Beatlemania em 2014

Durante oito anos, esperei pelo lançamento do livro que Mark Lewisohn estava escrevendo.

Lewisohn é o maior especialista em Beatles do mundo. É autor de dois livros fundamentais sobre a banda: The Complete Beatles Recording Sessions, recentemente relançado depois de uns 20 anos fora de catálogo, e The Complete Beatles Chronicle. Nos últimos 25, 30 anos, teve enorme acesso aos ex-beatles, a Yoko Ono e aos principais satélites da banda, como Neil Aspinall, George Martin, Derek Taylor e Tony Barrow.

Tudo indicava — eu, pelo menos, tinha certeza — que a biografia anunciada no meio da década passada seria uma obra fundamental, provavelmente definitiva. Demorou mais de oito anos até ficar pronta. Quando finalmente foi definida uma data de lançamento, o tamanho de All These Years: Tune In impressionava: mais de 800 páginas, e isso apenas cobria o período até 31 de dezembro de 1962, antes mesmo do início da beatlemania. Não havia mais dúvidas de que essa seria não apenas a mais abalizada, mas também a mais detalhada biografia da banda.

A pergunta que me faço agora é se o livro corresponde a expectativa tão grande e fatalmente injusta. A resposta é sim e não.

De longe, All These Years: Tune In é a melhor biografia dos Beatles já escrita, e merece todos os elogios possíveis. É abrangente e rigorosa. Lewisohn não parece sentir muito prazer com o texto em si, não se abandona em maiores aventuras estilísticas e parece deixar escapar chances demais de fazer seu texto mais atraente. Mas é um historiador competente e desce a detalhes inesperados.

Tem a vantagem do rigor historiográfico. É mais que óbvio que ele ama seus personagens e não os aborda com a iconoclastia regicida de um Albert Goldman, por exemplo; mas tampouco se abstém de relatar os fatos mesmo quando pouco lisonjeiros, e claramente se esforça para manter um mínimo distanciamento como historiador. Evita explorar em excesso o lado negativo de seus biografados — o preconceito e a crueldade do Lennon adolescente, marcas que perdurariam por toda a sua vida, são mencionados algumas vezes, mas Lewisohn não faz disso um cavalo de batalha. Curiosamente, ele não fez nenhuma nova entrevista com os ex-beatles — provavelmente por reconhecer que nem McCartney nem Ringo têm algo novo a dizer, e a esta altura já acreditam piamente nas versões que foram burilando ao longo de 50 anos.

O livro traz algumas revelações, como uma nova versão sobre o abandono de Lennon pelo pai, finalmente contada por alguém que também estava lá, e o uso de maconha por parte da banda anos antes do que se imaginava (dizia-se que foi Dylan quem os apresentou à marijuana, informação tirada da biografia de McCartney escrita pelo Chris Salewicz). A mais relevante diz respeito a uma das principais peças do folclore beatle: a de que o produtor George Martin tinha ficado impressionado com a banda durante uma audição e convencido a EMI contratá-los.

Em The Complete Beatles Recording Sessions, Lewisohn já tinha notado que o contrato dos Beatles datava de dois dias antes do teste da banda: era de 4 de junho de 1962. Creditava essa discrepância a um erro de datilografia. Agora ficamos sabendo a verdade, e ela é surpreendente: Martin só ouviu os Beatles depois de já contratados, e não teve papel nenhum nessa transação. Na época, estava às voltas com um caso extraconjugal com sua secretária (que viria a ser sua segunda esposa), com problemas financeiros decorrentes disso e não tinha condições de escolher muito. Ou seja: embora ele mesmo tenha recontado a história e se dado importância fundamental no processo de reconhecimento do talento dos Beatles, os Beatles lhe foram impostos goela abaixo.

De qualquer forma, não são revelações bombásticas que fazem as grandes qualidades de Tune In. A essa altura, há pouca coisa importante que se possa desenterrar sobre a banda — é até curioso que uma informação dessas tenha conseguido escapar às centenas de livros escritos até agora, por mais de meio século. O que realmente importa é que isso não diminui a importância de Martin na realização da visão dos Beatles ao longo dos anos 60; apenas arranha um pouco a sua própria pompa.

A grande surpresa do livro é que, contrário do que eu e milhares de fãs esperavam, Tune In não esgota o assunto. Em vários momentos se tem a impressão de que Lewisohn poderia ter tentado elaborar melhor algumas análises, e apresentar uma visão mais abrangente sobre elementos menos factuais da banda. Em “The Beatles”, de Bob Spitz, aspectos mais intangíveis da vida familiar de McCartney, principalmente após a morte de sua mãe, são mais bem delineados, e o leitor entende melhor não apenas a dinâmica íntima dos Mohin/McCartney, mas também a leve superioridade com que McCartney olhava a vida familiar de Lennon. A reação de John à morte de sua mãe — Julia tinha ido “devolver” John a sua irmã Mimi, porque seu marido tinha perdido o emprego por dirigir bêbado e John não poderia mais ficar tanto tempo na casa deles — é apresentada aqui de maneira quase lacônica e não acrescenta nada ao que já se sabia. Ao contrário, pode-se encontrar melhores descrições em outros livros.

Durante oito anos, achei que essa seria a mãe de todas as biografias. De certa forma ela é. É indispensável para fãs, repleta de pequenos detalhes e da mais assombrosa avalanche de dados que já se publicou sobre os Beatles. Quer saber quando Ringo Starr perdeu a virgindade? Está lá (George Harrison voltou da mesma festa com as mãos abanando; talvez se já conhecesse Ringo tivesse melhor sorte). É, com toda a certeza, a melhor biografia já escrita sobre a melhor banda da história — e até agora a única que parece não conter erros factuais, e certamente nenhum grave. É bem mais que o suficiente para o fã comum, e o bastante para estudiosos. Mas para naquele tipo especial de beatlemaníaco, aquele que sabe muito mas acha que tem que haver mais e que a verdade está lá fora, All These Years: Tune In não elimina a necessidade de leitura de outras biografias.

O segundo volume está prometido para 2020. É tempo demais para esperar. Mas pelo menos a espera não vai ser tão angustiante quanto foi até agora.

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On Air – Live at the BBC Volume 2, o novo álbum dos Beatles lançado em 11 de novembro, traz mais faixas retiradas das apresentações que os Beatles fizeram na rádio BBC entre 1962 e 1965. Junto com ele uma nova edição do Live at the BBC original, de 1994, remasterizado — seja lá o que isso queira dizer a essa altura — e com pequenas mudanças internas.

Em 1994, o lançamento do Live at the BBC foi a melhor notícia que fãs dos Beatles receberam em quase um quarto de século. Aquele não apenas era o primeiro disco com gravações inéditas dos Beatles em quase 20 anos (o último tinha sido o disco ao vivo Live at the Hollywood Bowl, hoje fora de catálogo porque odiado pela banda); era também o primeiro com canções oficialmente inéditas. Além disso, deu início a um novo período na vida da Apple Corps., que passou a lançar material novo de maneira razoavelmente regular. Com a maior parte das pendengas judiciais resolvidas a partir de 1995, os ex-beatles e seus herdeiros descobriram que poderiam voltar a faturar muito com gravações que, até então, vinham fazendo exclusivamente a alegria dos piratas. Seguiram-se, então, o projeto Anthology, o Let it Be… Naked, o Rock Band e finalmente a nova remasterização dos álbuns originais em 2009.

O primeiro Live at the BBC é um excelente disco. Embora tenha deixado gravações importantes de lado, finalmente trazia ao grande público parte significativa daquilo que John Lennon considerou um dia as melhores performances dos Beatles. O novo disco segue a mesma fórmula: traz dezenas de canções às vezes intercaladas com blá blá blá de programa de rádio, muitas vezes bastante interessante, e termina cada disco com entrevistas curiosas de cada um dos beatles, individualmente.

Mas não há muitas canções inéditas, além de Beautiful Dreamer, Talking ‘Bout You e Happy Birthday Dear Saturday Club. O resto são versões de canções já conhecidas, às vezes até mesmo do Live at the BBC original. Algumas são interessantes: a gravação de Words of Love parece estar no meio do caminho entre a versão original de Buddy Holly e a definitiva do Beatles For Sale. A maior parte, no entanto, é francamente inferior, como I Got a Woman (apesar do belo baixo de McCartney). Pelo visto, deram preferência às versões com melhor qualidade sonora, antes de mais nada.

Mas qualidade, ao que tudo indica, não é o motivo pelo qual deixaram de fora as gravações feitas com Pete Best, que têm maior valor histórico. Os Beatles se apresentaram duas vezes na BBC ainda com Best na bateria, em 25 de março e 11 de junho de 1962. Na primeira sessão gravaram Memphis Tennessee, Dream Baby e Please Mr. Postman. Na segunda, Ask Me Why, Besame Mucho e A Picture of You. Nenhuma delas foi incluída no novo disco. Devem ter decidido que o pobre Pete não merece faturar um pouquinho.

