O pix do Moisés

Não adianta continuar a piadinha do pix para disfarçar a pancada que você levou, mas se queres um empréstimo, podemos conversar.

Moisés, não era piadinha.

Já que você finalmente concordou em passar o pix que prometeu, pode fazer para a Childhood Brasil, uma ONG com foco na prevenção e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Tenho certeza de que, como estava disposto a me conceder generosamente um empréstimo, você vai fazer uma doação substancial. É Natal, o décimo-terceiro cai já na conta. Tenho certeza de que até o Michael Jackson vai ficar grato a você.

O CNPJ da Childhood Brasil é 03.653.644/0001-77, e eles aceitam pix. Se quiser se identificar, o link acima leva à página de doação deles.

Se fizer, prometo que leio o seu comentário (muito longo e, a julgar pelos anteriores, muito chato, me perdoe) para saber a pancada que levei. Vai ver você até tem razão.

De volta a Neverland com o Moisés

Para o Moisés, se anda como pato, grasna como pato, nada como pato e se chama Michael Jackson, é um dromedário.

Foi por isso que ele deixou alguns comentários defendendo a honra do finado comunista, revoltado com a “pomposidade” deste velho e cansado blogueiro. Ele foi bem claro em sua revolta: “Se Michael Jackson abusou de crianças ou não, não se sabe, mas você parece saber.”

É, o Moisés ficou realmente chateado com o post.

Confesso que me assustei quando fiquei sabendo que o Moisés fica imaginando “como esse sujeito se julga a luz que guia a humanidade, assistindo a programas policialescos. Eu pago pra ver ele me responder, quero ver até onde ele é capaz de ir com seu mirabolismo alienativo”. Juro que não sabia que o Moisés estava preocupado de maneira tão visceral com os orifícios onde Michael Jackson enfiava o pinto.

Mas ele disse que pagava para ver, e a coisa aqui está difícil, qualquer coisa está valendo para descolar um troco.

Sua indignação o fez jogar até a ONU no meio de argumentos em que diz estar escrevendo não para livrar a cara de Jackson, mas em defesa dos direitos humanos. Cá entre nós, defender os tais “direitos humanos” de um defunto velho de 15 anos, e isso durante uma guerra genocida como a que Israel promove contra a Palestina, parece brincadeira. Mas cada um dá a cada assunto a importância que quer. Não dá para tirar a razão do Moisés.

Na verdade, como ele e a infeliz e frustrada torcida do Flamengo sabemos, eu não sei de nada além do que os jornais e alguns filmes dizem. Ele também não, mas não alega saber. Não precisa. Sua afirmação é retórica e acusatória, e é aqui que o Moisés se revela um grande maroto. É claro que não há provas. Para isso, Jackson gastou 23 milhões de dólares, mas voltaremos a esse assunto mais adiante.

Num tribunal do Estado, essa ausência eliminaria a possibilidade de condenações. E por apostar nisso, o Moisés adota uma postura típica de advogado de defesa, fazendo chicana a partir do argumento da falta de provas. O que ele espera, aqui, não é provar que Jackson fosse inocente: é evitar que as pessoas concluam que ele era culpado.

Mas aqui fora as coisas são diferentes, e acho que ele sabe disso. Isto aqui não é um tribunal do júri. Ninguém tem obrigação de apresentar prova de nada. Trata-se, aqui, de opinião, se possível a partir de fatos e evidências. Como dizia uma vizinha de minha avó, do alto de sua sabedoria de idosa provinciana: “Malfeito é da conta de todos nós”.

Por isso, o que temos são convicções, e é disso que trata o post. A minha, baseada nas evidências disponíveis, é a de que Michael Jackson era um pedófilo e um ser humano bastante perturbado. A do Moisés, contra todas elas e disfarçada sob o manto da dúvida e da presunção de inocência, é a de que não. Ele parece realmente achar que um sujeito de meia idade que constrói Neverland, briga e paga caro para dormir com meninos, destroça o próprio nariz e gasta milhões em brinquedos de uma só vez é absolutamente normal.

Dizem que, de perto, ninguém é. Mas tem uns que, ó, pelo amor de Deus.

De Jackson, ao contrário do que diz o Moisés, tudo o que não se tem é um julgamento precipitado. A novela das denúncias de pedofilia se estende há 30 anos. Se o mundo acha que Jackson gostava de criancinhas, não é por uma denúncia isolada. Foram várias — e a cada novo escândalo, a máquina de relações públicas de seu espólio se esforça em dizer que não há provas, e descredenciar os acusadores. A estratégia é simples: pede-se o ônus de uma prova impossível de ser conseguida e desqualifica-se os envolvidos.

Aparentemente, isso é ainda mais fácil quando se vê os pais de alguns dos meninos de Michael. O problema é que ninguém tem nenhuma dúvida de que os pais de tantos envolvidos eram vigaristas e golpistas: é justamente deles que falo no texto, do tipo de gente com quem Jackson precisava se envolver para satisfazer seus apetites. Quando Moisés fala que o pai de um é isso, a mãe do outro é aquilo, ele apenas chove no molhado, e repete um roteiro previsível.

