Eu sabia que não ia resistir quando vi o anúncio do relançamento do Manual do Escoteiro Mirim pela Abril, no ano passado. Sabia que ia comprar, porque esse foi um daqueles livros inesquecíveis da infância.
Em primeiro lugar um choque: descobri que minha vida era uma fraude, sempre foi uma fraude, eu vivi os últimos 40 anos numa grande ilusão. O Manual do Escoteiro Mirim que tive era a terceira edição, disso eu sempre soube; o que não sabia é que, para a Abril, uma nova edição significa relançar coisa velha mas mutilada, com várias páginas a menos. O manual relançado agora, em capa dura e papel reciclado (o meu era uma brochura com capa em couchê casca de ovo), tinha mais matérias que o que li e reli até que suas páginas se desfizessem. Ainda pior que algumas das matérias omitidas dissessem respeito ao mar, à navegação e a piratas.
Aquela foi a primeira vez que a editora Abril, aquela que mais tarde ajudaria a destruir o jornalismo brasileiro com uma certa revista semanal de informação que ela alega ser a quarta maior do mundo, passou a perna em mim. Passaria mais vezes depois, mas eu sou mulher de malandro, não tenho vergonha na cara. E como toda mulher de malandro, esperando Madalena voltar do mar, nem espero ela chorar o meu perdão, vou esquentar seu prato e abro meus braços para ela.
Por isso eu rezo em segredo para que, quando relançarem o Manual do Zé Carioca, que seja a 2ª edição, editada em 1978 para aproveitar a Copa da Argentina. Foi essa a que tive. E, sinceramente, não preciso descobrir agora, depois de velho e com o fígado bambeando, que o manual original de 74 tinha mais matérias do que as que li.
Além disso, são fac-símiles ma non troppo. As lombadas, que eram abauladas, agora são retas, e o papel (com exceção do papel agora reciclado do Manual do Escoteiro Mirim, um desdobramento quase lógico) é de melhor qualidade. A capa do Magirama, antes texturizada e fosca, agora é lisa e brilhante. Atividades que foram descritas normalmente agora trazem notas de rodapé informando aos retardadinhos que eles precisam da supervisão de um adulto — foi nisso que deu a evolução? Vocês se tornaram incapazes de fazer coisas que seus pais e avós faziam tranquilamente? —, e uma receita que levava álcool foi modificada. Os manuais precisaram ser adaptados a um mundo mais complexo.
À parte minha revolta com as práticas da editora, a verdade é que continuo achando que aqueles manuais eram pequenas enciclopédias fantásticas. Ainda lembro do impacto que o Manual do Escoteiro Mirim — mesmo com tantas páginas omitidas canalhamente pela editora — causou em mim, menino de cidade que, de repente, aprendia como andar no mato, identificar pegadas, escalar árvores e ler mapas.
Por isso eu sabia que ia comprar o danado do manual.
O que eu não sabia é que iria comprar cada um dos que seriam relançados em sua esteira; mas devia saber, porque meu respeito profundo a esses manuais está documentado neste post; e isso vale mesmo para aqueles que não me dizem nada porque não os tive, como o Manual do Tio Patinhas, do Professor Pardal ou do Mickey. Além desses, três manuais que tive e que foram importantes, o do Peninha sobre jornalismo, o Magirama sobre mágicas e truques de salão e o da Vovó Donalda sobre culinária (isso antes dessas coisas gourmet tão na moda, quando cozinhar era basicamente garantir comida decente na mesa, e não sobrevalorizar o medíocre como parece ser a norma hoje), mereciam um olhar saudoso. Agora, para mim, só falta relançarem três outros manuais: o do Zé Carioca sobre futebol, o dos Jogos Olímpicos sobre Olimpíadas com o Pateta, e o da Televisão, sobre, bem, televisão. O Autorama eu tenho, comprei num sebo uns 10 anos atrás para repor aquele que havia comprado em 1978 mas que me roubaram logo depois — fui passar férias em Aracaju e quando voltei o danado não estava lá. Vai ver é por isso que nunca liguei muito para carros: não deu tempo de reler o manual várias vezes.
De qualquer forma, até agora esse era um respeito, digamos, retrospectivo, quase um passar de mão condescendente na cabeça da criança que fui tantas décadas atrás. Porque o ponto de partida de qualquer julgamento que eu pudesse fazer era o quanto foram importantes para mim, e só por isso podia haver certa dúvida. Talvez eles não fossem tão bons assim, talvez fosse a minha memória cumprindo o seu papel de edulcorar o passado, o único papel decente que a memória pode ter.