Essas são as canções inéditas deixadas de lado no novo disco: Dream Baby e A Picture of You são canções que jamais viram a luz do sol em qualquer outra ocasião; Side By Side e Pop Go The Beatles são temas de abertura de programas; Tie Me Kangaroo Down, Whit Monday To You… e All I Want For Christmas is a Bottle são gravações curiosas, que ficam entre o blá blá blá e paródias ou gracinhas (como a versão de Moonlight Bay incluída no Anthology). Tie Me Kangaroo Down tem, provavelmente, outra razão para ser excluída: nessa canção os Beatles acompanham Rolf Harris, recentemente envolvido em acusações graves de pedofilia. Obviamente ninguém consegue excluir nada definitivamente hoje em dia, e a canção pode ser facilmente encontrada no YouTube.

Há ainda outra categoria em que o novo disco falha: a ausência de gravações originais das quais não há nenhuma versão oficial ao vivo. O disco poderia ter incluído, então, I’m Happy Just To Dance With You, I Should Have Known Better, The Night Before, A Taste of Honey e I Call Your Name, em vez de trazer novas versões de canções já apresentadas no disco de 1994.

Durante muitos anos, The Complete BBC Sessions foi a melhor compilação das apresentações na rádio inglesa — a ponto de a Apple não negar que muitas das gravações de seus dois álbuns oficiais foram tiradas dali. Isso mudou em 2010, quando a série Unsurpassed Broadcasts foi lançada; ela está disponível gratuitamente na internet e pode ser encontrada aqui. E é ela que faz de On Air um lançamento redundante, desnecessário, perdido em meio a produtos superiores. De um lado, para o ouvinte comum, o primeiro BBC é mais que suficiente, e muito mais significativo. Do outro, para o fã e completista, é muito melhor dirigir-se diretamente aos bootlegs originais.

É claro que On Air vale a pena. É boa música, antes de tudo, tocada por uma grande banda de rock and roll. Mas não justifica a compra.

60 Contos Eróticos

Quando eu tinha uns poucos anos caiu nas minhas mãos um livro grande, com capa vermelho-alaranjada, chamado “60 Contos Eróticos”. Eram as estórias classificadas em dois concursos da revista Status — não essa revista amorfa de hoje, mas a revista de mulher nua dos anos 70/80.

Foi um livro que li bastante. Li, reli, reli mais uma vez, mais duas, tantas. Alguns desses contos nunca saíram de minha memória. “Tia Bela”; o seminarista que passeia pela zona; o sobrinho que vai fazer uma visita à amante do tio morto; a moça que pede “dicumforça, dicumforça”; a mãe do amigo que ajeita o narrador entre as suas pernas enquanto o chama de bobo.

O tempo passou e muitas das memórias desapareceram, soterradas por outras tantas, mais novas, e novas maneiras de ver o mundo. O livro se perdeu na vida, acho que já há uns 30 anos. Já há muito tempo não gosto de contos eróticos, estão sempre aquém do erotismo quando sutis, estão sempre brigando com as palavras quando explícitos.

Mas semana retrasada lembrei desse livro e procurei por ele na internet (o Mercado Livre é sempre um bom lugar para achar essas coisas, as pessoas gostam de vender velharias que tentam fazer passar por antiguidades). Achei, lembrei imediatamente da capa vermelho-alaranjada. Fui na Estante Virtual e vi que o livro estava barato. Comprei. Comprei também um exemplar de “Grease — Nos Tempos da Brilhantina”, mas isso é outra história.

Ontem cheguei em casa e o livro estava lá, me esperando.

O que mais me impressionou foi o reconhecimento imediato de tanta coisa. Dos contos dos quais eu lembrava, claro, mas também dos que já não lembrava. Das ilustrações. Os cartuns — reconheci todos, embora nem lembrasse que o livro tinha cartuns; mesmo assim reconheci-os todos, imediatamente, cartuns franceses inteligentes e engraçados, curiosamente sem nada a ver com a temática sexual do livro. Tudo aquilo evocava tanta coisa, evocava eu mesmo aos 10 anos.

E enquanto relia alguns contos, fiquei pensando em como esse livro definiu minha vida.

O meu conto preferido, por exemplo (“Tia Bela”: um rapaz vai morar com os tios e obviamente se apaixona pela bela tia novinha, bonita e mal amada, com quem vive uma história de amor condenada desde o início), era tão feminino.

Há uma diferença marcante entre contos eróticos escritos por homens e por mulheres — desconto aqui os contos escritos por garotos espinhentos porque esses são pouco mais que delírios lascivos causados por overdose de hormônios. Contos femininos, pelo menos esses da coletânea, parecem ser de costume mais românticos, mais suaves, costumam ter sentimentos além do sexo, uma eterna busca de um senso de pertencimento.

Fiquei pensando no quanto “Tia Bela” me influenciou. A moça que deitada de bruços na cama enquanto folheia um álbum de fotografias. A ilustração, por exemplo, mostrava uma moça nua, de costas — moça magra, de torso bonito mas com pouca bunda. Será que esse modo feminino de ver as coisas não vem daí? Não sei. Só sei que ver isso me dá uma resposta afinal às bobas que passaram décadas negando um fato básico da vida, dizendo que não tenho alma feminina. Eu tenho sim, gostar de um conto desses é indício de alma feminina, sim, e a imagem de tia Bela com a fotografia amassada nas mãos não me deixa mentir.

Mas não só “Tia Bela”. Os contos que citei lá em cima. “A Deusa de Ébano”, uma neguinha de 13 anos que come um menino de 8; era um dos meus preferidos na época, talvez pela idade, talvez pelo seio negro oferecido à boca do menino que era ainda mais novo do que eu, menino de sorte, tanta sorte que eu não tinha; mas esqueci totalmente dele. “Weekend com Liv Ullman” é um título que reconheci imediatamente, era daí que eu sabia quem era Liv Ullman (e, en passant, também a palavra “weekend“); eu não sabia quem era Ingmar Bergman, demoraria anos até saber e mais anos ainda até ver algum filme dele; mas Liv Ullman eu sabia, sabia desde que era menininho e alguém queria fazer safadeza com ela.

Agora estou imaginando o quanto não devo a esse livro que não reli inteiro, mas que vou ter que reler, para saber se isso aqui não veio de um conto, se aquilo não veio de outro, se o meu desinteresse por isso não veio da delicadeza de “Tia Bela”, se aquilo não veio daquele conto, se o seio em minha boca não evoca aquele outro.

A criança é o pai do homem, dizem, e talvez isso afinal seja verdade.

Um ator chamado Elvis Presley

Foi por causa de Clambake. Em português, “O Barco do Amor”.

O negócio é que sempre gostei dos filmes de Elvis Presley. É um desses vícios de infância, essas coisas que a gente vê quando criança e nunca mais esquece, uma versão humana da estampagem. Sei que são ruins, quase todos, mas eu gosto mesmo assim.

Vi a maior parte deles há mais de 30 anos; eram figurinhas fáceis na Sessão da Tarde, e a TV Itapuã, aí por 80, 81, exibiu um grande festival nos finais das tardes de alguns sábados com um bocado desses filmes — foi quando assisti a “Talhado Para Campeão”, “Em Cada Sonho Um Amor” e “Com Caipira Não Se Brinca”, por exemplo. E assim eu contava nos dedos os filmes a que não tinha assistido — hoje, acho que apenas “Joe É Muito Vivo” está faltando, e não tenho lá muita vontade de sair procurando por ele.

Ter visto quase todos eles não quer dizer muita coisa, no entanto: não lembro de quase nada da maioria. E daí que dia desses eu estava tentando rever um filme que, segundo minha memória, se passava no Havaí, como tantos e tantos outros. De acordo com a minha sinopse pessoal, no filme Elvis era um herdeiro que se passava por pobre para conquistar uma moça — porque sabe como é, ele queria ser amado pelo que era, não pelo que tinha. No final, no seu conversível esportivo vermelho, ele dizia à moça que era dono daquela enorme plantação de abacaxis diante deles.

O problema é que eu não achava esse filme. Revi a maior parte dos que se passavam no Havaí, e não era nenhum deles. Durante algum tempo imaginei que fosse Blue Hawaii, mas assisti ao filme recentemente e, diabo, não era ele, embora os abacaxis estivessem ali, o carro vermelho também, e as cenas do início — em que ele chega de viagem e vai para uma cabana de praia — mostravam que eu tinha misturado cenas de filmes diferentes.

Essas coisas, se a gente não cuida, viram pequenas obsessões. E por isso baixei um pacote imenso de filmes de Elvis. Faltavam alguns, como “Saudades de um Pracinha” e “Férias no Harém”, mas está quase tudo lá. E passei algumas semanas dando uma olhada nesses filmes. (Hoje está disponível um pacote mais completo e com arquivos em melhor qualidade, em que falta apenas “Com Caipira Não Se Brinca”.)