O que ele precisa se perguntar é: o que, em Jackson, atraía esse pessoal, como mel atrai abelhas? O que fazia de Jackson uma vítima preferencial para esse tipo de gente? Por que ninguém foi acusar Bill Cosby, outro conhecido predador sexual, de pedofilia? O que emprestava credibilidade às denúncias? E no fundo, qualquer pessoa poderia perguntar ao Moisés: cadê as provas de que eles estão mentindo? — lembrando novamente que isto aqui não precisa seguir nenhum rito processual.

É disso que estamos falando.

No caso dos garotos de Leaving Neverland, a questão é que, no que interessa à opinião pública, se ninguém provou a culpa de Jackson, tampouco provou que eles mentiam: os processos foram rejeitados primeiro por decurso de prazo, e depois porque os réus eram as empresas de Jackson, que não eram fiscais de bundinhas de menininhos. Mas isso não quer dizer que sejam mentirosos. Esse, afinal, é um terreno tão pantanoso que o mesmo Corey Feldman que acusa uma porção de gente em Hollywood de pedofilia, também sem provas, é um dos defensores de Jackson.

A batalha inglória a que pessoas como o Moisés se dedicam agora é pelo legado e pela imagem do rapaz do nariz esquisito: e para isso lhes resta a alegação de que “não há provas”. No entanto, para fins extrajudiciais, que falta em provas abunda em evidências. Mais eficaz nessa batalha, por exemplo, é lembrar que a própria irmã de Jackson o denunciou como pedófilo, embora tenha se desdito depois.

A única pergunta errada do Moisés é quando ele pergunta se “há provas de que ele fez acordos para calar várias de suas supostas vítimas?” Na verdade há: 23 milhões de dólares pagos nos anos 90 à família do primeiro garoto para que o processo fosse retirado — um acordo que, se lembro bem, foi acusado de desmoralizar o sistema judiciário americano, porque ficou claro que bastava gastar o bastante para escapar da justiça, mesmo em casos em que a tutela é do Estado, como estupro de vulneráveis.

Jackson fez essa admissão tácita de culpa porque era o que lhe restava. Sua equipe jurídica considerou melhor enfrentar o dano razoavelmente tolerável que o acordo causava à sua imagem do que enfrentar uma condenação que, pelo visto, era certa. 23 milhões de dólares (dos quais cinco foram para os advogados da família do garoto). Qualquer pessoa sensata entende que isso é dinheiro demais para um inocente, e mesmo para um culpado. Mas seus advogados sabiam que sempre poderiam contar com os Moisés da vida: seria esse acordo que permitiriam a eles, arvorados em defensores post-mortem da honra maculada de Michael Jackson, esbravejar: “E as provas? Cadê as provas?”

O fato é que é preciso estar cego pela defesa intransigente dos direitos humanos de pedófilos defuntos para não enxergar o que havia de obviamente doentio no comportamento de Jackson. Era impossível olhar para Jackson no início dos anos 2000, se defendendo contra mais uma rodada de processos de pedofilia e aparecendo de mãos dadas com um garoto, e não perceber que havia algo de muito errado ali. Ou achar normal, ou ao menos aceitável, sua insistência em dormir com crianças, sempre meninos — e dizendo que isso é lindo, como se estivesse em um fórum de internet onde pedófilos tentam justificar a exploração e o estupro de crianças.

(É ainda mais inacreditável porque dormir com crianças é uma das piores experiências a que um ser humano pode ser submetido. Invariavelmente terminam com você se equilibrando perigosamente na beira do colchão enquanto aquela pequena cria do inferno, com um terço ou um quarto do seu tamanho, se esparrama por toda a cama.)

No fim das contas, é até possível compreender a ira indignada do Moisés. Ele não admite que o seu ídolo possa remotamente ter sido a pessoa (sejamos eufemísticos) problemática que era. Por isso a negação das evidências, a aposta na ausência de provas. É um direito dele, cada um tem suas convicções. Quanto a mim, reforço as minhas quando me faço a pergunta que se pode fazer a qualquer pai ou mãe: você deixaria seu filho dormir com Michael Jackson? A resposta, mesmo que não haja provas, como quer o Moisés, é não.

Você disse que pagava para ver se eu respondia, Moisés. Taí sua resposta. Faz o pix?

A morte da II Guerra Mundial

Há algum tempo conversei com um senhor que, quando criança, tinha que correr dos bombardeios aliados para se abrigar no subsolo de um castelo próximo de sua aldeia. Para ele esse tempo ainda existe, ainda é hoje, ele lembrava daqueles dias talvez melhor do que lembrava do que fez um mês atrás.

A cada dia tenho a sensação de que pareço mais e mais com ele.

Para mim, e certamente para toda a minha geração, a II Guerra era um tema atual. Nos anos 70 grande parte dos veteranos estava na casa dos 40 ou 50 anos — gente relativamente jovem, com histórias para contar ou para tentar esquecer. Pelo seu impacto na história do mundo, aquela guerra ainda fazia parte do imaginário cotidiano. E tinha uma presença cinematográfica que nenhuma outra teve antes ou teria depois.