Por isso, em primeiro lugar reler esses manuais é um reencontro com deslumbramentos antigos. O mais agradável não é tanto ler aquilo de que eu lembrava: a verdade é que nada supera a sensação de rever um texto ou uma ilustração de que eu já tinha esquecido, porque isso revive, ainda que por um átimo, o que senti naquele momento.
Mas é lendo os manuais que não tive, como o do Mickey e o do Pardal, que minha admiração por eles cresce. Os manuais mostravam de maneira simples, fácil, como era o mundo que me aguardava. Ofereciam um mundo diverso de informações, selecionadas com critério e uma seriedade que, vendo com a distância de mais de quatro décadas, me impressionam. Por exemplo, essa previsão no Manual do Pardal, de 1973:
Em futuro próximo, o aparelho de TV poderá estar ligado uma grande loja de cassetes. A pessoa então escolherá, entre milhares de títulos, simplesmente discando um determinado num teledial. A videofita escolhida aparecerá na tela, dentro de casa, e a conta virá no fim do mês, junto com a do gás ou da luz
35 anos antes, o Manual do Pardal descreveu a Netflix.
Claro, nada disso era exatamente algo do outro mundo. Não passava muito da simplificação de ideias até velhas entre estudiosos e futurólogos, nada que uma revista tipo a Popular Mechanics não previsse uns 20 anos antes. Mas só o fato de transmitir essa informação para crianças, de maneira perfeitamente compreensível, era algo fantástico. Milhares de bacuris brasileiros passaram a entender melhor o mundo em que viviam, as coisas que nos rodeavam, e acima de tudo as possibilidades que nos eram oferecidas.
Os manuais significam também uma consciência melancólica de que o seu tempo passou. Alguém poderia se perguntar por que, em vez de editar material novo para as crianças de hoje, a Abril prefere reimprimir material de quase meio século atrás, mirando no público de anciães como eu, que buscam um passado que já se foi há mais tempo do que gostariam de admitir. Deve haver uma razão para isso. E eu acho que ela é simples: porque as crianças deste século — que um dia achei que usariam roupas prateadas enquanto veraneavam em Marte — provavelmente não se interessariam por isso, porque não há mais necessidade desses “digests” da informação que encontram com abundância na internet.
Isso não é ruim. Mas tampouco é bom. Mais do que ninguém, eu sei que brigar com a evolução é perda de tempo. O que não me impede de sentir uma certa melancolia por isso.
Eu tenho grande admiração pelos manuais. Fazem parte, também, da minha infância!
Fiquei surpreso de você não ter se interessado pelo do Pardal na primeira vez. Eu achei dos melhores. Talvez por isso eu tenha me tornado um físico. Ou é mais provável que eu tenha gostado porque me tornaria um físico. Sei lá, mas adorava.
Agora, independente dos pendores individuais, o do Escoteiro Mirim foi de fato universalmente admirável. E eu comprei o primeiro! Tudo bem, sou mais velho. Para uma criança, não houve nada mais cheio de aventuras. Fico pensando se haveria os outros se o primeiro não tivesse sido o do Escoteiro Mirim…
Não é que eu não me interessasse: se eu tivesse visto, teria comprado. Mas eu comecei a cmprar esses manuais em 1978. O do Pardal é anterior, e eu não vi nenhuma reedição ou relançamento na época.
“35 anos antes, o Manual do Pardal descreveu a Netflix” essa foi demais!
Rafael:
Eu cometi a besteira de a pouco tempo comprar um revista dessas porque eu estava “doente” pra ler um daquelas estórias do Tio Patinhas em que ele está perdendo toda a sua fortuna e engana o Pato Donald, junto com os sobrinhos, para segui-lo em uma aventura em busca de um tesouro sem paga-los por torna-los a tripulação de um navio caindo aos pedaços.
Bom, pra começar não tinha uma estória dessas, e o pior é que eu achava que eles haviam evoluído para a época atual com celulares, internet, TV digital, etc., mas nada; tudo está congelado: desde as roupas, os carrinho da década e “40 do Donald, etc. Não precisava descaracterizar os personagens, mas alguma atualização tinha que ter ocorrido. O que aconteceu com as revistas Disney da minha juventude de 1970?
1) Depende da publicação. Pode não ser o caso da sua revista, mas, às vezes, é por causa da reedição de histórias antigas.