Bem, finalmente achei o filme, era o tal de “Barco do Amor”. Vendo por alto o filme, fico impressionado ao perceber como transformei as coisas na minha cabeça, como misturei partes de Blue Hawaii e de Clambake para construir um filme só meu. De agora em diante não confio mais em minha memória.

Mas isso significou também um reencontro com Elvis, ator.

A primeira sensação ao ver esse material é a de um certo embasbacamento ao perceber como o coitado do Elvis era anacrônico nos anos 60. Não se trata apenas da ideologia professada nos filmes: o texto, a linguagem cinematográfica, tudo parece estar 10 anos atrasado, tudo parece emergir de um limbo cinquentista, da visão de executivos alcoólatras de Hollywood do que era a adolescência e a modernidade nos anos 60.

No início de sua carreira cinematográfica Elvis tentou ser levado a sério. Ele morre ao final de “Ama-me Com Ternura”, é ele mesmo em “A Mulher Que Eu Amo” mais ou menos ele no fraco “O Prisioneiro do Rock”, um ator de verdade em “Balada Sangrenta” (seu melhor filme, provavelmente). Em todos esses filmes, mesmo quando basicamente veículos para aproveitar sua popularidade, há uma seriedade inerente, um certo respeito à sua história e ao mundo em que ele se inseria e estava ajudando a transformar.

Mas em Blue Hawaii Elvis realiza o equivalente cinematográfico à sua entrada no Exército. A partir daí seus filmes se tornam cada vez mais formulaicos e medíocres. São sempre comédias românticas leves, em que ele é um bom moço. Já escrevi sobre isso aqui.

E a partir daí Elvis seria congelado no tempo. Ele demoraria sete anos para sair de 1961, e então seria tarde demais. Até lá houve muita água debaixo da ponte, no entanto.

Em 1967 o mundo era completamente diferente daquele de cinco anos antes, mas a julgar pelos filmes de Elvis é como se a vida fosse exatamente igual. No universo distorcido e infantilizado de Elvis, o tempo não passa. Clambake, por exemplo, é exatamente o mesmo filme que ele fez em 1961, em 1962, em 1963. Philip Larkin para ele não existia. Os hippies não se amontoavam em Hashbury, o Vietnã continuava distante.

Boa parte dos filmes de Elvis parecem acordos com secretarias de turismo de alguns estados. Três filmes no Havaí, três na Flórida, até mesmo um em Seattle durante a Expo 1964. O número de filmes de Elvis ambientados no Havaí só deve ser inferior aos do que começam com uma tomada aérea de um carro numa estrada. Essa era a imagem de Elvis: o arquétipo do roqueiro de segunda naquele limbo entre a derrocada da primeira geração do rock e o surgimento dos Beatles. Mas no final dos anos 60 os Beatles estavam prestes a acabar e Elvis parecia ainda não ter percebido que eles tinham chegado. Como cinema, os filmes de Elvis são uma piada repetida inúmeras vezes. E esse anacronismo vai se aprofundando com o passar do tempo.

Uma grande surpresa foi Change of Habit, em português “Ele e as Três Noviças” (e que lindo o título em português. Não é “Elvis e as Noviças”. É “ele”. Elvis não precisa de mais que isso para ser identificado). É o último filme de Elvis, que jamais voltaria a ser tão magro, e ele aparece menos que Mary Tyler Moore, sua co-estrela. No entanto é um dos poucos que parece se passar no ano em que é lançado, que consegue olhar para fora e ver que há um mundo problemático lá fora, que tenta oferecer uma resposta à realidade. E um dos finais mais gostosos entre os seus filmes, o mais ambíguo, com Mary Tyler Moore indecisa entre o celibato da vocação religiosa e o desejo que a pélvis de Elvis lhe faz queimar nas entranhas.

Mas àquela altura as pessoas já tinham se cansado do mundo de faz-de-conta de Elvis. Ele nunca mais voltaria a fazer um filme, com exceção de dois documentários no início dos anos 70. Quase 15 anos depois, tinha entendido que havia criado um mundo novo em que a permanência não estava mais no cinema.

Mas nada disso impede que eu sorria feliz enquanto assisto a um filme de Elvis.

Diário de guerra

Procurando arquivos antigos deste blog, achei uns textos que comecei a escrever em 2008 e nunca terminei. Era uma espécie de diário de campanha, escrito, se não me engano, para poder comparar depois com os resultados. As exigências da campanha e o cansaço natural acabaram fazendo com que ele durasse pouco mais que os primeiros 10 dias; ou talvez não tenha sido por isso, tenha sido apenas porque melhor que registrar ou comentar uma campanha é fazê-la. O que sobrou está aí. E de repente me vi transportado a uns dias que já tinha esquecido.

***

19 de agosto
Amanhã começa.

Até agora, Almeida Lima tem impressionado pelo volume de campanha. 30 carros de som na rua, dizem que a maioria vindos de Brasília (segundo alguns, presente do Roriz). Gente pra cacete segurando bandeiras nos cruzamentos.

É engraçado que ele, um candidato isolado politicamente, tenha tantos carros de som na rua, tantos cabos eleitorais. Dizem que é o dinheiro de Renan Calheiros e de Roberto Jefferson. Não parece improvável. A não ser que Almeida realmente tenha se dado àquele desfrute, à humilhação de ser chamado de “boneca” em plenário por Tasso Jereissati, sem receber nada em troca.

Mas amanhã é que a guerra começa mesmo.

20 de agosto
Começou. Depois de mês e meio de punheta, de caminhos falsos e verdadeiros, o programa está no ar. A gente fez um programa correto: a biografia de Edvaldo e um resumo das obras desses dois anos, além da sua fala introdutória à campanha. É o caminho mais correto possível, uma apresentação simples do candidato.

Mendonça apresentou uma biografia medíocre, sem emoção, e se amparou no apoio dos sogros, o ex-governador João Alves Filho e a senadora Maria do Carmo Alves — a mulher está em São Paulo se tratando de uma doença grave. Ficou esquisito. Programa mal concebido, mal dirigido e mal escrito. Isso é ruim, eu queria que Mendonça crescesse um pouco e embolasse com Almeida, mas se continuar assim a vaca dele vai para o brejo rápido demais.

Almeida fez basicamente uma biografia longa e a sua própria fala. A biografia é uma coisa bisonha: filmada em preto e branco, com atores. Falso, artificial. O texto é bem escrito, mas a insistência em mostrar que o sujeito vendia cajus quando era criança é uma bobajada: hoje o cabra é milionário, comprou uma rádio assim que saiu da Prefeitura, tudo isso soa falso. Como soa falsa a fala dele. O sujeito tem boa impostação de voz, mas tudo nele é fake e excessivamente professoral. Me lembrou Lombardi mandando abrir as portas da esperança. Ele não cria empatia. Almeida acabou incorrendo no erro oposto ao de Mendonça.

Essa nós ganhamos.

21 de agosto
A quali confirmou tudo aquilo que imaginamos. Apresentamos o melhor programa, as pessoas não gostaram da biografia de Almeida, e a única coisa que notaram fora do programa de Edvaldo foi a presença de Maria do Carmo, como uma moribunda. Eu pensava que a fala de João seria mais significativa e teria mais recall. Estava errado.

O Damien transformou o comercial “Vida” em uma peça lindíssima. O belga está se revelando um puta diretor publicitário. E ele nem sabia disso.

Assisti de novo aos programas dos proporcionais [candidatos a vereador]. É bom rir. Mas o melhor é ver que a Ivana, que é cantora, é uma bela apresentadora. Outro talento que a gente descobre. Isso é bom.

22 de agosto
Programa de saúde. Blindagem necessária e valorização do trabalho realizado. Não gostei muito do programa, saiu “picotado” demais, o ritmo não é o melhor possível. Eu acho que o ideal seria um programa mais lento, mais emotivo, mais consistente em termos de informação. Mas comparado aos outros da noite, é bem superior.

Tive um acesso de riso quando vi Mendonça e Maria do Carmo em pé, no programa. Mendonça falava e Maria, em pé ao lado dele, fazia cara de zonza. A impressão que dá é a de que ele está segurando a mulher para que ela não caia; ele parece de ventríloquo e ela parece um boneco mudo. Que coisa bisonha. Gargalhei durante a cena inteira, nem mesmo ouvi o que ele dizia. E quando ele está terminando de falar, a impressão que se tem é a de ele a solta por uns segundos, e ela parece que começa a cair e então ele a segura de novo. Tosco. Acho que nunca ri tanto, parecia uma crise histérica. Talvez seja mesmo.

E o louco do Almeida simplesmente repetiu o primeiro programa, sem tirar nem pôr. Não consigo conceber uma explicação para isso. Apostam aqui que isso se dá pelo narcisismo dele: ele adora se ver, acha que todos adoram vê-lo, e aí empurrou aquela merda. Deus queira que ele continue se achando tão bom.