Já não havia tantos filmes sobre o tema no cinema — era o início da era dos blockbusters , e por alguns anos os EUA tentaram ganhar na tela a guerra que perderam no Vietnã —, mas na TV ainda assistíamos aos seriados dos anos 60, uma espécie de segunda onda cultural: “Guerra, Sombra e Água Fresca”, “Combate”, “Ratos do Deserto”. E mesmo seriados contemporâneos de vez em quando traziam referências a ela: em Shangri-la Lil, episódio de um seriado hoje esquecido chamado “Operação Resgate”, mas que animou por algum tempo minhas tardes de domingo, os heróis se batem em 1979 com um soldado japonês que pensa que a guerra ainda não acabou, obviamente inspirado no caso de Hiru Onoda, moço meio tantã que acabou vindo morar no Brasil.

Mas agora tudo isso faz parte de um passado cada vez mais remoto. Em menos de 20 anos se comemorará o centenário da invasão da Polônia pelos alemães. Daqui a pouco morre o último veterano, se é que o coitado já não bateu as botas enquanto escrevo estas maltraçadas. Para as gentes mais novas que eu, a II Guerra jamais vai ter o apelo e a importância que tem para mim e para os outros velhinhos que arrastam com cada vez mais dificuldade suas carcaças. É só mais uma guerra. E não é.

A II Guerra foi a última guerra santa; não porque se combatia o nazismo e o fascismo, mas porque ao seu final se soube do Holocausto. Não havia mais zonas cinzentas, como houve na I Guerra e mesmo em uma invasão como a da Ucrânia pela Rússia: foi uma guerra do bem contra o mal, porque não há questionamento possível diante dos campos de morte da Polônia. Claro, nessa equação a gente finge que não viu os bombardeios de Dresden e Berlim pelos Aliados, nem dá notícia de Nagazaki; só os nazistas e os japoneses, afinal, cometeram crimes de guerra.

De lá para cá veio a guerra do Vietnã, a primeira a mostrar em tempo quase real a desumanidade de um conflito; mais tarde, a primeira Guerra do Golfo promoveu uma certa desumanização da guerra, tornou o que é apenas insensatez, dor e morte em algo cada vez mais asséptico e parecido com um videogame.

As coisas parecem estar mudando, no entanto. A estupidificação mundial alcançou seu ápice com a atual guerra de Israel contra o povo palestino, enquanto a mídia internacional tenta demonstrar por A mais B que vidas de israelenses valem mais que vidas de palestinos. Em outros tempos proavelmente conseguiriam. Mas as redes sociais devolveram a dor, o drama humano, o sangue à ideia de guerra. Guerra está perdendo a graça e parece estar voltando a ser apenas o que sempre foi: destruição, estupidez e morte.

Pensando bem, que bom que a II Guerra Mundial está morrendo.

Heróico

Já me acostumei com o Word corrigindo minha ortografia. Me acostumei com assembleia, com ideia, me acostumei até com o vazio deixado pelo trema que jurei defender até minha última gota de sangue, embora ainda ache que cinquenta não esquenta, e que os dois pinguinhos líricos no U cumpriam uma função importante e quase indispensável.

Essa resignação é mais notável porque desde o início bati pé contra a reforma ortográfica do Houaiss. Desnecessária, incompleta, e em um caso — é, o do trema — assassina. Mas o tempo vai passando, a gente vai se acostumando, a saudade deixa de doer tanto, a vida é assim mesmo. E os portugueses a odeiam ainda mais que eu.

Tecnicamente passei por duas dessas reformas. A primeira, no início dos anos 70, extinguiu acentos diferenciais e graves como o de “sòzinho” e “êle”. Infelizmente, boa parte do que li na infância e começo da adolescência tinha sido publicado antes de sua vigência, e o resultado eram pequenas confusões quando comecei a trabalhar, até que descobri que vivia em um mundo diferente. A segunda é essa de 1990, ainda mais canalha porque, não contente com acentos até discutíveis e hífens que norteavam minha vida, resolveu mirar no trema, antigo e indelével amor.

Mas eu me acostumei, tinha que me acostumar. Não tinha jeito. Então que tirem o acento dos ii, que os -éis percam-nos também. Eu aceito: “por um, por mil”, é um ditado da minha terra que o tempo me faz perceber tão correto.

Só tem um ou dois assassinatos de acentos que não ainda não consegui engolir. Certo, eu sei que esse dia triste chegará, mas para minha surpresa ele hoje me incomoda mais que a ausência do trema.

Como alguém pode escrever heróico sem acento e sem se envergonhar, sem enrubescer — embora eu ache que ninguém enrubesça mais desde a reforma de 1946?

Talvez essa minha revolta se deva à Reader’s Digest. Quando eu era criança, minha avó me deu um livro — hoje facilmente encontrável nos sebos do Rio — com algumas dezenas de biografias curtas de personalidades notáveis publicadas naquela revista. Eram eulogias, na verdade. Através dele conheci um pouco mais de gente de que havia ouvido falar, como Beethoven, Rondon, Sócrates, Galileu, Ford, Twain, Newton, e descobri um bocado de gente nova: Verdi, Helen Keller, Florence Nightingale, Marie Curie, Robert Peary.

E Toscanini.