2) Já vi histórias que falam em videogames, TVs modernas, etc. De qualquer maneira, estamos falando de gente (?) que não usa bolsos, então o potencial para uso de gadgets é reduzido. E, bom, o carro do Donald já era ultrapassado nos anos 90, quando eu lia ocasionalmente essas revistas. Tenho a impressão de já tê-lo visto com um carro mais moderninho, mas não posso garantir. Em alguns casos, a caracterização até é atualizada: nos anos 90, acho, Zé Carioca deixou de usar paletó para adotar vestimenta mais informal; nos anos 80, a Margarida ficou mais “empoderada” e por aí vai. Mas acho que esses personagens sempre vão viver em um universo bem à parte (aqueles sobrinhos com camisas pretas e bonés cada um de uma cor diferente provavelmente nunca fizeram muito sentido em década nenhuma) e meio congelado no tempo. Afinal, por que o Pato Donald usa camisa de marinheiro e não usa calças?
3) Interessante que aquele desenho Quack Pack fez uma atualização estilístico-comportamental dos personagens. Não sei se os fãs gostaram, mas acho que não deixou uma marca forte no universo Disney ou na memória afetiva de quem era criança na época. Ao fim e ao cabo, acho que a maioria está disposta a aceitar as roupas e recursos tecnológicos dos personagens como convenções desse universo e deixar que sejam maleáveis de acordo com o roteirista (quando os personagens precisam estar na última moda para a história funcionar, estão; se não precisam, de volta para o nível da classe média dos anos 50/60).
PS. Pasme, mas eu me tornei escoteiro por causa desta turma. Cada uma que criança faz!
O engraçado é que minha infância foi um pouco mais recente que a sua e eu só li alguns Manuais Disney em capa dura usados na pequena biblioteca de um curso que eu fazia no começo da adolescência (mesmo então, eu achei os manuais mais informativos e inteligentes do que muitos professores que eu já tive – o jornalismo nacional, por exemplo, ganharia um bocado se a maioria dos estudantes de jornalismo fosse obrigada a ler o Manual do Peninha em vez de fingir que entende de verdade as teorias cujos resumos o pessoa estuda para as provas) e, mesmo assim, logo de cara, fui informado de que as reedições eram bastante inferiores à edição de capa-dura. Como foi a primeira coisa que ouvi sobre os Manuais, para mim, era quase uma verdade revelada que se aceita por fé (nunca vi as reedições). Faz todo sentido que o resto da humanidade não saiba disso (e a maior parte não se importe), mas não deixa de ser engraçado ver alguém bem-
informado e interessado por conteúdos Disney ser surpreendido por algo que me revelaram quando eu era moleque. Como escreveu Will Rogers, todo mundo é ignorante, mas em assuntos diferentes.
Serge e Thiago,
As histórias que você leu provavelmente são as produzidas atualmente na Itália. Eu particularmente não gosto delas, pela ação exagerada nos roteiros, pela insistência em alguns personagens como a Brigite, e pela arte histérica. O triste é que um dos melhores artistas Disney, o Marco Rota, é de lá. Eu tenho a impressão de que a decadência dos quadrinhos Disney no Brasil se dee, em grande parte, a essas histórias.
Mas o que aconteceu foi simples: os tempos mudaram.
Acho que o Thiago falou o que era preciso sobre a questão da atualização. Quanto a mim, nem sempre gosto das atualizações: detestei quando transformaram o Zé Carioca em funkeiro com boné virado para trás (essa foi a transformação dos anos 90; ele já tinha perdido o paletó nos anos 80), porque o Zé é um picareta que precisa parecer melhor do que o que é para conseguir sobreviver.
Queria só acrescentar algo sem muito a ver. Acho que as atualizações mais importantes foram feitas por Don Rosa e não dizem respeito à passagem dos tempos: é maneira como transformou o Tio Patinhas, a relação dele com o Donald e, principalmente, a criação de um universo mais complexo a partir do de Carl Barks.
E Thiago, eu concordo em gênero, número e grau quanto ao Manual do Peninha. Mesmo defasado em vários aspectos, ele ainda é impressionante. Eu sempre achei que ele valia mais que muito curso de jornalismo por aí.