23 de agosto
Agora é oficial, a gente não pode mais mostrar imagens externas em movimento nos comerciais. Pode nos programas, mas não nos comerciais. A justiça eleitoral é de uma estupidez impressionante. Mas esperar o quê de advogados, afinal? Vamos ter que trocar os pés-de-boi, os comerciais diretos que falavam sobre a obra de Edvaldo. Isso é mais preocupante porque que a última onda do tracking demonstrou um crescimento significativo a partir do dia 19, quando os comerciais entraram no ar. Eles lembraram ao povo o volume e a qualidade das obras de Edvaldo. Agora é descobrir uma solução criativa para contornar esse problema.

A quali confirmou tudo o que esperávamos. Destaque para a rejeição causada pela aparição de Maria no programa de Mendonça. Coitado de Mendonça.

Rosalvo o encontrou no almoço e lhe deu um bom conselho: em vez de bater só na gente, ele devia bater também em Almeida. É Almeida quem está se consolidando como o nome da oposição. Almeida não tira votos da gente, tira votos dele. Até a cor do bloco de oposição, o verde, Almeida tomou deles. Mas duvido que Mendonça siga os conselhos do pândego, e a gente vai continuar apanhando e a porrada não vai surtir efeito.

25 de agosto
Mendonça Prado fez um programa fazendo uma denúncia sobre o Santa Maria. Mostrou uma rua em condições desumanas. Fez o melodrama típico de apresentadores de programas de mundo cão. Alguém devia dizer a ele que a Prefeitura está investindo 66 milhões de reais ali, urbanizando o bairro todo e construindo 2 mil casas. É claro que o bairro está em más condições; se não estivesse, não precisava de obras desse porte. Se ele tivesse visto os programas da gente saberia disso. De qualquer forma, ele deveria lembrar que quem botou aquele pessoal ali, naquelas condições sub-humanas, foi a sogra dele, Maria. A gente acertou em escolher Infraestrutura como o tema de hoje, porque acabamos apresentando a nossa versão na mesma hora, com mais competência, e não fica parecendo uma resposta.

O programa de Almeida parece ter finalmente encontrado um eixo decente: estão mostrando as obras que ele fez há 12 anos, quando foi prefeito. Não têm imagens em movimento — pelo visto não cuidaram do arquivo –, e por isso usam muitas fotos. Aposto que isso vai acabar cansando.

Fico impressionado ao ver como o sujeito mente. Eu sei que ele não fez metade do que diz que fez, mas ele mente e diz a verdade com a mesma ênfase, é impressionante. Não dá para diferenciar.

E nós fizemos um programa perfeito. Perfeito. Modéstia à puta que pariu, o fato é que a gente entende desse babado. Demos um baile nos outros e desmontamos todos os seus argumentos. Mostramos as obras de Edvaldo, o PAC no Santa Maria, um baile.

26 de agosto
O pessoal que fica segurando as bandeiras de Almeida nos cruzamentos não usa mais as camisas verdes com o A de Almeida. Agora nego segura o pau de Almeida sem se identificar. É mais uma estupidez da justiça eleitoral, exigir que o pessoal que trabalha para um candidato não se identifique. Eles acham mesmo que aquele pessoal fica o dia inteiro nos cruzamentos, debaixo de um sol desgraçado, de graça? Qual o problema?

A quali confirmou o chocolate de ontem. O programa de Mendonça foi considerado apelativo, e Almeida conseguiu um certo recall mostrando fotos de suas obras. Eu estava errado, pelo visto, mas continuo achando que esse eixo vai se esgotar e ele vai começar a bater na gente. Não entendi por que não bateu ainda na saúde, porque esse é sempre o ponto mais óbvio. Talvez porque Edvaldo tenha aumentado o volume de recursos próprios investidos em Saúde para 18% enquanto Almeida, que pegou em 6%, baixou para 4%. Esses dados vão ser aproveitados na hora certa, se for preciso. Outra coisa: ontem ele fez um rap sobre a dengue; acho que esqueceu que na gestão dele teve epidemia, sim. Ou então aposta que a gente esqueceu.

E o povo está blindando Edvaldo. Não é a gente, é o povo. Isso é fantástico, por si só e porque é um grande indicativo de vitória. Almeidinha, você não vai ter nem 20% dos votos.

27 de agosto
Programa sobre Educação já na produção, tudo caminhando bem. O programa de Proteção Social ficou lindíssimo. E vai ajudar a resolver uma dúvida minha. Tenho a impressão de que o eleitor anda mais refratário a sentimentalismo barato — o que torna mais difícil uma denúncia como a do Vale do Cotinguiba, em 94. A recepção ao programa de hoje vai ser um bom indicativo. Se bem que há variáveis demais: há uma certa boa vontade em relação a Edvaldo. Mas acho que o segredo está na forma como se faz esse tipo de peça.

29 de agosto
Pela primeira vez, o Mendonça Prado fez um programa quase bom. Eu não sei se é por falta de dinheiro ou por falta de talento, mesmo, mas insistem num formato esquisito: o sujeito o tempo todo no vídeo, plano americano, jogando uma cacetada de propostas. Para começar, Mendonça não é simpático. Para terminar, as propostas soam vagas, excessivamente ambiciosas, parecem promessa típica de político. Tem muito tempo que não faço campanha de oposição, provavelmente nem sei mais fazer, mas se eu estivesse ali faria menos propostas, mas mais conseqüentes, mais detalhadas; mostraria, por exemplo, de onde tiraria o dinheiro. Acho que passa mais credibilidade. Sei lá.

Mas hoje ele resolveu bater no trânsito. Questionou os parquímetros. E disse que vai substituí-los pela zona azul. O programa me soou mais denso. Fizeram apenas uma grande idiotice: chamaram o Cássio Taniguchi — “Olha com quem eles foram se pegar”, disse o Rosalvo — para dizer o que poderiam fazer com a avenida Euclides Figueiredo — justamente uma das grandes que Edvaldo está terminando de recapear agora. E o sujeito se sai com essa: “As calçadas são muito largas, podemos diminuí-las”. Isso não vai dar bom recall, eu aposto.

Almeida deu uma boa porrada na saúde, e bateu de novo na dengue. Acho que o ataque vai surtir efeito; foi pelo menos mais bem articulado que os de Mendonça. Mas aí ele tem que aparecer falando com aquela voz de Lombardi e aquele ar arrogante e pouco confiável. E joga as propostas mirabolantes dele. É impressionante como o programa está ruim.

O nosso programa de Educação ficou lindíssimo. Os drops com dados que o Paulinho criou ficaram fantásticos, espalhados ao longo do programa. A diferença entre os nossos programas e os deles é gritante. Não só no conteúdo, na forma também.

30 de agosto
A quali mostrou que a tirada do Taniguchi foi mal recebida: “E a gente vai andar onde?” Povo 1 x 0 tecnocratas. Lindo. Mostrou também algo que eu não esperava: o povo sabe muito bem que trocar parquímetros por zona azul é, nas palavras deles, “trocar 6 por meia dúzia”.

31 de agosto
Eu estou apostando que Almeida Lima vai terminar em terceiro, que Mendonça Prado vai ultrapassá-lo. Em parte pela conjuntura política, mas em parte porque o programa de Almeida me parece meio desvairado.

Alceu Valença se ofereceu pra regravar o jingle de Aracaju. Estamos chiques. Chique no último.

1 de setembro
Talvez o que mais maravilhe a gente seja a forma como o povo esteja demonstrando carinho por Edvaldo. É algo que ninguém esperava. Eu acho que isso se deve a uma série de fatores. O primeiro é a bênção de Déda sobre Edvaldo; o segundo, a mitificação natural que acontece durante uma campanha; e terceiro o conforto natural que Edvaldo começa a sentir no seu papel de prefeito.

O programa de Mobilidade Urbana ficou redondíssimo. A gente usou o mesmo tema que Mendonça usou no programa de sexta — a diferença é que conseguimos ser levados a sério e ele não.

Mendonça fez o programa de sempre, agora sobre juventude. É um tema do qual eu nunca gostei, por ser limitado demais. Acho que deveria ser tratado sempre em conjunto com outros temas, como uma espécie de tema transversal. Mas alguém deve ter convencido o coitado de que ele tem respaldo junto à juventude, e o sujeito concentrou o programa nisso. Foi um dos seus piores programas até agora. Mostrou também a sua carreata com João Alves. É perceptível que não tinha ninguém, até porque eles não têm mais o dinheiro do Estado para distribuir 30 litros de gasolina para os participantes. Mas pelo menos pode dar a impressão de que a sua campanha existe nas ruas.

Já Almeida voltou a centrar fogo na saúde. Repetiu o programa de sexta, basicamente, tirando as partes que tiveram menos aceitação. É um programa muito ruim, o dele. Quando a campanha acabar eu descubro qual é a equipe. Porque o texto do primeiro programa era muito bom; minha impressão é a de que são bons profissionais em uma circunstância ruim.

2 de setembro
E o Déda viu o programa ontem e disse: “Não tenho nada a acrescentar a esse programa”. É um dos maiores elogios que a gente pode receber. É difícil, para quem nunca viu o cabra, entender o que ele é, ou a sua inteligência e sensibilidade.