Em 1944, Arturo Toscanini recebeu uma carta de um menino que pedia para ele tocar a “Heróica” de Beethoven, porque seu pai, recentemente morto na guerra, gostava muito dessa obra. Depois descobri que a sinfonia se chamava “Eroica” e que eu tinha feito uma confusão a partir da minha própria ignorância: por uma dessas inversões inexplicáveis que a cabeça da gente faz, heróico sem acento só remeteria a um menino que ainda não sabia escrever corretamente e pediu um dia para Toscanini tocar a Eroica.

Quando o corretor ortográfico me corrige nessa palavra, mais um pedaço de Toscanini morre em mim.

Ao resto já me acostumei. Me acostumei, sim. Primeiro era o Word, e no começo, porque gosto de brigar com corretores ortográficos e com a voz de puta do GPS do Google Maps que me manda entrar onde não devo, eu ia lá e recolocava o erro que não era erro em seu lugar. Depois o cansaço tomou conta da minha alma, não valia a pena continuar brigando por isso, ficou até fácil escrever assembleia sem acento, a verdade é que as ideias não ficavam melhores e nem piores por causa daquele traço em cima do E

Mas heroico não desce. Não vai descer nunca.

Se bem que eu disse a mesma coisa do trema e olha eu aqui, escrevendo coisas grandiloquentes sem o respeito necessário a uma pobre, mas importante e inesquecível vítima da modernidade.

Quem sabe.

Molambo

Eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira, que não pode ser. Mas o index prohibitorium desses tempos estranhos ganhou uma nova palavra — desta vez uma palavra maltrapilha, paupérrima, um trapo de palavra: molambo.

Uns tempos atrás rapper chamado Djonga — muito prazer, Djonga, quem é você mesmo? —, que me informam ser useiro e vezeiro nessa patrulha ortográfica que faz a delícia de desocupados nas redes sociais, caiu na própria armadilha: chamou a torcida do Flamengo de molambada e depois, como é a praxe nesses novos mecanismos de exposição, fez um mea culpa — esse pessoal adora a imagem de si mesmos com vestes rasgadas e cinzas na cabeça — dizendo que a expressão era racista porque era usada pelos senhores de escravos para designá-los.

Não sei o que o rapaz é, se vascaíno ou tricolor, mas a essa desdita ele acrescenta a estupidez, e se não se pode culpar ninguém por ser fiel a um time e se esbaldar no justo e prazeroso exercício de tripudiar a torcida alheia, pode-se reclamar de sua burrice.

Para impedir que a maldade fizesse de mim um molambo qualquer, sei que como flamenguista eu deveria ficar feliz porque as torcidas adversárias, se obedientes aos ditames dos censores vernaculares, ainda não podem chamar a gente de molambada, mesmo depois de ano triste como este 2023 que se acaba. Não que fosse me incomodar, até porque lembro que botei minha roupa melhorzinha para assistir ao pouco que vi in loco no Maracanã — mas em casa, diante da TV, era na base do molambo, mesmo. O problema é que, como cidadão com algum juízo, fico apenas mais um pouco desanimado com os rumos que este mundo está tomando.

Bem sei que assim procedendo me exponho ao desprezo de todos vocês, mas não é preciso ir ao dicionário para intuir que molambo é palavra de origem africana; o que o pai dos burros me diz além disso é que originalmente designava um pano que mulheres amarravam à cintura. Apesar do que diz o Djonga, é bem provável que senhores tenham aprendido a palavra e o seu significado a partir do uso que os escravos já davam. E é esse, ou pelo menos era até anteontem, o uso que o mundo lusoparlante lhe dá.

Molambo é feito em primeiro lugar, para descrever de maneira clara o estado de algo; em segundo, para ofender pobre malvestido, seja qual for a cor do desgraçado que não ouviu os conselhos da Glória Kalil. Pelo menos foi nisso que sempre acreditei. Eu e o resto da molambada, a torcida do Flamengo. Apenas no mundo distorcido desses militantes molambo é feito para ofender apenas negros.

Não há nada mais correto, sob qualquer ponto de vista, do que banir palavras e expressões que um tempo e um lugar julgam preconceituosos. “Preto de alma branca”, umas tantas por aí já incomodam mesmo que não se pense detidamente sobre elas, são expressões que a gente percebe imediata e instintivamente serem racistas.

Ruim é quando a imbecilidade acha cabelo em casca de ovo. Quando inventam mentiras bobas como as telhas feitas nas coxas de escravos, ou a aguardente que queimava as costas dos coitados nos engenhos, até mesmo o infeliz do criado-mudo, que mesmo calado está errado. O problema começa quando malucos ignorantes inventam os fatos necessários para justificar suas teorias.

Funciona assim: o mundo usa a expressão “a coisa está preta” desde sempre, porque a falta de luz sempre significou problemas. Aí aparece um pessoal dado a ressignificar palavras, se apropria da expressão e de repente diz que ela se tornou ofensiva e que devo me sentir culpado de usá-la.

Daqui a pouco a expressão “luz no fim do túnel” vai se referir a posteriori (sem e com trocadilho, por favor) a um negão com uma lâmpada enfiada no rabo por maldade do feitor, e eu não vou mais poder utilizá-la.

