Uma nova era para os Beatles

Nos últimos tempos eu vinha refletindo cá com meus zíperes sobre o que me parece ser uma enorme má vontade minha em relação aos mais recentes lançamentos dos Beatles. É como se eu fosse incapaz de encontrar uma só boa palavra para falar sobre cada um deles enquanto as pessoas se mostravam extasiadas por eles, como se tudo me incomodasse, como se eu me recusasse a ver ou entender o que eles têm de bom.

Uma parte é compreensível e, para mim, justificável. O que realmente importa na obra dos Beatles são os discos lançados entre 1963 e 1970. O que vem depois pode até ser interessante, e alguns desses novos discos são grandes acréscimos à obra original, como o Live at the BBC, mas o que realmente importa são aquelas cento e tantas canções. E a maior parte do que tem sido lançado é simplesmente material rejeitado em seu tempo. Outtakes são interessantes apenas para fãs ainda em estágio de demência, como eu fui um dia.

Por isso venho falando mal dos coitados há tempos. Décadas de beatlemaniame deram o juízo necessário para insistir em ter um alto grau de exigência em relação a esses lançamentos., e a reconhecer os cada vez mais frequentes defeitos neles. Em 2011 já via na voz destroçada de McCartney um problema, que só foram comentar abertamente agora, em sua última turnê. Desde o início, me entediavam profundamente as caixas de aniversário de seus álbuns, em que a Apple Corps passou a seguir o modelo lançado anos antes por McCartney e sua MPL, reembalando os mesmos discos com o que fosse possível de sobras de estúdio e uma apresentação luxuosa e caríssima.

É justo agora, quando começava a achar que o problema estava em mim (porque uma das coisas que a vida me ensinou é que, quando você acha todo mundo chato, o chato é você), que as pessoas parecem finalmente ter chegado à mesma conclusão.

Semana passada a Apple divulgou o lançamento deste ano: uma nova versão do Anthology, agora com um álbum a mais, uma versão ampliada do documentário para o streaming e o relançamento do livro.

O documentário terá mais trechos das entrevistas feitas originalmente, e imagino que também utilizem IA para fazer um upscale da imagem original para adaptá-la às atuais resoluções em 4K ou pelo menos Full HD. Seria realmente interessante ver mais horas da última reunião dos Threetles.

O quarto disco, por sua vez, terá algumas poucas gravações inéditas — apenas 12, em um álbum triplo, todas meros outtakes, sem absolutamente nada de relevante: mais uma vez, a expectativa dos fãs em ouvir Carnival of Light foi frustrada —, e novas versões das músicas inéditas lançadas em 95 e 96, Free as a Bird e Real Love.

Antes de prosseguir, quero lembrar aqui o que disse na época do lançamento do Now and Then:

Estão dizendo que esta é a última canção dos Beatles. Não é. É algo completamente diferente: é o início de um novo tempo. (…) Posso apostar com qualquer um que o próximo passo será remasterizar a voz de Lennon em Free as a Bird e Real Love.

Eu gostaria de poder iniciar com isso um novo negócio de previsões, e se alguém quisesse os números da próxima Mega Sena eu poderia vender por módica quantia, e ainda parcelar em três vezes. Mas a verdade é que isso era absolutamente óbvio. A maioria do material disponível dos Beatles não tinha chances de ver a luz do dia oficialmente porque sua qualidade sonora era, muitas vezes, baixa. As novas tecnologias de IA possibilitam resgatar ao menos parte dessas gravações de maneira honesta. É como a descoberta de um novo veio em uma mina esgotada.

Mas tudo cansa nesta vida, até o descanso. Vendo o material anunciado, as pessoas estão reclamando de pagar muito caro por muito pouco — algo de que doentes como eu reclamavam há mais tempo, porque conhecem a abundância de material pirata disponível por aí. E algumas passaram a se perguntar se o volume e a qualidade do material neste lançamento poderia ser um indicativo de que baú do qual os Beatles tiram o leite das crianças nos últimos 30 anos está começando a secar. E é aqui que discordo deles.

Eu fiquei impressionado com a mediocridade da edição de aniversário do Let it Be — por sinal, a única que comprei, porque sempre quis ter o álbum Get Back com aquela capa; é como se eu, que estou longe de ser o colecionador que pensava ser aos 15 anos, finalmente sentisse que essa a era única coisa que faltava para mim. O material disponível é absurdamente variado (fiz uma sugestão de gravações que poderiam ser incluídas, num post que talvez represente a última manifestação de fé deste pobre escriba na Apple — talvez fosse o lockdown, não sei; mas é um indicativo do volume de material interessante que ainda está oficialmente inédito), mas o que foi efetivamente incluído era parco e fraco.

Agora entendo o que era: o nome disso é racionamento, é gestão de recursos. O material é finito e precisa ser liberado aos poucos, de maneira que garanta um fluxo regular capaz de gerar a renda necessária pelos próximos anos.

Usando como exemplo as gravações disponíveis das sessões do Let it Be, daqui a dez anos é possível que lancem uma nova versão do álbum, agora com novas canções que ficaram fora até agora. Ou discos completamente inéditos, com títulos possíveis como “Raspa do Tacho Vol. 6”, ou coisa parecida. Sem falar nos shows ao vivo — são mais de 50 disponíveis, alguns completos, outros com umas poucas canções, inclusive apenas ouvidas ao fundo de reportagens de rádio ou TV, a maioria imprestável.

O leitinho das crianças não está ameaçado. Os Beatles entenderam que sempre terão uma legião de fãs dispostos a pagar caro pelo que, hoje, são essencialmente mementos, souvenirs, em um tempo em que até mesmo fãs dedicados como eu adquirem seu discos nas redes de torrent. Para esse pessoal, mais do que a experiência estética ou mesmo espiritual de ouvir uma canção, o que vale mesmo é ter nas mãos um artefato que dê materialidade e substitua essa experiência. Os Beatles sabem que não é mais a música que importa.

E aqui, talvez, esteja a maior ironia de todas.

Como eu imaginava, Free as Bird foi realmente remixada. O vocal original de Lennon foi adequadamente tratado, e agora soa mais natural. Mas, por incrível e inacreditável que pareça, ela ficou pior.

Em 1995, saber que a música tinha sido feita sobre uma gravação em cassete gerava uma condescendência necessária e benéfica para a bravação. A qualidade da parte de Lennon era ruim, mas para todos nós, era a qualidade da gravação, algo que não se podia consertar, e então ela importava pouco ou nada. Com o vocal restaurado, não dá mais para evitar lembrar que ela era apenas uma demo caseira, com uma voz quase em falsete, sem nenhuma pretensão. É paradoxal: a canção soa melhor, mas seu efeito é pior. É melhor ouvir a versão original.

Talvez isso seja um indicativo do que podemos esperar daqui em diante. Não sei. Do que tenho certeza é que esse é apenas o primeiro passo de uma longa fieira de lançamentos semelhantes.

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