, “Chatô” é cinema, e um filme digno. Tem uma unidade que seria difícil de conseguir de outra forma; e certamente é bem melhor que a maior parte das comédias de costumes que a Globo Filmes emplaca nos Cinemarks da vida.
Infelizmente o filme tem defeitos demais para que seja aclamado como a obra-prima que seus autores apregoam. O principal deles está na abordagem do seu protagonista. O Assis Chateaubriand que resulta da alegoria é unidimensional, pouco mais que uma caricatura, ainda que macunaímica. É impossível compreender a grandeza não apenas do personagem, mas do seu papel histórico em um momento de consolidação de um projeto de nação. Não são apenas as relações entre imprensa e poder que nos são apresentadas de maneira rasteira. A TV Tupi acaba sendo introduzida como pouco mais que uma arapuca para tomar dinheiro de anunciantes; vemos a epopeia da fundação do MASP como basicamente um leilão para satisfazer o ego de Chatô.
Esse é o grande problema do filme: somos apresentados não a Assis Chateaubriand, mas a um reflexo insuficiente e distorcido dele. Este filme não lida com sutilezas; e alguém que não conheça a sua história talvez desligue a TV se perguntando como diabos aquele sujeito ficou tão famoso e poderoso. “Chatô” não oferece essas respostas.
Talvez isso se deva ao fato de que a visão da política brasileira apresentada ali é pueril, simplória, e acaba refletindo um pouco aquela coisa já cansada do país vira-lata. Ao filme falta a necessária densidade de pensamento para compreender o papel de Chateaubriand na história do país. Talvez seja também por isso o recurso à farsa, o equivalente cinematográfico à pizza política; se não dá para explicar, vamos fazer uma piada. O resultado não é exatamente ruim; mas define bem os limites a que o filme pode chegar.
Apesar do sotaque, Marco Ricca está muito bom como Assis Chateaubriand — e um roteiro mais denso poderia extrair dele uma atuação excelente (o mesmo, curiosamente, não pode ser dito dos atores que falam um inglês tosco).
No fim das contas, “Chatô” cumpre duas grandes missões. A primeira é dar, com dignidade, um fim à maior novela de produção da história do cinema brasileiro; não é à toa que Fontes vem falando em fazer um novo filme, agora sobre as aventuras dessa produção. A segunda é deixar o espectador que se interessa pela história com um gostinho de quero mais. Mas não será o cinema a dar essa resposta.
No final dos anos 90, a TV ainda não havia passado pela revolução criativa trazida pelas séries dos canais por assinatura americanos. Um filme de cerca de duas horas talvez parecesse, portanto, a única forma de contar com alguma qualidade as aventuras e desventuras de Assis Chateaubriand contadas por Fernando Morais. Hoje, a TV é o meio mais adequado para narrar essa história.
Rafael:
Eu assisti o filme maldito do Guilherme Fontes, Chatô – O Rei do Brasil. Eu também li a fabulosa biografia do Assis Chateaubriand, escrita pelo Fernando Morais e sempre achei que fazer um filme daquele livro, com aquele personagem, era coisa pra Francis Ford Copolla, então e minha expectativa com o filme do Guilherme Fontes era a pior possível, até por conta dos escândalos e do atraso da esteia, 20 anos. Agora o que vou te falar você não vai acreditar: não só achei o filme do Fontes bom, mas ainda por cima é bem fiel ao livro, na medida que um filme de menos de duas horas pode ser fiel a um livro de mais de 800 páginas; além de ser criativo ao contar a história utilizando um delírio de um moribundo e se aproveitando deste clima onírico para criar licenças poéticas e faz isso sem nunca perder os acontecimentos históricos, as vezes só os mudando de lugar como no caso da ameaça da faca com o Presidente Getúlio Vargas.
Eis a história da faca: no filme o Chateaubriand ameaça se matar com uma faca para conseguir uma lei que lhe de a guarda do sua filha caçula, a lei Terezoca, lei essa que ele realmente conseguiu com o Getúlio, mas de outra forma menos dramática. Na verdade o Assis Chateaubriand ameaçou se matar com uma faca no gabinete do Presidente Juscelino Kubitschek, para que o Juscelino forçasse o estado para que assumisse uma divida do acervo do Masp para que esse não tivesse que ser devolvido para a Europa por falta da última parcela do pagamento. O Juscelino sabia que o Chatô era doido, cedeu. Do jeito que aparece no filme fica muito egoísta, mas na verdade foi até um ato de benemerência do Chatô, tanto que ele com a faca apontada para o peito, disse ao Juscelino Kubitschek “eu poderia vender o acervo todo, pagar esse pequena parcela que falta e ficar rico, mas eu não quero dinheiro, eu quero que esse acervo fique como patrimônio artístico para ao Brasil”. Disso resultou o Masp da Av. Paulista em São Paulo.
Os atores do Chatô O Rei do Brasil dão um show a parte, tanto o Marco Ricca que faz um Chatô cheio de nuances de loucura e fúria e fragilidades: não da nem pra acreditar que ele consegue fazer aquilo já que se tentasse imitar uma personalidade histriônica como a do Chatô seria como imitar o Elvis, difícil não cair na caricatura; a Andrea Beltrão faz a Vivi Sampaio que representa as mulheres mais avançadas da época; no geral todos os outros atores estão muito bem. Não vou nem falar como em termos de corrupção e canalhices políticas o filme que se passa nas décadas de 30/40/50 e 60 esta atualizado com o que ocorre nos dias de hoje no Brasil.
Eu só não sei se ficou melhor pra mim porque eu li bem o livro e conheço a perfeitamente a história.
É isso, não é um épico maravilhoso como certamente o livro propiciaria, mas não é ruim, ao contrario, tem muitas qualidades.