Durante muito tempo, tive a impressão de que zelotes sionistas tentavam puxar para si a dor do mundo, como se só os judeus tivessem sofrido; era um argumento até convincente porque nunca houve tão tenebroso quanto o Holocausto, a realização  mecânica de um ódio tão absoluto que não precisava sequer de uma motivação econômica. Funcionou enquanto o antissemitismo era o inimigo da vez; por sorte, não está funcionando tão bem enquanto Israel explode crianças em Gaza. Mas as coisas mudaram, o racismo contra os povos africanos ganhou — justamente, me apresso a acrescentar antes que encontrem mais bases do que já têm para me chamar de racista — a primazia nestes tempos inglórios, e agora é estranho que haja uma franja no movimento identitário que parece um masoquista vernacular, ao ficar procurando ou inventando palavras que possam lhe humilhar um pouco mais. É uma mistura estranha e retorcida de oportunismo e ignorância, típico da origem desse movimento: parte de uma elite cultural e acadêmica, profundamente influenciada pela academia americana a ponto de importar seu binarismo racial e as soluções dele derivadas, para a qual a palavra é o que realmente importa, mais que a realidade concreta, e que acreditam que se problematizarem o vernáculo vão mudar completamente o mundo.

É gente que acredita que homofóbicos matam travecões, mas não transgêneros.

E isso me deixa triste porque eu realmente gostaria que eles tivessem razão. Não têm. Mas talvez isso seja algo bom, e as coisas sejam assim para impedir que 0a loucura fizesse de mim um molambo qualquer.

Fucking foda

Chega de ser velho, decidi me atualizar.

Talvez comece comprando um iPhone. Não vai dar para pagar de uma vez, essas desgraças não cabem no meu orçamento e talvez seja por isso nunca me senti tão idiota a ponto de dar 5 ou 10 mil num celular, mas eles parcelam, boto aí em dez vezes, assim dá. Talvez não dê para comprar um novo, mas iPhone usado também impressiona, ainda mais quando aparece displicente no bolso traseiro das caixas de supermercado que devem ter empenhado o salário de três meses ali. Bem, talvez dê para parcelar um novo em 24 meses — mas aí vou pedir garantia estendida e botar no seguro, porque vai ser triste voltar para casa no ônibus das 22:30 e um mala qualquer me roubar o desgraçado, pelo menos antes de terminar de pagar.

Ao menos vou ter o gosto de dizer: “poxa, roubaram o meu iPhone”. Vai ser assunto para três meses.

Se bem que atualização de verdade, para mim, é atualizar o linguajar.

Eu falo como velho da boca suja, é porra e merda e caralho e puta para tudo quanto é lado, em tudo quanto é tempo, e nem sempre eles querem dizer o seu significado exato. Mas agora quero falar como jovem, man, viciado nas redes e nos streamings da vida, seguindo as trends mais cool que aparecerem por aí — logo eu que não usei jeans verdes nem gel no cabelo nem camisas verde-limão nos anos 80. Ao menos tenho a desculpa da senilidade cada dia mais próxima, tudo me será perdoado.

Tenho 10k razões para não fazer isso (ou são 10k de razões? Me perco nessa mudança de estrutura da língua, como o filho do português que emigrou para a gringolândia, não conseguiu aprender inglês e começou a esquecer o português), e todas elas eu poderia resumir num “foda-se”, o “foda-se” tão meu amigo de tanto tempo. Mas desconfio que isso não seja atitude up to date que se respeite num mundo globalizado e conectado e tão róseo como o que me vendem todo dia. Estou ficando velho e isso é ruim, preciso renovar meu approach, continuar relevante em alguma coisa, não sei para quem. Tenho que fazer isso asap. Acho que vou precisar dar um retrofit nos meus skills.

Também vou estar atualizando o tempo dos verbos, eu que nunca soube bem como conjugá-los. Vou estar me rendendo ao gerúndio totalitário e onipresente, mesmo sem nunca ter entendido como é que alguém se vê tão baixo na escala social que acha bonito estar falando como operador de telemarketing.

Vou também estar cedendo a essa expansão das expressões evangélicas, que repetem a metástase social que o seu pensamento está exercendo na sociedade brasileira. Ô glória. As igrejas evangélicas são o pior câncer que poderia afetar o Brasil, mas e daí, tá amarrado.

Se eu estiver atualizando o linguajar vou estar performando melhor em alguma coisa, é no que quero acreditar. Não sei em quê, mas vou. Vou estar aumentando o meu brand equity, acho, e talvez assim eu jobe melhor. Mas para isso preciso, antes, estar mudando o meu mindset, preciso entrar nessa fria de acreditar e justificar essa exploração canalha do trabalho mal pago e precário. É o preço que vou precisar estar pagando para estar sendo moderno.

Mais tarde estarei dando um follow up a quem leu isso aqui, FYI. Mas já posso estar adiantando que o grande momento vai ser quando eu sacar meu iPhone, fingir uma cara feia diante de uma insignificância qualquer na tela e lascar com o peito estufado: “É fucking foda, viu?”