Nova pesquisa, agora do Jornal da Cidade/Instituto Soma: Edvaldo com 54,1% dos votos válidos. Bate com os números anteriores. Agora é esperar a da Globo/Ibope, na quinta. Deve dar números semelhantes.

3 de setembro
Engraçado: agora que todo mundo admite a possibilidade de Mendonça ultrapassar Almeida, começo a ter dúvidas da aposta que eu queria fazer. Não sei direito. Talvez porque o programa de juventude de Mendonça tenha sido horroroso, talvez porque parece que nada que ele diga merece ser levado a sério. De qualquer forma, ele está aí como herdeiro do bloco de oposição, talvez suba com isso. Eu não sei, sinceramente.

Sinto falta de um pouco de medo. Não cautela, porque isso a gente tem; mas medo, mesmo, um sentido um pouco maior de urgência.

***

Resumo da ópera: a campanha seguiu por mais um mês. Houve momentos em que me arrependi de ter dito que “sentia falta de um pouco de medo”, e nunca mais digo isso novamente em uma campanha.

A informação sobre a epidemia de dengue durante a administração de Almeida não foi utilizada originalmente no programa, mas em um debate. Eu estava na platéia e vi Almeida ficar com a mesma cara de menino pego em flagrante roubando um pirulito que mostrou ao receber um esporro antológico de Aluízio Mercadante no Senado, em 2003.

(Uma explicação sobre a importância que dávamos à dengue. Em 2008 Aracaju teve uma epidemia, e das grandes. Morreu gente. Mas em abril nós já tínhamos a sensação de que aquilo acabaria sendo uma vantagem para nós, por causa da ação rápida de Edvaldo, e o episódio acabaria reforçando a imagem de Edvaldo como administrador eficiente e forte. Almeida, no entanto, resolveu apostar na dengue. E disse que “em sua gestão não houve epidemia de dengue”. Foi uma das coisas mais estúpidas que alguém poderia dizer. Porque houve uma pequena epidemia, sim — mas se ele não tivesse falado isso não faria diferença, já que à época o combate à dengue não era atribuição municipal. Ou seja, ele tomou para si uma responsabilidade que não era sua, e o tiro saiu pela culatra.)

Mendonça Prado, contando com a força de João Alves Filho, realmente conseguiu ultrapassar Almeida Lima. Deu uma boa subida depois de se sair bem em um debate e, finalmente, aproveitar competentemente esse material no programa. Mas Edvaldo ganhou no primeiro turno.

E eu, mais uma vez, aprendi um bocado com a campanha.

Não costumo rever campanhas, porque depois que passam elas me incomodam, e só consigo ver os erros nelas, meus e dos outros. Mas dia desses revi alguns programas dessa campanha. Embora a minha campanha preferida de 2008 seja a de Kassab em São Paulo, eu tenho que admitir que nós fizemos um belíssimo trabalho. E é isso o que a gente leva da vida.

Educação sexual para meninas

1950
Só depois do casamento, viu?

1960
Experimente.

1970
Experimente, experimente, experimente.

1980
Use camisinha.

1990
Continue usando camisinha.

2000
Continue usando camisinha, mas pode se soltar um pouquinho mais.

2010
Não se deixe ser filmada.

Martin & Lewis

Os franceses liderados pela Cahiers du Cinema idolatram Jerry Lewis — que você deve conhecer se tem mais de 40 anos: foi um dos reis da Sessão da Tarde entre o fim dos anos 70 e começo dos 80. Mas a Cahiers, com todo o respeito que tenho por ela, era capaz de grandes idiotices e gigantescos erros de julgamento — e aí se inclui, por exemplo, eleger “Um Rei em Nova York”, um Chaplin outonal e tristemente patético, um dos melhores filmes de 1957.

Se, por um lado, sua opinião acerca de Lewis serve de contraponto à severidade excessiva de um Bosley Crowther — o então crítico do New York Times que nunca se cansava de esculhambar os filmes de Jerry Lewis e seu parceiro por dez anos, Dean Martin —, por outro vê em Lewis qualidades que ele nem sempre apresenta; e grande parte disso parece ser o resultado do seu próprio dogma de que diretores são autores únicos e indissociáveis de sua obra. Esses franceses são uns loucos, e se se apaixonam por alguém, como se apaixonaram por Jerry Lewis, conseguem elucubrar arcabouços teóricos dignos da inveja de dois Kants, três Hegels e um Kierkegaard.

Tenho a impressão de que, em grande parte, a discrepância entre as avaliações que americanos e franceses fazem de Jerry Lewis se deve ao fato de que cada um viu coisas diferentes. Talvez os americanos sejam mais reticentes em relação aos seus filmes (com e sem Dean Martin) porque vêm antes de mais nada o humorista, que conheceram no clube Copacabana e, principalmente, no programa de TV The Colgate Hour, nunca exibido no Brasil mas hoje disponível nas redes de torrents e no YouTube, e que deveria ser visto e estudado por qualquer pessoa que goste de comédia.

Assistir a esses programas possibilita entender o que significou a dupla, o que era a anarquia caótica do humor de Jerry Lewis, sustentada pelo escada magnífico e generoso que era Dean Martin. É possível entender por que os americanos mais tarde torceriam o nariz para Lewis: porque Hollywood o engessou com roteiros sempre inferiores à sua capacidade de comédia, tirou sua espontaneidade, mascarou sua essência subversiva. A impressão que fica é essa: para os americanos, antes de cineasta Jerry Lewis é um humorista que nunca pôde se realizar completamente no cinema, e é daí que vem a sua má vontade.

Aos franceses e ao resto de nós restavam apenas os filmes. Por isso me parece que o padrão de julgamento dos franceses é eminentemente cinematográfico, ao contrário do americano. É mais puro, talvez; mas ao mesmo tempo mais condescendente, porque se consegue encergar nos filmes a genialidade do humorista, para isso precisa relevar os seus defeitos nesse meio. A carreira de Lewis como cineasta é relativamente longa; a relação entre bons e maus filmes é extremamente desigual.

Os franceses parecem analisar Lewis de maneira parcial e extremamente passional, é verdade. Ainda assim o julgamento americano parece muito exagerado. Certo, o próprio Lewis sempre admitiu que seus filmes jamais conseguiram capturar a genialidade anárquica de seus shows ao lado de Dean Martin (segundo ele, o que mais se aproxima disso é “O Biruta e o Folgado”); lembra também que Martin foi o mais prejudicado pelos roteiros esquemáticos que foram obrigados a engolir. Ele tem razão. Mas quer saber mesmo o quanto eles eram geniais, até dentro desse esquematismo hollywoodiano? Assista a um filme de Abbott & Costello.

No início dos anos 40, Abbott e Costello foram um sucesso tão grande nos Estados Unidos que praticamente salvaram a Universal da falência. A América os considerava engraçados e brilhantes. Talvez fossem, mesmo. Os brasileiros puderam vê-los até os anos 70, na série de TV produzida nos anos 50 e exibida pela Tupi. Mas se você assiste a um filme deles depois de conhecer Dean Martin e Jerry Lewis, não pode deixar de se perguntar como aquelas titiquinhas conseguiram salvar um estúdio cinematográfico. Eu, pelo menos, nunca consegui ver a graça do esquete “Who’s on first”, famosíssimo e sempre citado. Do resto, então, nem se fala.

Comparados a Abbot e Costello, mesmo no cinema Martin & Lewis eram incontroláveis, absurdos, geniais. Mais que isso, eram inovadores: sua noção de ritmo era extremamente moderna, rápida. Se a estrutura básica do seu ato era a mesma de outras duplas que vieram antes, como Laurel & Hardy e os próprios Abbott & Costello, eles subverteram — e a palavra não é usada pela milésima vez neste texto por acaso — a fórmula, estendendo-a ao limite e agregando a ela um frescor que, na minha opinião, jamais tinha sido visto antes.

Lewis era anárquico, incontrolável. Mas não é a anarquia dos Irmãos Marx. Se estes são intencionalmente deletérios, a subversão de Lewis vem da incapacidade de adequação ao mundo. Não há má vontade em Jerry Lewis: ele é um ingênuo que tenta fazer as coisas da maneira certa, mas que simplesmente não consegue porque não pode evitar fazê-las do seu próprio jeito.

A subversão presente em Jerry Lewis não era politicamente óbvia — ele jamais faria um filme como “Tempos Modernos”, por exemplo. Em vez disso, o seu era um tipo talvez mais perigoso: subversão social e de costumes. Tudo em Lewis é insolência, rebeldia e incapacidade de se adaptar, ainda que de forma inconsciente e involuntária. Seus personagens não são como os de Charlie Chaplin, em que há, embora de maneira sutil e graciosa, uma atitude clara de confronto com o mundo. Tudo o que os personagens de Jerry Lewis querem é se encaixar uma sociedade com padrões claros e perfeitamente compreensíveis — e no entanto, inadvertidamente, são eles que acabam ameaçando sua estrutura.

