Da arte de reescrever a história e enganar otários

Revisionismo é um troço que me incomoda desde os tempos do camarada Kruschev. Tanto pior para mim, porque estes tempos de esgotamento criativo se transformaram na era das releituras e “ressignificações” e outras bobagens do tipo.

Por esses dias andaram comemorando o sexagésimo aniversário de lançamento do Please Please Me, o LP de estreia dos Beatles. Semana passada o youtuber Régis Tadeu fez um vídeo louvando as maravilhas desse disco “revolucionário”. Pouco antes, apareceu para mim no Facebook o anúncio de um curso — isso mesmo, um curso — da CCE/PUC/Rio, seja lá o que isso for, para estudar “toda a repercussão de seu lançamento no cenário musical brasileiro e mundial”.

Quanta besteira e quanta picaretagem, meu santo Asmodeu.

Sabe qual foi a importância mundial do Please Please Me? Nenhuma.

Sabe qual foi a importância no Brasil? Menor ainda.

Vamos começar pelo Brasil, porque a explicação é mais simples. Esse disco só foi lançado aqui em 1976, seis anos depois do fim da banda. Até 1965, a discografia brasileira era totalmente diferente da inglesa. Parte das faixas do Please Please Me tinham sido espalhadas pelos dois primeiros álbuns brasileiros, uma no “Beatlemania” e outras seis no “Beatles Again”. Foi apenas em 1976 que a EMI tirou de catálogo os discos lançados até aquele ano, substituindo-os pelos originais ingleses. Fez isso no mundo inteiro.

Se no Brasil a sua inexistência — a não ser em uns poucos exemplares importados por uns poucos abençoados pela Fortuna e pela fortuna, o que é insignificante — levou à absoluta desimportância em seu tempo, na Inglaterra a história é diferente; e é por não conhecer a história dos Beatles e da indústria fonográfica que as pessoas repetem bobagens como essa.

Mas não é tão difícil de entender. Basta olhar para o próprio Please Please Me. O disco tem 14 faixas. Quatro delas são os compactos lançados anteriormente. Outras seis são covers. Restam quatro faixas originais da dupla de compositores que fez história ao bater pé e exigir que seus primeiros compactos tivessem apenas canções próprias.

(Descontando os lados A dos compactos incluídos, apenas duas das canções do álbum tiveram vida longa: Twist and Shout, depois de redescoberta no filme “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1987, e I Saw Her Standing There, que ganhou vida nova quando Paul McCartney voltou aos palcos no final dos anos 80 e a incorporou ao seu setlist.)

A questão é que LPs não significavam nada naquele comecinho dos anos 60. Eram basicamente coletâneas de compactos e umas faixas de segunda para completar o espaço que faltava. Não é à toa que o título completo do disco é Please Please Me — with Love Me Do and 12 Other Songs. Comprava um LP quem gostava muito de um artista, mas não era para eles que as gravadoras trabalhavam.

O que importava naquele momento eram os compactos. Eram eles que norteavam o mercado e o público, mediados pelas rádios. Para os Beatles, importante mesmo foram o compacto Please Please Me, um disco — este, sim — revolucionário que mudou o cenário da música inglesa, e um pouco mais tarde She Loves You, que catalisou a beatlemania que vinha sendo gestada nos meses anteriores. Até o fim da banda, a grande luta de Lennon e McCartney era emplacar o lado A do próximo compacto, e era para eles que reservavam suas melhores canções — I Want to Hold Your Hand, I Feel Fine, Day Tripper, Strawberry Fields Forever, Penny Lane, Hey Jude nunca foram incluídas em um LP original. O resto, como McCartney sempre lembra, eram “fillers”, canções compostas para completar o álbum. Às vezes não conseguiam e eram obrigados a procurar material antigo e previamente descartado, como Wait no Rubber Soul.

Mas a história dos Beatles é uma história em construção permanente. Eles foram um dos responsáveis pela consolidação do LP como objeto cultural importante, mas isso só se daria alguns anos depois. Antes que eles atentassem para isso, outros faziam seu papel na valorização dessa mídia: Bob Dylan, por exemplo. Mas o tempo passou, os Beatles ocuparam de maneira incontestável o topo do Olimpo da música mundial. O Please Please Me passou a ter uma importância que nunca teve, o fato de ter boa parte de suas canções gravadas em 11 horas passou a ser motivo de admiração e as gentes esqueceram que isso era muito comum em seu tempo. E nestes tempos duros, afinal, as pessoas e as instituições precisam ter assunto para descolar um troco. Faz parte.

Mas eu ainda estou intrigado com esse curso. Fico realmente maravilhado e estupefato diante da possibilidade de que alguém realmente pague por isso. Penso nisso, na abundância de bestas neste mundo despirocado, e dou um esporro em mim mesmo: “É por isso que você é pobre, otário”. Felizmente caio em mim rapidinho: pobre, mas honesto. Só que nunca sei se isso é consolo suficiente.

5 thoughts on “Da arte de reescrever a história e enganar otários

  1. Mais um QED para Umberto Eco (“O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade.”).

  2. Rafael: um off topic.
    No filme Get Back, do Peter Jackson, das sete horas de duraçao, uma das mais legais é depois de, na primeira parte, os Beatles terem elogiado efusivamente o Billy Preston, inckusive dizendo que ele era melhor que o Ray Charles e que por isso quando o Billy estava junto com ele o Ray esse ficava traquilo, sem se preocupar com nada.

    Ai, no meio da segunda parte, o Billy aparece nas gravaçoes o o John diz que nas musicas que têm piano a parte com esse instrumento é gravado depois, e o John pergunta se o Billy podeiria gravar com eles ali, todas juntos e que ele estaria no disco. A cara deslumbrada que o Billy fica é impagavel, como quem diz “tocar num disco com os Beatles? Claro! Quem diria nao a isso?”. E os Beatles se transformam também, adquirindo no rosto uma vivacidade, uma felicidade, que até ali não havia se visto.
    Mas voltando ao Billy Preston, se vê no rosto que ele esta embevecido de estar junto, tocando com aqueles gênios e mal acredita que aquilo está acontecendo com ele e assim permanece em todas as imagens em que aparece, a mais pura felicidade. Ver isso hoje, ainda mais sendo 50 anos depois, não tem preço. Que coisa maravilhosa esse filme, você concorda?

    • Em gênero, número e grau. A felicidade de Preston é impressionante. E essa felicidade contagiou a banda.

      • Oh Rafael! Você deletou o texto corrigido e deixou o que está repleto de erros? kkkkkk

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