Não ser Flamengo

A geração de Zico tinha ódio ao Botafogo. Ela viu vezes Garrinha humilhar o Mais Querido no gramado do Maracanã — tortura que se estendeu por mais alguns anos, com Gérson, Jairzinho, uns tantos aí. Minha mãe ainda me conta da tristeza que era ir ao Maracanã nesse tempo.

A geração seguinte, encarnada por Leandro (o maior lateral direito da história do futebol, é sempre bom lembrar), por sua vez odiava o Fluminense. Ela viu a “Máquina” de Rivelino e Edinho e Paulo César moer o Flamengo costumeiramente.

Eu faço parte de uma geração que não passou por nada disso e que se dá ao luxo de só ter amor no coração. O Flamengo do meu tempo é aquele cujo marco inicial é o gol de cabeça marcado por Rondinelli sobre o Vasco da Gama na final do Carioca de 1978. Começava ali uma hegemonia estadual que dura até hoje. É claro, aqui e ali uns percalços acontecem — grandes fases do Fluminense no meio dos anos 80 e do Vasco no final do século XX, o gol de barriga de Renato em 1995, o chocolate do Vasco na Páscoa de 2000 —, mas o Flamengo dos últimos 40 anos é aquele que ganhou quase metade dos campeonatos cariocas e todos os seus títulos nacionais e internacionais. Nesse período os outros times passaram por altos e baixos, foram todos rebaixados para a série B onde filho chora e a mãe não vê, e uns até para a série C, onde filho chora e a mãe nem liga. Mais importante ainda, nesse período os campeonatos nacionais e internacionais ganharam mais importância que os estaduais. Hoje, um time grande brasileiro enfrenta rivais de outros estados muito mais vezes do que enfrenta a maioria dos adversários locais.

Por tudo isso, nunca consegui entender o ódio que torcedores têm contra outros times. Entendia, um pouco, a raiva que todos parecem ter do Flamengo, mas ela sempre me pareceu semelhante aos latidos de um chihuahua, que late para tudo porque tudo é maior que ele. Os times pequenos precisam odiar os grandes para justificar sua existência.

Talvez seja essa a razão pela qual eu sempre tenha tido alguma simpatia por alguns desses times pequenos. O Fluminense ainda tem em sua alma um resto daquela elegância esnobe que os fazia espalhar pó de arroz nas arquibancadas do Mário Filho. A torcida do Glorioso sempre me pareceu valorosa em sua persistência, porque ao fastígio dos anos 50 e 60 se sucederam 21 anos sem ganhar nem um Carioca, e uma existência que se baseava essencialmente numa nostalgia simpática — o que, claro, não me impediu de, ao ouvir Bebeto de Freitas dizer que “o Botafogo é um estado de espírito…”, completar sua frase com um “…também conhecido como depressão”; ele não riu. E hoje, o único sentimento que se pode ter em relação a um time como o Vasco é pena, talvez uma torcida genuína para que não se apequene demais, porque ele está se tornando o que o América era nos anos 70, o quase grande, o maior dos pequenos, o gigante da colina abaixo, e sinceramente espero que ele não se transforme no São Cristóvão.

Mas domingo passado eu finalmente entendi o que significa o ódio a que me referi no início deste post, e ainda estou assustado, e fui dormir com a luz acesa naquela noite.

O Botafogo tem tudo para ser o campeão brasileiro deste ano. Naquele momento tinha 11 pontos à frente do segundo colocado e enfrentava um Flamengo em crise, que talvez não ganhe absolutamente nada este ano, 14 pontos atrás. Tinha tudo para um jogo tranquilo — disputado, honrado, mas tranquilo.

O que finalmente entendi é que nada disso importa quando o ódio é o que lhe move. Pontos, chances, campeonatos, tudo isso é bobagem. Para o Botafogo, aquele jogo parecia ser outra coisa. Um desavisado que visse o jogo pensaria que ali estava em disputa a final do certame, jogo de vida e morte que significaria a glória imorredoura do campeão ou o opróbrio do rebaixamento.

Foi ao ver o goleiro do Botafogo no ataque, no campo do Flamengo, desesperado para fazer o gol que lhes garantiria ao menos o empate, e então perderem a bola que foi para os pés de Cebolinha, mas para a sorte do Glorioso nós temos o Cebolinha, é, nós temos o Cebolinha, e mesmo assim o goleiro voltou para o ataque, arriscando tudo no desespero dos decaídos, foi só aí que entendi o que significa não ser flamenguista neste mundo.

***

Eu sei que falei, há alguns anos, que não gostava mais de futebol e não pretendia mais falar sobre isso. Mas acontece que logo depois, naquele ano da graça de 2019, encontrei Jesus, e o resto é história.

Pela nacionalização da Seleção Brasileira

Anteontem a Seleção Brasileira conseguiu o feito monumental de levar apenas um gol desse potentado do futebol mundial que é a Guiné. Ontem combinou de esperar um ano por Ancelotti, dando mais uma mostra de quão pequena se tornou.