Em “O Meninão”, refilmagem de um filme de Billy Wilder, esse aspecto subversivo de Lewis está bem claro em uma cena que pode servir de ilustração para toda a sua obra: ele interfere em um treino de educação física e, enquanto tenta dar o melhor de si, leva o grupo de garotas ao caos absoluto, destruindo qualquer possibilidade de ordem. O mundo não pode funcionar direito se Jerry Lewis está nele.

É até possível lembrar um pouco dos irmãos Marx a partir dessa capacidade de gerar o caos, embora a comparação com Chaplin fosse mais adequada — e ainda assim as duas seriam insuficientes. Mas Lewis tem atrás de si outras tradições, principalmente a de Bob Hope e Bing Crosby, e uma delicadeza que os Marx, definitivamente, não tinham.

Grande parte do sucesso da dupla Martin & Lewis, claro, se devia a Dean Martin. Ele era o par ideal para Jerry Lewis; provavelmente seria para qualquer outro. Generoso, despreocupado, Martin estava à vontade em seu papel — mais ou menos o de Dedé Santana em relação a Renato Aragão, com mais categoria, mais presença e mais elegância, e um ar de cinismo absolutamente verdadeiro e cafajeste. Dean Martin dava a Jerry Lewis todo o suporte e o contraste necessários para que ele, um talento cômico como poucos outros, pudesse brilhar. E fazia isso sem nenhum problema. Dean Martin era autêntico, coisa rara em Hollywood, e um sujeito que sentia não dever nada a ninguém, nem estava preocupado com isso. Mais tarde, seria o único membro do legendário Rat Pack a não ter medo de Frank Sinatra.

No início dos anos 2000 Jerry escreveu Dean and Me, memórias dos seus anos ao lado de Martin, morto em 1995. É um livro surpreendentemente amoroso, e uma das mais belas homenagens que alguém já fez a seu parceiro. Lewis lembra de Dean Martin com amor genuíno, admiração, respeito. É um livro suficientemente digno para dar conta de boa parte de suas imperfeições, da sua enorme parcela de culpa no rompimento dos dois; é honesto ao ponto de admitir sua própria decadência a partir dos anos 60 sem colocar a culpa no vício em Percodan, um analgésico barra-pesada que tomava para aliviar dores fortíssimas nas costas, e sim no divórcio definitivo entre o seu estilo e os novos gostos da audiência. Obviamente Dean and Me não conta tudo sobre a personalidade detestável de Lewis, a sua capacidade de ser um monstro, sua crueldade e seu egocentrismo aterrorizante (para isso há as biografias não-autorizadas). Mas seria injusto exigir mais do que ele oferece.

A reconciliação dos dois, ao vivo em pleno palco e mediada por Frank Sinatra, é um daqueles momentos inesquecíveis da TV. É genuinamente emocionante. (Se você vai assistir, é preciso entender uma das primeiras frases que Lewis diz a Martin, e que o faz chorar: “Are you workin’?” foi a primeira coisa que Lewis perguntou ao parceiro quando se conheceram, em 1946. O judeu a que ele se refere é Sammy Davis, Jr. E não, Dean Martin não está bêbado.)

Deveria ser ponto pacífico: Jerry Lewis é um dos principais comediantes americanos do século XX. Mas como cineasta, seu papel às vezes é exagerado.

A avaliação mais equilibrada, entre as que conheço, é a de Andrew Sarris, morto há pouco tempo. Ele aponta defeitos claros nos filmes de Jerry Lewis: irregulares, sem a sofisticação verbal que apresentava nos palcos. No entanto, o maior problema diz respeito à narrativa.

Entre o melhor de Jerry Lewis no cinema estão os filmes dirigidos e escritos por Frank Tashlin — um dos maiores diretores de comédia da história de Hollywood, autor de filmes geniais como “Sabes o Que Quero” e “Em Busca de Um Homem”, e nunca suficientemente valorizado. Isso é inquestionável. Mas entre os filmes que Lewis escreveu e dirigiu, e que fizeram sua fama de grand auteur diante dos franceses, apenas três ou quatro se mostram à altura (nome aos bois: “O Terror das Mulheres”, “O Professor Aloprado”, “O Otário”, “O Mensageiro Trapalhão”) — e mesmo esses parecem dirigidos por Tashlin. Lewis foi um excelente discípulo de Tashlin, inclusive se apropriando do seu pendor para o exagero, para as referências ao desenho animado.

Sem Tashlin escrevendo seus roteiros, os filmes de Lewis tendem a ser coleções mal costuradas de gags — muitas brilhantes, outras nem tanto. Eventualmente, como em “O Mensageiro Trapalhão” e “O Mocinho Encrenqueiro”, Lewis abandona qualquer pretensão à unidade narrativa. Nem sempre é algo que funciona: porque se isso possibilita a desconstrução estrutural de seus filmes, por outro lado limita o seu escopo narrativo. Claro que é impossível negar o brilho de “O Mensageiro Trapalhão”, uma sequência algumas vezes genial de gags que provavelmente é o filme mais subestimado de Jerry. Mas ele nem sempre consegue criar uma estrutura forte o suficiente para dar sentido aos seus esquetes, ou esquetes suficientemente bons para dar sentido à mediocridade ou falta de estrutura. Quando consegue, como em “O Otário”, o resultado é brilhante; mas nem sempre conseguia, e aí estão “A Família Fuleira” e virtualmente todos os filmes posteriores a 1965 para provar.

(Um bom resumo do melhor de Lewis está neste post do André Setaro)

Talvez nada disso realmente importe. O que importa é que Jerry Lewis tem alguns filmes em sua bagagem de cineasta que merecem todo o respeito, e isso é muito mais do que se pode dizer da maioria dos diretores que algum dia colocaram uma câmera na mão. Ele encantou pelo menos duas gerações de espectadores de uma maneira que já não é mais possível. E isso deveria ser suficiente.

Porque este texto, no fundo, é apenas para dizer que Jerry Lewis (cujo nome, não canso de repetir, ainda pronuncio “Líus” em respeito à criança que fui) foi, para mim, o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Nunca ao par de Charles Chaplin, mas obviamente mais criativo e diversificado que Harold Lloyd. E mais engraçado que a grande maioria dos humoristas que o seguiram. Ao longo dos anos aprendi a admirar filmes como, por exemplo, Safety Last!, ou uma ou outra comédia mais sofisticada, mesmo aquelas bobagens que Woody Allen tem feito recentemente e recebem elogios desproporcionais. Mas amor, mesmo, bem, isso está reservado a filmes como “Bancando a Ama Seca”. Amores de infância são inesquecíveis.

 

O puto do Amaral

Já falei antes, o puto do Amaral é o meu poeta entre todos os que já conheci, primeiro porque ele tem “uma pinimba com os ingleses”, segundo porque fez gato e sapato da vagabunda da musa, essa que nem olha para mim.

O Amaral é o meu poeta porque seus cabelos brancos me enchem de inveja e esperança, ainda mais quando fala de tempos que não vivi e que, cá entre nós, se vivesse eu estaria do outro lado. Eu diria: “Esse bando de maconheiros metidos a intelectuais estão precisando é entender a luta do proletariado”. (Que bom, poeta, que os tempos passaram e eu deixei de ser tão burro.)

Percebo agora que a maioria das pessoas que lêem isto aqui não sabem quem é meu poeta, quem é Amaral Cavalcante. Então eu digo: é um filho da puta de uma cidade do interior de Sergipe, um pivete de alma ruim que botava guizos em urubus, e que veio para Aracaju e se tornou poeta de escol e de talento único.

Duvido que ele saiba que sei tanta coisa dele, porque o mais comum era terminarmos a noite bêbados aos gritos: “Balzac! Balzac!, seu velho gagá!” “Hemingway, seu idiota ignorante!”

Grandes noites.

A Amaral devo um texto sobre a sua entrada na Academia, no rol dos velhinhos que no papel não morrerão nunca. É que eu não soube o que dizer, e por isso peço desculpas. Amaral é muito maior que a Academia, e o meu medo sempre foi o de que aquele bando de macróbios à beira da morte o dome e o faça menor do que é.

Mas por causa disso, dessas minhas cismas esquisitas, o puto não sabe o quanto o admiro. Pelos poemas, sempre: aos 20 anos comprei uma antologia de poetas sergipanos e com a arrogância da idade escrevi notas no livro desancando quase todos os poetas — menos Amaral e uns poucos, ainda sem o conhecer. “Morreu empanzinado de estrelas” — quem morre assim, cheio de estrelas no bucho? Mas a minha admiração vem também de outras plagas, é também pela maneira como levou a sua vida, pela maneira como fez o que o coração lhe mandava, pela elegância no viver emoldurada pelos seus cabelos brancos — é, poeta, às vezes azulados. E porque é preciso ser diferente para desencavar umas crônicas de leveza e lirismo imensos de coisas de há tanto tempo, como essas memórias de uma época em que o cinema realmente valia a pena, ainda mais que os filmes:

Em Itaporanga, onde vivi a meninice, era no Cine Operário, uma vetusta construção erguida pelos padres na rua principal, desgraçadamente inacabada: não tinha cadeiras nem cortinas. Em dias de exibição, anunciada pelo alto-falante da igreja na hora do Angelus, a cidade desfilava a caminho do cinema, cada família com seus assentos mais nobres trabalhados em jacarandá, de palhinha à francesa, raras chipandelle, algumas poltronas e outros móveis de status duvidoso. A família, viesse de onde viesse, sempre quebrava pela rua principal, desfilando com seus acólitos carregados de trambolhos.

