As revoluções dos Beatles

Pergunte às pessoas que gostam um pouco que seja dos Beatles e a grande maioria dirá que boa mesmo é a segunda fase da banda, aquela que por uma convenção meio claudicante se inicia com o Revolver. Dirão que a primeira fase é bobinha, e em parte isso vai se dever ao respeito a outra convenção simples e já consolidada: a chamada segunda fase, melódica e harmonicamente mais ambiciosa e mais sofisticada, é a fase universalmente considerada “revolucionária” dos Beatles.

E elas estarão erradas. Porque em termos de “revolução” nada se compara àqueles quatro meninos cabeludos de Liverpool que cantavam ié ié ié. Esses são os verdadeiros revolucionários. O resto é só conseqüência.

É engraçado que se tenha perdido a perspectiva histórica do que representou a chegada dos Beatles ao cenário musical. Foi o som de uma única canção, Please Please Me, que criou o que hoje se chama de rock inglês e que, por tabela, revitalizou o então moribundo rock americano, além de abrir caminho para que dezenas de outras bandas e artistas aparecessem e trouxessem elementos novos, alguns dos quais fundamentais, para a evolução da música.

As pessoas esquecem que no início da década de 60 o rock and roll estava morto. Buddy Holly e Eddie Cochran haviam morrido em acidentes (respectivamente de avião e de táxi), Chuck Berry tinha ido para a cadeia, Little Richard tinha entrado numa grave crise existencial e se convertido à religião, Jerry Lee tinha caído em desgraça porque comeu a prima — mas casou —, e Elvis, bem, Elvis tinha morrido também. Outros grandes artistas da primeira onda do rock tinham se esgotado em termos de inovação criativa — e aí se inclua Carl Perkins, Everly Brothers, Gene Vincent e tantos outros. O que se ouvia então era twist. Twist não é música que se dê ao respeito.

Dentro desse cenário, o que os Beatles representaram em termos de renovação da música pop em 1963 é virtualmente impossível de ser quantificado. Há uma série de teorias sobre as razões pelas quais os Beatles tomaram os Estados Unidos de assalto em 1964, que vão da necessidade de uma válvula de escape para o trauma do assassinato de John Kennedy à combinação de irreverência e seriedade ilustrada nos terninhos eduardianos que eles usavam sob seus cabelos compridos. Mas nada disso é tão importante quanto a sua música.

I Want To Hold Your Hand não se parece com nada feito antes dela. A energia, a coesão harmônica e a inventidade melódica que faziam parte da música dos Beatles representaram uma mudança de padrão muito mais importante, por exemplo, que a que eles fariam anos mais tarde com o Sgt. Pepper’s, considerado por muita gente o disco mais importante da história do pop.

Era aqui que estava o novo.

Havia mais coisas acontecendo simultaneamente — ou melhor, sendo gestadas. Na California os Beach Boys apareciam com um pastiche meio bobo de CHuck Berry e Everly Brothers; quem quer que ouça seus primeiros discos vai ver como o som parecia comportado e bem enquadrado. Em 1965 eles partiriam para uma grande aventura sonora, em canções mais elaboradas como Good Vibrations, mas em 1963 apenas repetiam a fórmula da surf music com letras debilóides como as de Be True To Your School. Enquanto isso, a Inglaterra se preparava para regurgitar o rhythm and blues americano, mais ou menos como a França tinha absorvido e transformado o cinema americano em sua nouvelle vague uns poucos anos antes; e lançava, ali, uma abordagem diferente e renovadora da música pop que estouraria em 1965 — da qual Satisfaction, dos Rolling Stones, talvez seja o seu maior símbolo.

Mas foram os Beatles que mostraram o que era realmente o novo. Satisfaction é caudatária direta desse caminho aberto por Please Please Me, inclusive na sonoridade. Com aqueles seus primeiros compactos — Please Please Me, She Loves You, I Want To Hold Your Hand — os Beatles definiram um padrão novo para a música pop. O que hoje pode até parecer bobinho para quem não consegue ver a história da evolução da música pop porque não consegue colocar a música em seu contexto, era revolucionário em 1964.