Já faz muito tempo que o Brasil é apenas uma seleção mediana, que em Copas do Mundo consegue passar por times pequenos nas fases eliminatórias para cair nas quartas-de-final, quando finalmente enfrenta a elite do futebol. Em 2026 completará 24 anos sem ganhar uma Copa, o mesmo período que passou entre 1970 e 1994. A diferença é que, enquanto naqueles tempos ela poderia ter sido campeã em 1978 (e o Coutinho morreu dizendo que tinha sido) e encantou o mundo em 1982, agora é só uma seleção que sofre para passar as oitavas. Como tantas e tantas outras mundo afora, agora alegando que “não existe mais bobo no futebol”.

O Brasil vive, já há muito tempo, de sua história, do peso de sua camisa e do talento de um ou outro craque com lampejos de qualidade em seleções medíocres e sem identidade.

Se os cinco jogos da última Copa não são suficientes para admitir essa obviedade, uma lista dos times que o Brasil conseguiu vencer em Copas dos últimos 20 anos deve ajudar: Croácia (pré-Modric), Austrália, Japão, Gana, Coreia do Norte, Costa do Marfim, Chile, Camarões, Colômbia, Costa Rica, Sérvia, México, Suíça e Coreia do Sul.

Por isso defendo a total nacionalização do futebol. Minha tese é muito simples, baseada em dois pilares.

O primeiro é a reestruturação dos campeonatos estaduais e regionais, algo com que quase todo mundo concorda.

O segundo é fechar a Seleção para os jogadores que jogam fora do país, e quem me ouve falar isso diz que é absurdo. Que precisamos aceitar que nos tornamos exportadores de commodities futebolísticas e não podemos abrir mão de gênios como Neymar, Vinícius Jr., etc. Eu só pergunto por quê: não apenas Vini Jr. não é um gênio e Neymar  se mostrou muito aquém de seu potencial, sem falar na capacidade de liderança e da hombridade que lhe falta em campo, mas mesmo com eles não ganhamos de ninguém, mesmo, e já há muito tempo. A verdade é que, no pior dos cenários, temos jogares no Brasil bons o suficiente para cair apenas nas quartas de final. Não é difícil montar no Brasil um time que consiga ganhar de Camarões.

Mas a nacionalização poderia resgatar a ligação com a torcida e talvez até mesmo criar uma seleção de verdade, em vez dessas coisas medíocres e amorfas que disputam amistosos com Senegal.

Cada vez menos gente liga para a Seleção hoje em dia. E desconfio que não seja apenas porque ela não ganha e não empolga. A Seleção Brasileira é cada vez mais um negócio que só importa, mesmo, para dirigentes, empresários, jogadores e para o negócio da propaganda. Por que razão alguém vai torcer por um troço em que um monte de milionários cuida apenas de sua própria vida é algo difícil de explicar.

Nem sempre foi assim. E não custa passear um pouco pela história recente.

Até o início dos anos 80, o maior sonho de qualquer jogador brasileiro era jogar na seleção. Depois, com o início do êxodo de jogadores brasileiros para a Itália, aos poucos a Seleção passou a ser um grande trampolim, o passaporte para a Europa e a garantia do pé de meia. O maior exemplo disso foi a convocação de um tal Paulo Sérgio para a Copa de 94, jogador ínfimo mas com passe controlado por um dos cartolas da CBF, que o exibiu por alguns minutos para poder vendê-lo mais caro.

Mas agora a própria Seleção passou a ser desnecessária. Mais e mais jogadores saem hoje do Brasil ainda na pré-adolescência, às vezes até se naturalizando. Por outro lado, a geografia do futebol mundial mudou, e muito.

Se a gente voltar no tempo até os anos 90, vai lembrar que um bocado de gente boa apregoava então que o futebol africano iria explodir nas próximas décadas. Isso não aconteceu. Se eles olhassem para a história da África, em vez de ficar repetindo os argumentos de venda da uma FIFA unicamente empenhada em expandir o negócio do futebol, talvez pudessem antever o que aconteceu: imigrantes africanos e seus filhos revitalizaram as seleções europeias. Compare a Bélgica de 1986, mais branca que o paraíso da novela “A Viagem”, com a que mostrou aos brasileiros em 2018 como é que se ganha um jogo de futebol. Ser metrópole tem suas vantagens. Como resultado, o futebol europeu repetiu, de certa forma, a combinação que fez o futebol brasileiro: ficou mais solto, fisicamente superior e manteve a aplicação e a evolução táticas que sempre foram sua marca.

Isso ajudou a igualar o futebol europeu ao brasileiro, e em seu devido tempo o fez estruturalmente superior. O resultado é isso que vemos hoje, e que vai muito além do 7×1. Cada vez mais subjugada aos interesses da FIFA e da UEFA , e principalmente à corrupção endêmica de seus dirigentes, a Seleção Brasileira defende uns trocados se pendurando no mapa atrás de jogos com seleções que não jogariam a série B do Campeonato Brasileiro, jogadores que não têm nela seu principal foco porque, no máximo, jogar nela é apenas uma questão de vaidade.

Por isso acho que a melhor coisa que o Brasil poderia fazer seria reformular a seleção brasileira apenas com jogadores que disputam os campeonatos brasileiros.