A paróquia só tinha três filmes: “Marcelino Pão e Vinho” de chorosa memória, o indefectível “Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo” — que muita gente já não assistia porque o galã morre no final — e “Joana d’Arc”, com a inesquecível Ingrid Bergman de rosto redondo e dolorosos sofrimentos.

Certo dia, cansado de vê-la torrar na fogueira, um moleque aproveitou o momento em que a pobre condenada voltava-se para nós em doloroso close, pé ante pé subindo os degraus do cadafalso, o fogo já crepitando, o rostão pedindo um sinal de Deus… e gritou: “Joana!” Ela olhou. Era a última esperança, todo o Cine Operário aguardava um milagre! Ai o moleque gritou: “Nada não, pode ir! ”

Joana prosseguiu resignada ao som das gargalhadas infiéis, as labaredas da inquisição lhe sapecando os cabelos.

Já em Aracaju (cheguei aqui na década de 1960) eram as matinês do Cinema Palace o point obrigatório da maluquice reinante. Íamos curtir a lombra do domingo à tarde e desfilar roupas macabras com o bolso cheio da erva e a cabeça alhures, onde quisessem Godard, Fellini, Pasolini, Antonioni… Todo mundo ia e era ali que neguinho aliviava o gozo guardado — no escurinho do cinema.

Consta que quando exibiram “O Candelabro Italiano” um guarda empregado ali para conter os arroubos da safadeza, que ameaçava os bons costumes no recinto, estranhou um movimento nas poltronas da penúltima fila e fez valer sua autoridade moral, gritando com voz cavernosa: “Moça, solte a pica do rapaz!”

Pronto, acenderam-se as luzes, quem tinha a coisa de fora nem teve tempo de guardar e a moça, coitada, soltou a moleza e fez de conta que não era com ela, sob aplausos gerais.

Eu escolho meus poetas a dedo.

João e Maria

A sétima taça de vinho acaba, a segunda garrafa chegou ao último quarto. São as vantagens de beber sozinho, você bebe o quanto quer, até quando quer. Eu gosto de beber, mas gosto mais de beber sozinho porque assim não há nenhum bobo para interromper e dizer olha, você bebe muito.

Nessas horas a gente sorri e finge que não ouviu, mas agora isso não é necessário, e o computador toca “João e Maria”, com Chico Buarque e Nara Leão.

É quando vêm as lembranças, e são tantas, tantas, vêm uma atrás da outra, atropelando-se como bêbados trôpegos, cada uma delas dizendo é a minha vez, é a minha vez, lembra de mim, lembra de mim.

1978, ônibus do ISBA, o Instituto Social da Bahia. Dizem que era um bom colégio na época, pelo menos minha mãe diz. A diretora era Raulita Espínola e o filho dela era um filho da puta que, nas aulas de judô, se recusava a ser derrubado por mim — gente assim não presta, acredite. Não o conhecia, claro, e nunca me fez nada — mas jamais vou perdoá-lo por não se deixar derrubar por mim.

Fofoletes tiradas das caixas, camisas com escudos que pareciam o da polícia do Rio, as meninas conversavam excitadas entre si, um dia ainda vou descobrir o que as excitava tanto, o que as fazia conversar baixinho e dar risadinhas. Um dos meninos, o mais exibido, surfava no ônibus, equilibrava-se nas curvas, sorria impávido diante das tribulações automobilísticas; era o descolado daquele grupo heterogêneo, e era simpático como eu nunca fui — e na época eu não tinha ainda os traços de impaciência e de arrogância que depois deixariam claro a quem interessar pudesse que eu não ligava de verdade para eles; na época eu acharia legal ser como aquele garoto metido a engraçadinho que surfava no ônibus, só não achava que o esforço valesse a pena.

E elas, as moças com fofoletes fora das caixas, começavam a cantar “João e Maria”. Na minha casa ninguém ligava para rádio, e foi ali, no ônibus do ISBA, que ouvi essa música pela primeira vez; ou talvez não, talvez tenha sido apenas ali, na voz daquelas meninas do ISBA, que prestei atenção à canção que talvez tivesse ouvido antes, nos Trapalhões; são duas lembranças tão próximas entre si e tão distantes de mim agora, e elas acabam se tornando uma só, porque me dizem que foi então, naquele tempo. Foi então.

Ouvir a canção agora me lembra de ter vontade de chorar. Mais de 30 anos passados, tanta água debaixo da ponte e tantas histórias para contar, e mesmo assim ela ainda é diferente de todas as canções. Nenhuma música jamais me fez ter vontade de chorar — só “João e Maria” quando eu tinha sete anos, e mesmo hoje não sei por quê.

Porque ela ainda não tinha sumido no mundo sem me avisar. Ela ainda não havia me ensinado o que era um bedel, eu ainda não a havia coroado e ela ainda não andava nua pelo meu país — não, talvez andasse nua que de moças nuas eu gostei sempre; mas nesses dias ela talvez apenas andasse pela minha cabeça, talvez ela apenas atravessasse rápido a minha imaginação, um vulto, apenas, uma mancha deliciosamente negra criando um pequeno ponto de atenção. Para lá deste quintal ainda não era uma noite que não tem mais fim, porque isso ainda não era concebível para mim: as noites, eu sabia, jamais duravam para sempre, e terminavam no nascer do sol glorioso que se via do lado esquerdo do Farol da Barra.

Ela ainda não tinha me feito escrever sem sequer lembrar quem foi ela.

Se algum dia tive alguma dúvida sobre o talento de Chico Buarque, ela foi embora no dia em que depois de muito tempo sem ouvir essa música — ainda não havia internet, as coisas ainda eram raras e preciosas — tive vontade de chorar. Ela me lembrou a criança de dez, quinze anos passados; isso não tem preço.

Chico Buarque diz que não faz ideia do que quis dizer quando escreveu que “o meu cavalo só falava inglês”; e era tão lógico e simples para mim, é claro que o meu cavalo só podia falar inglês. Esse era o meu mundo, o mundo da televisão e dos seriados, e nesse mundo as pessoas falavam inglês e eram dubladas — mas olha, a gente sabia que elas falavam inglês, e que eles eram dublados na TV e que era por isso que em tantos filmes as palavras pareciam não combinar com as bocas que se moviam quando não falavam, e assim também falava o meu cavalo, era só assim que ele podia falar.

“João e Maria” me faz melancólico. Mas acima de tudo me faz lembrar de uma Salvador que existiu em um tempo em que já não era e ainda não era tão chique chamá-la de cidade da Bahia, uma época em que a vida era simples e tranquila — a época simples e tranquila que todos têm na infância, em qualquer tempo, em qualquer ano, em qualquer vida.

Vem, me dê a mão, a gente agora já não tinha medo — e não, você não sabe mais o que é não ter medo. Mas, ainda pior, talvez você nunca tenha sabido. Talvez seja isso que poderia me fazer chorar ao escutar essa música: a esperança sempre irrealizada de que nunca houve um tempo em que não tivemos medo; ou pior, o de que houve um tempo em que não sabíamos que medo era aquele que sentíamos, o medo do ET no vão da escada, o medo da noite caindo na Avenida Sete, o medo do carro morrer na subida da Manoel Dias.

No tempo da maldade eu já tinha nascido.

No tempo das diligências

Hoje estou cansado e vou passar a noite em casa. Vou aproveitar para beber uma garrafa de vinho, ler pelo menos uma das revistinhas antigas da Disney que baixei ultimamente e assistir a algum filme. “Sartoris” fica para depois.

Queria mesmo era ver um western. Nos últimos dias meu interesse pelo gênero se reacendeu, apesar de tragédias recentes como The Lone Ranger. Sempre foi um dos meus gêneros favoritos, como já disse algumas vezes neste blog, mas depois que finalmente assisti a Heaven’s Gate, o filme de Michael Cimino que destruiu a United Artists e que é o maior caso de filme-malfeito-que-poderia-ser-grande da história, a vontade de ver faroestes ainda desconhecidos parece ter recrudescido. Também a de rever alguns grandes filmes, e talvez hoje reveja “Consciências Mortas”.