Bob Dylan percebeu isso imediatamente: ele lembra de estar na estrada quando ouviu pela primeira vez I Want to Hold Your Hand, e entendeu imediatamente que era dali que vinha o futuro; e abandonou o folk para entrar de cabeça no rock and roll (o que talvez não tenha sido uma boa idéia, mas essa é uma opinião bem pessoal). O poeta Phillip Larkin também:

Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(which was rather late for me) –
Between the end of the
Chatterley ban
And the Beatles’ first LP.

Up to then there’d only been
A sort of bargaining,
A wrangle for the ring,
A shame that started at sixteen
And spread to everything.

Then all at once the quarrel sank:
Everyone felt the same,
And every life became
A brilliant breaking of the bank,
A quite unlosable game.

So life was never better than
In nineteen sixty-three
(Though just too late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles’ first LP.

O impacto da chegada dos Beatles também é sentido em outras áreas do show business. Foram eles, por exemplo, que criaram o que hoje se entende por cena rock. Foi a beatlemania que possibilitou os shows em grandes estádios. Para que se tenha uma idéia do que isso representa é só lembrar que Elvis, o maior de todos antes de JPG&R, costumava se apresentar sobre tablados em feiras estaduais.

Nada disso significa que se deva subestimar a sua importância a partir do Revolver, o momento em que eles viraram os queridinhos de um público pretensamente sofisticado que finalmente se rendia incondicionalmente à força musical e social do rock, mas queria manter ainda uma certa dignidade intelectual; no entanto é bom lembrar que em 1967, ano do Sgt. Pepper’s, também surgiram coisas como os primeiros do Velvet Underground e dos Doors.

No Verão do Amor os Beatles não estavam mais sozinhos. Mas em 1964 estavam. Um sujeito com o cabelo na cintura podia ser transgressor em 1967, mas havia muitos outros como ele ao seu lado. Em 1963, os cabelos nos ombros dos Beatles eram absolutamente únicos. Quase tão únicos quanto a música que faziam. E por mais ingênuos que eles hoje pareçam, assim como a irreverência e até mesmo suas canções, a verdade é que foi naquele momento que eles pariram um mundo novo.

As besteiras que dizem em nome dos Beatles

Ainda não ouvi os discos remasterizados dos Beatles que foram lançados na semana passada. Estão demorando muito para baixar (“desculpe, Paul e Ringo, mas você já são ricos o bastante”, escreveu o moço gentil que disponibilizou essas gravações na internet, e eu faço minhas suas palavras). Mas ouvi uns trechos e posso começar a comparar. Pelo menos uma canção parece pior do que sua última versão, Hey Bulldog, tendo perdido um bocado de sua força — na verdade, a versão mono é melhor. Já o álbum Please Please Me parece recuperar a riqueza sonora do antigo LP estéreo, e isso já é uma grande vantagem. Que ninguém espere uma grande revelação, no entanto: são exatamente as mesmas gravações. Ou seja, isso que está saindo agora é interessante, é legal, mas não é fundamental.

Infelizmente, mesmo sem ouvir as canções alguns efeitos colaterais ruins já se fazem notar. Um dos mais curiosos é causado pela avalanche de mídia espontânea gerada pelo lançamento. Isso obriga fãs bobos como o autor destas maltraçadas a ler algumas críticas e comentários que beiram a idiotice. Nenhuma, no entanto, foi tão ruim quanto a matéria assinada pelo Luís Antônio Giron na revista Época desta semana.

A matéria de Luís Antônio Giron é um amontoado de erros crassos e uma coleção de bobagens. Por exemplo, se refere ao Past Masters como uma coleção de “faixas raras”. She Loves You, I Wanna Hold Your Hand, Let it Be, Get Back, Day Tripper são algumas das canções do disco, que basicamente reuniu, em dois discos, os compactos dos  Beatles; era em compactos, aliás, que eles lançavam suas principais canções. Por isso não são exatamente raridades. O mais curioso é que Giron parece centrar sua atenção no Past Masters, fazendo-o inadvertidamente parecer a grande novidade do pacote, quando ele existe há 21 anos. A única diferença é que agora, em vez de dois volumes separados, é um álbum duplo (como aliás foi a versão em vinil lançada em 1988).