Historicamente, as seleções brasileiras tinham como base os melhores times de seu tempo. Durante muito tempo foram Santos e Botafogo; em 1982, Flamengo e Atlético, com uns contrabandos do São Paulo (bom no caso de Oscar, ruim no caso de Serginho) porque Telê gostava da prataria de sua casa. Eram jogadores que se conheciam porque jogavam juntos ou se enfrentavam com regularidade. Era mais fácil formar um time coeso.

Uma seleção nacionalizada traria os benefícios de voltar a engajar os torcedores, porque uma seleção que não tem um jogador do meu time é uma coisa; outra é aquela em que o craque é alguém que faz a alegria do meu time, ou mesmo aquele que respeito pelas sacanagens que faz com ele: até hoje não entendo como é que Telê Santana deixou Roberto Dinamite no banco e apostou na desgraça chamada Serginho Chulapa, em 82.

Mas ainda mais importante, a nacionalização poderia devolver ao futebol brasileiro um estilo. Ganharíamos a vantagem do entrosamento, de poder treinar por mais tempo — de criar um time de verdade.

Reformular o a organização do futebol brasileiro também ajudaria muito.

Há tempos vejo comentaristas clamando pelo fim dos estaduais. É uma idiotice. Eles pensam em termos de grandes centros e grandes clubes, que têm uma agenda nacional e internacional que garante que joguem durante todo o ano. Para eles, os campeonatos estaduais apenas atrapalham.

Esse povo do Rio e de São Paulo simplesmente não conhece o país, que tem quase 800 times profissionais. O Brasil que eles desconhecem é feito por dezenas, centenas de times que sem os campeonatos estaduais simplesmente desapareceriam, e que mesmo assim jogam apenas três ou quatro meses por ano.

Imagine o que não se perde com isso. O número de talentos que deixam de ser revelados todo ano, a impossibilidade de estruturação econômica, de formação times minimamente decentes que dariam mais vigor ao futebol brasileiro. E, por último mas não menos importante, a alienação de grande parte da torcida, que se vê obrigada a procurar carinho e futebol em outros campos.

A criação de um sistema mais robusto de campeonatos locais e regionais que mantenha os times jogando a maior parte do ano movimentaria a economia esportiva, engajaria as torcidas locais, fortaleceria o futebol nacional de maneira orgânica e consequente. E a reconfiguração do calendário nacional, com a criação de campeonatos regionais que possibilitassem aos times estaduais de segunda linha jogarem por mais tempo, certamente ajudaria a recriar a própria cultura futebolística nacional e garantiria a massa crítica necessária para elevar o nível básico do nosso futebol. Assim como a União Soviética ganhou a II Guerra, entre outras razões talvez mais importantes, porque podia perder mais soldados, o Brasil pode produzir mais craques do que o resto do pode absorver.

Mas nada disso, claro, vai acontecer. Ninguém pode abrir mão de um sistema que forma todo ano algumas dezenas de milionários e que movimenta um mercado cada mais imponente. E nisso, parafraseando o velho Carlos Alberto Parreira, o futebol é apenas um detalhe.

A tristeza numa banca de revistas

Dentre as coisas mais tristes que podem me acontecer cotidianamente hoje em dia é entrar em uma banca de revistas.

Elas estão acabando, a gente sabe. A internet as destruiu. Em alguns lugares, como Aracaju, essa destruição se dá de maneira ainda mais acelerada, e diz tão mal de seus moradores. Durante a pandemia, eu dava voltas de carro pela cidade vazia, me sentindo Charlton Heston em “A Última Esperança da Terra”, e percebi que na zona norte já não existia uma única banca de revistas em funcionamento. Nenhuma. No resto da cidade, com pouco mais de 650 mil habitantes, sei de apenas seis que ainda vendem jornais ou revistas. O resto virou outra coisa, qualquer coisa, ou simplesmente desapareceu.

Em Salvador, quase todas as bancas que marcaram minha infância fecharam, vendem água ou frutas hoje, com exceção da Banca Coelho, em frente ao Hospital Espanhol, que ainda vende jornais, e a Banca do Fernando, na Princesa Leopoldina. Sumiram a banca do Renato no Largo da Barra, a Banca Fróes na esquina da Euclides da Cunha com Amélia Rodrigues, na Graça, e tantas outras de que ainda consigo lembrar. Sobrevivem muitas, é verdade, especialmente na Barra — talvez porque a Barra seja lugar de moradores velhos e de turistas e ladrões e traficantes e putas novos, não sei — mas eu e seus donos sabemos que seu tempo está contado.

Quando vejo uma banca, hoje, vejo algo que cumpre seus últimos dias de vida antes de uma execução dolorosa com data já marcada, uma espécie de último moicano resistindo quixotescamente à própria morte.

Mas não é daí que vem a tristeza, porque a essa sua sina eu já me conformei há muito tempo.

Ela vem porque sempre que entro em uma das poucas bancas que ainda restam quero desesperadamente comprar alguma coisa, uma revista, um jornal. Mas já há anos as bancas daqui não vendem os jornais de fora, e não consigo ver sentido em nenhuma revista à disposição, porque já vi tudo o que me interessava antes, na internet.

E nessas horas me sinto um assassino involuntário, um linchador que, diante do corpo estendido no chão, finalmente tem a consciência do que ajudou a fazer.

As bancas estão acabando, e a culpa é minha também.