O western sempre fez parte da minha vida. Era um gênero tão comum na TV dos anos 70, comecinho dos 80. Acho que já tinha sido mais; anos antes havia um número aparentemente infinito de seriados de bangue-bangue exibidos toda semana, quase todo dia. Mas já não peguei “Bat Masterson”, “O Homem de Virgínia” ou “Chaparral”, não que eu lembre. De qualquer forma, o western ainda era parte importante do imaginário das crianças, e brincávamos de mocinho e bandido e eu tive sucessões de revólveres de espoleta — que aparentemente fizeram de mim um serial killer com 357 mortes nas costas. Pensando bem, talvez reveja “Da Terra Nascem os Homens”, um filme gigantesco de William Wyler que poderia estar sem problemas em qualquer lista de dez melhores westerns da história.

Se havia menos seriados sendo exibidos, para garantir sua programação a TV aproveitava o acervo de mais de meio século de cinema falado. Isso significava que se apoiava, principalmente, na produção americana dos anos 50 — talvez a última grande década do cinema hollywoodiano, e certamente a última grande década do studio system. E boa parte da produção dos anos 50 era, oras, composta de westerns. Acho que podia ver novamente “Um Certo Capitão Lockhart”, porque cowboy mais típico que James Stewart, para mim, só John Wayne.

Se a Sessão da Tarde hoje é motivo de deboche, naqueles dias exibia bons filmes com regularidade. Filmes em preto e branco ainda eram comuns, nem todo mundo tinha TV em cores (trívia: as TVs em preto e branco só deixaram de ser fabricadas em 1997), e a média da grade de programação era muito superior ao que se tem hoje. Por exemplo, vi “Uma Aventura na África” na Sessão da Tarde, além de tudo o que Chaplin fez de importante. Logicamente, nessa época era virtualmente impossível evitar a exposição aos bangue-bangues. A maior parte das pessoas não ligava para eles, claro, e estava mais preocupada com dramas contemporâneos; outras, que sempre gostaram de cavalos e de estourar coisas, se apaixonavam. Ainda hoje, a ideia do cowboy errante com um rifle em sua sela, um cobertor na garupa do cavalo e um cantil ao lado dos alforjes é uma das principais imagens da aventura para mim. Mesmo assim talvez veja “Josey Wales — O Fora da Lei”, um pouco diferente desse arquétipo, mas um filme brilhante, talvez o mais subestimado de Clint Eastwood, e dialoga maravilhosamente com o seu tempo.

O fato é que rever westerns me faz voltar a um blog que, nos últimos meses, se tornou uma verdadeira referência para mim: o Westerncinemania.

O Westerncinemania, se não o melhor, é um dos melhores espaços na web brasileira sobre westerns. Levado adiante pelo Darci Fonseca, é um grande repositório de informação sobre westerns, conhecidos ou não. O conhecimento do Darci sobre westerns é enciclopédico; e o blog parece ter formado uma comunidade de apreciadores e fanáticos que discutem o gênero com propriedade e conhecimento impressionantes. É um dos poucos lugares onde vi, por exemplo, a apreciação equilibrada de um filme superestimado como Johnny Guitar. Seu penúltimo post, sobre o belíssimo “O Preço de um Homem”, é um bom exemplo do que o blog tem a oferecer. “O Preço de Um Homem” tem um Robert Ryan brilhante no papel de vilão. Pode ser esse.

Como eu disse, uma garrafa de vinho e um western. A noite está ganha.

***

Devo fazer parte da última geração que cresceu assistindo a filmes de faroeste. Esse pessoal mais novo deve ter visto alguns, fãs de cinema veem uns clássicos aqui e ali, John Ford e Howard Hawks; mas seu interesse é o cinema, não é o Velho Oeste. A minha geração, não: ela tinha na fronteira um referencial não apenas estético, mas ético também. Víamos faroestes o tempo todo, na Sessão da Tarde, no Bangue Bangue à Italiana, Sessão Western. Bons e ruins, claro; mas eram tantos filmes exibidos que, mesmo com o bocado de fitas ruins que faziam a base da programação, provavelmente vi a maior parte dos grandes clássicos do western ali, na TV.

É fascinante a maneira como os americanos, através do cinema e do faroeste, criaram para si mesmos um mito fundador que os países europeus só conseguiram depois de muitos séculos de história. O pistoleiro se tornou o cavaleiro andante; a prostituta, a donzela em perigo; o vaqueiro, o fiel vassalo. Deturpando e mitificando sua própria história, apagando seus crimes e embelezando suas pequenas tragédias, os Estados Unidos criaram um corpo de memórias em umas poucas décadas que lhes deu dignidade, respeitabilidade e um profundo senso de identidade.

A história americana é a história da busca do oeste, desde quando esse oeste era o Kentucky. Mas foi ao roubar ao México uma faixa de terra considerável — Arizona, Novo México, Califórnia — que os Estados Unidos se tornaram o que são hoje. Aquela foi a primeira guerra imperialista americana, uma guerra sem nenhuma justificativa ética ou moral além da cobiça e da necessidade de expansão territorial. Vergonhosa até mesmo para os americanos — nomes como Abraham Lincoln, então deputado em início de carreira, e Horace Greeley se pronunciaram contra ela —, a guerra tornou o “destino manifesto” uma realidade e transformou os EUA numa potência territorial.

E foi ali que se desenrolaram as últimas guerras contra os índios. O cinema se encarregou de mitificar e colocar para sempre na história tribos das Grandes Planícies como Apaches, Sioux, Cheyennes, Comanches, em menor medida os Navajos. Foram essas tribos que barraram a expansão espanhola na América no Norte, que atrapalharam durante décadas a expansão americana, e sua importância jamais poderia ser subestimada. Mas apesar da mitificação hollywoodiana, a grande guerra americana contra os índios se deu no leste. Chocktaw, Shawnee, Creek, Cherokee, Seminole, Chickasaw — tribos menos conhecidas mas vilipendiadas de uma maneira que, exemplificada na Grande Trilha de Lágrimas, deveria envergonhar cada americano, como o tratamento dado aos nossos guaranis caiovás deveria envergonhar os brasileiros.

No meu caso, o amor aos westerns acabou degringolando em uma curiosidade estranha sobre o processo histórico de conquista. Ainda são, para mim, os melhores capítulos da história americana (além de Jamestown com seus casos de canibalismo com a fleuma inglesa e, um pouco menos mas mais importante, Plymouth). Minha antipatia ao que representa a América não se estende à história de sua fundação, mesmo os tantos momentos vergonhosos como o Tratado de Guadalupe. A maneira como, em menos de um século, tomaram conta de praticamente todo um continente é impressionante e, dentro de seu contexto, ao menos parcialmente invejável.

Os comanches são talvez meus personagens favoritos. De tribo vagabunda e humilhada por milênios, em menos de 100 anos se tornaram a nação mais poderosa das Grandes Planícies americanas. Foram eles, junto com os apaches, que barraram a expansão espanhola na América do Norte, e apenas a invenção do revólver de ação dupla possibilitou aos americanos vencer definitivamente a guerra contra eles e os sioux. E tudo isso por causa de uma nova tecnologia: o cavalo.

A chegada do cavalo não teve tanto impacto, por exemplo, no leste americano. É compreensível: numa região com vegetação densa, o bicho não faz tanta diferença. Mas em uma pradaria quase infinita, ele coloca tudo em um nível diferente. Ao dominar o cavalo como pouquíssimas outras tribos, os comanches adquiriram um poder que a maioria dos outros índios americanos jamais sonharia em ter.

Hoje em dia é feio, em muitos círculos, falar qualquer coisa positiva dos colonos americanos que se aventuraram rumo ao oeste. A maneira como seu país roubou terras valiosas aos mexicanos e praticou um dos mais vergonhosos casos de genocídio contra os índios se sobrepõe a qualquer de suas qualidades, e a isso junta-se um processo de “beatificação” do índio, que passa a ser visto, de maneira excessivamente maniqueísta, apenas como o bom selvagem de Rousseau vítima de brancos odiosos.

Mas o fato é que a americana é uma história bela. Uma história que, apesar de tudo, é também a das pessoas que abandonaram tudo em busca de uma vida melhor. E que sofreram, e muito. Essa história é fácil de entender — e infelizmente, mais fácil ainda de mitificar erroneamente. Crescemos com esses estereótipos falsos: do cowboy galante (mal sabíamos que no Oeste se matava mesmo era na tocaia e atirando pelas costas), do índio morto em guerra aberta, do valor pessoal diante dos grandes interesses econômicos. Mas mesmo que tudo isso seja falso, há também o outro lado: o do cotidiano criado por gente que, apesar de branca e de fazer parte de um dos mais canalhas processos históricos, tinha também o seu valor pessoal. A história acaba sendo obra de gente que, apesar de branca, era corajosa e arriscava, ali, não apenas suas posses, mas também suas vidas.

O western conta um pedaço dessa história. Deturpa tudo, repito. Mas como cinema, como entretenimento, é absolutamente fantástico. Para algumas pessoas, o western é a própria definição do cinema, porque é apenas nele que pode existir em sua plenitude. E quem pensa assim tem toda a razão.