Aparentemente – e eu deixo a responsabilidade da afirmação com o autor do verbete da Wikipédia – , o Zé Carioca foi deixando o paletó durante uma reformulação nos anos 60/70 e voltou a usar paletó e chapéu entre 1983 e 1992, adotando, depois de 1992, tênis e boné (essa última é a fase de que eu me lembro melhor, com as eventuais histórias clássicas mostrando-o de paletó). Consultando o Inducks, dá para ver que algumas histórias feitas nos anos 80 tem o Zé de paletó, outras não (eu não peguei essa época, então não sei o que predominava). A verdade é que Zé funkeiro à parte (é uma das coisas sobre as quais mais vejo gente reclamando na internet quando falam em bobagens feitas com personagens Disney – aparentemente ninguém nunca gostou da ideia), acho que não existe solução fácil ou unânime. Eu confesso que sou conservador em matéria de caracterização e estaria disposto a aceitar até hoje o paletó e o guarda-chuva como uma convenção (como o meio terno de marinheiro do Donald) mesmo admitindo que ficaria cada vez mais anacrônico nesse mundo cada vez mais esculhambado e em um Rio de Janeiro cada vez mais quente. E não sei qual seria o equivalente contemporâneo do paletó e da necessidade do Zé Carioca de aparentar ser melhor do que é – nem se a opção escolhida ganharia o caráter icônico das velhas roupas. De certa forma, esse tipo de dilema exemplifica como é complicado ir atualizando personagens (e mesmo mudanças razoáveis podem despertar a ira dos fãs xiitas) e ir criando um mundo cada vez mais complexo e vívido para seres que começaram às vezes como um estereótipo ou como uma escada para um personagem mais famoso ou para um projeto (Donald precisava de um cicerone, e Roosevelt e Disney, de um bicho brasileño para a Política de Boa Vizinhança). Imagino que seja uma das vantagens das fanfics: servem de válvula de escape para insatisfações dos fãs, que podem interpretar como quiserem o cânone herdado dos conteúdos oficiais.
Eu lembro que o O Manual do Pardal era o meu favorito, mas o Manual do Peninha é um dos melhores exemplos que eu conheço de como tratar de um assunto específico (prática jornalística, no caso) de forma clara e sem ser condescendente com a gurizada.
A primeira atualização da roupa do Zé (camiseta ou então camisa de manga comprida e gola rolê) não me incomoda, até porque o personagem deixou de tentar dar golpes no Rocha Vaz e se tentou se virar na pequena malandragem. O que me incomoda, mesmo, é o funkeiro. Em tese, atualizações podem ser boas.
Mas pensando bem, há um argumento simples pra justificar a não atualização: ninguém tirou as suíças do Tio Patinhas, ou a sua bengala, ou o seu fraque. Ou a roupa de marinheiro do Donald, ou as roupas estranhas dos sobrinhos, como você lembrou lá em cima, ou a roupa do século XIX da Clarabela. Nem por isso eles saíram perdendo alguma coisa.
Acho que o único problema é que as histórias do Zé só são feitas aqui. Ele não é um personagem interessante fora do país. E longe do controle quase tirânico da Disney, o pessoal tende a ter ideias demais.
Ah, sobre os manuais: nos anos 80 eles primeiro fizeram um Supermanual do Escoteiro Mirim, que deve ter material dos outros manuais, e depois condensaram todos eles na Biblioteca do Escoteiro Mirim. Nos 90, realizaram uma nova edição, em brochura, muito mais finos e com projeto gráfico da capa uniformizado. Relançaram o que já tinham publicado e criaram mais alguns, cujo conteúdo também desconheço. Comprei o do Peninha. Era tão mutilado que desisti de comprar o resto.
Quase citei as polainas (mais exatamente spats) do Tio Patinhas como outro exemplo de velharia mantida por amor à tradição e porwue imagino que ele não tenha como usar sapatos. Originalmente, imagino, a ideia provavelmente foi caracterizar alguém que já esteve na moda na penúltima virada do século (Don Rosa coloca-o nascido em 1867), mas ficou definitivamente para trás. A verdade é que eu adoro quadrinhos (acho até que me interesso mais por eles do que me interessava quando era criança), mas fico feliz por não ser o cara que tem que se perguntar se hoje em dia o Tio Patinhas deveria vestir ombreiras, se o Zé Carioca só usa(va) o paletó para entrar de penetra em algum lugar ou filar boia ou também para ir à praia e se o Clark ainda consegue viver de jornal ou é hora de ir ser assessor de imprensa do Lex Luthor.
Abraços,
As polainas!
Imagino que Rosa definiu essa data para atender à história anterior do Patinhas, que foi para Patópolis naquela grande leva migratória da viradado século XX e enriqueceu no Klondike. Isso fazia sentido nos anos 40 (e o Rosa poderia ter dado 10 anos a menos ao pobre pato, a propósito), mas hoje, para fazer sentido, tio Patinhas teria que ter enriquecido em Serra Pelada.
Tenho a impressão que eles simplesmente ligaram o foda-se. As histórias da família Pato não precisam se passar na atualidade, nem se preocupar se são anacrônicas. É um universo e um tempo deles, e estão conversados. No fim das contas, são patos que falam.
“No fim das contas, são patos que falam.”
E, não me canso de repetir, usam camisas e chapéus, mas não calças!