Meninos, eu juro que vi.
Ontem, quarta-feira, 14 de julho, dia da grande revolução burguesa francesa, a revolução que os liberais elogiam mas que Napoleão botou em seu lugar em uns poucos anos, a revolução cujo aniversário de 200 anos marca, para mim, o ressurgimento do liberalismo — nesta quarta eu vi um episódio de um documentário na TV Cultura, salvo engano chamado de “Os Empreendedores”.
Nele, Fernando Henrique Cardoso faz um auto-de-fé liberal. A partir da história de quatro empreendedores brasileiros, Barão de Mauá, Conde Francisco Matarazzo, Hermann Hering e Antônio Ermírio de Moraes, ele enceta uma diatribe contra a presença do Estado na economia. Segundo FH, nenhum desses empreendedores, todos eles bilionários, jamais utilizou o Estado para enriquecer.
Eu confesso que sempre que olho para a cara mole de Fernando Henrique lembro de João Ubaldo Ribeiro. João Ubaldo, grande baiano, foi o homem que escreveu do então presidente:
Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico.
Todo — absolutamente todo — o texto do programa é de uma canalhice, de uma parcialidade e seletividade impressionantes. Fernando Henrique não diz, por exemplo, que teve a iniciativa e a honra de colocar a Hering em maus lençóis ao proceder à destruição da indústria têxtil brasileira, importando malhas chinesas a preços inalcançáveis. Não fala que exemplos como o de Mauá são a exceção, que em virtualmente todos os setores a iniciativa estatal foi imposta pelo absoluto desinteresse do tal empreendedorismo privado. E quando menciona a indústria naval brasileira, diz algo como “o primeiro programa de incentivo à indústria naval foi de Juscelino Kubitschek. O segundo foi de Geisel. O terceiro agoniza.”
Adivinhe quem bancou o programa que salvou a indústria naval brasileira nos anos 2000 e cujo nome não pode ser mencionado.
É estranho ver um sociólogo que já foi respeitado se deixando rebaixar a um papel desses. Eu, que brinco diuturnamente com a possibilidade de me filiar ao PCO porque a um cavalheiro só interessam as causas impossíveis (©Jorge Luís Borges), fico triste ao ver isso. Eu lembro de FH na campanha das Diretas, idolatrado pelos peitos tão fartos da Christiane Torloni. Só por isso ele merecia um fim mais digno.
Mas ele não degenerou totalmente, e faz um único elogio à Embrapa. Claro, não menciona as dezenas de Ematers, Epagris que se dedicam a ajudar pequenos agricultores Brasil afora. Não faz isso porque o FH do século XXI é daqueles que jogaram às favas os escrúpulos de consciência e fecharam os olhos ao embarcar numa nave estranha.
Tudo bem, direito dele. Pelo menos é o que você pensa até ver que esse documentário foi financiado pela Lei de Incentivo Cultural e pela Ancine. Dinheiro de impostos.
Pois é.
Você provavelmente tem raiva do Bolsonaro, aquele verme com retenção anal. Eu tenho raiva do Fernando Henrique. Agora você sabe por quê.
***
O programa é sucedido por um que pergunta se velhice é doença.
Idiotas.
Todo mundo sabe que velhice é doença terminal. O problema é que a alternativa é muito pior.
Galvão:
Dois pitacos:
1- É bom lembrar que o Mauá foi “falido” pelo Estado, ou por um humilhado D. Pedro II, sem dever uma promissória sequer. Coisas do Brasil, já naquela época.
2- Nesses tempos bizarros de gente mais bizarra ainda no governo, o FHC ficar de chamego com um criminoso condenado, que já cumpriu parte de uma longa pena, joga uma pá de cal na sua já agonizante biografia.
Tempos atrás, peguei na TV pela metade um documentário sobre Paulo Francis. Deve ter sido Caro Francis https://www.imdb.com/title/tt1665722/ . O assunto e o clima de louvação não me despertaram interesse o bastante para assistir até o fim, mas, em certo ponto, FHC aparecia. Perguntaram a ele sobre a história do famoso processo da Petrobras contra Francis. FHC afirmava que, instado por Serra, ele tinha mandado a empresa abandonar o processo, e isso tinha sido feito. Ao ser contestado pelo interlocutor, que afirmou que a Petrobras não tinha parado nada, disse que achava que a ideia de processo tinha sido abandonada. Na época da morte de Francis, publicou-se que, apesar das ordens de FHC, a estatal tinha tocado em frente a ofensiva jurídica. Independentemente do que se pense sobre o imbróglio (e, sim, Francis tinha, mais uma vez, passado dos limites — dessa vez, contra um inimigo com recursos para revidar) eu me pergunto, diante da cobertura até desproporcional que a morte de Francis e suas preocupações legais receberam (houve quem culpasse o presidente da Petrobras pelo desenlace trágico, publicou-se que a viúva de Francis pegou raiva de FHC pela inação deste, etc.), como é possível que, mais de dez anos depois, FHC ainda não soubesse com certeza o que aconteceu? Não é como se o caso simplesmente não fosse digno da atenção do então presidente. Afinal, mais de dez anos depois, ele se lembrava da intervenção de Serra, lembrava-se de ter mandado parar com as medidas judiciais e dizia lembrar que elas tinham sido interrompidas. Àquela altura do campeonato, ele podia ter bancado o que a estatal fez (afinal, uma companhia privada certamente teria se defendido em circunstâncias similares), podia ter dito que simplesmente não viu motivo para intervir na decisão de um subordinado no qual confiava, podia ter feito claramente o mea-culpa se passou a achar que pecou contra a liberdade de opinião e a liberdade de mercado, podia ter explicado melhor o que aconteceu (através da grande mídia, o público praticamente só recebeu a versão pró-Francis). O que ele não podia é precisar ser informado, com dez anos de atraso, sobre o que se fez em nome dele em um caso de repercussão nacional. A impressão que ele me deu, então, foi a de um vácuo moral completamente destituído de convicções e capaz de falar qualquer coisa que lhe traga vantagens. Àquela altura, claro, como o PSDB tinha se firmado como a única opção eleitoralmente viável da direita contra o PT (sic transit gloria mundi), os fãs de Francis, apesar dos textos duros deste contra FHC nos últimos tempos, tinham virado eleitores do PSDB.
FHC é um enrolão, enganador, oportunista, avesso ao trabalho. Foi de esquerda (festiva…) na época da ditadura, mas sendo filho e sobrinho de generais nada lhe ocorreu, ainda se deu bem com uma aposentadoria precoce na USP por ser “adversário” do regime. Nos anos 90 caiu de braços na vassalagem aos EUA e no neoliberalismo. As negociatas que fez na privataria fazem os pequenos golpes do Temer ou Bozo serem merreca. Aquela foto do Clinton abraçando-o por trás é emblemática. Um líder de república bananaiera que fala francês e usa os taleheres corretamente…