Giron diz que os Beatles gravaram Komm, Gib Mir Deine Hand (versão em alemão para I Want To Hold Your Hand) porque “sentiram a deficiência” das condições de gravação. É uma grande estupidez. Eles gravaram essa canção — e Sie Liebt Dich, versão de She Loves You — pela mesma razão que Nat King Cole gravou aquele bocado de canções em castelhano: para seduzir um mercado específico, mais nada, e por pressão da Electrola Gesellschaft, o braço alemão da EMI. Gravar canções em língua estrangeira era uma prática comum na era anterior à dos Beatles; eles não queriam gravar essas versões.

Mas a coisa ainda fica pior: os Beatles apenas regravaram os vocais para essa canção, sobre o instrumental original de I Want To Hold Your Hand. Ou seja, mudaram nada, apesar de, segundo o Giron, “terem sentido a deficiência”.

O jornalista diz também que You Know My Name (Look Up The Number) “foi a última faixa produzida pelos Beatles, em novembro de 1969”.

A faixa foi gravada em duas sessões em 1967 (com Brian Jones, dos Stones, tocando sax, entre outras curiosidades) e esquecida. Em abril de 1969 John e Paul fizeram alguns overdubs para a canção. Em novembro (26, mais exatamente), John Lennon, sozinho, se juntou a Geoff Emerick (engenheiro de som dos Beatles que, recentemente, deu uma grande entrevista sobre o Abbey Road) para fazer a edição final da canção, sem nenhum outro beatle presente. Sua idéia era lançar a canção assinada pela Plastic Ono Band. Mas isso geraria problemas com McCartney (é fácil imaginá-lo dizendo : “I’m no part of any friggin’ bloody Plastic Ono Band!“). You Know My Name acabaria saindo como o lado B de Let it Be.

A última gravação dos Beatles ocorreria pouco mais de um mês depois. Em 3 e 4 de janeiro de 1970 Paul, George e Ringo (Lennon estava em férias na Dinamarca) se reuniram no estúdio para finalizar I Me Mine, de George, e essa seria a última vez que mais de um Beatle trabalhariam juntos no estúdio. (Só para constar: a última vez em que os quatro estiveram juntos nos estúdios da EMI, hoje Abbey Road Studios, foi no dia 20 de agosto de 1969, finalizando I Want You [She’s So Heavy]).

Outra informação impressionantemente equivocada é a de que a discografia americana foi lançada no Brasil. Isso é uma das maiores mostras de ignorância que eu já vi. Porque as versões americanas dos discos dos Beatles, com grandes diferenças em relação aos originais ingleses, nunca, jamais, em hipótese alguma foram lançadas no Brasil.

Até 1965 o Brasil lançava suas próprias versões dos álbuns dos Beatles, como acontecia nos Estados Unidos. Lá foram lançados os seguintes discos (descontando outros lançados por outras gravadoras como a Swan e a VeeJay): Introducing The Beatles, Meet The Beatles, The Beatles’ Second Album, A Hard Day’s Night, Something New, Beatles’ 65, The Early Beatles (basicamente o Introducing The Beatles com outra ordem de músicas, agora lançado pela gravadora Capitol), Beatles VI, Rubber Soul, Yesterday and Today e Revolver. Todos esses discos trazem diferenças em relação aos originais ingleses. Daí em diante os discos seriam iguais aos ingleses, com exceção do Magical Mystery Tour; a Capitol não gostou do EP duplo original, e transformou-o em um LP, agregando os compactos lançados na época, como Strawberry Fields Forever, All You Need Is Love e Hello, Goodbye. O álbum ficou tão melhor que o lançamento original que os ingleses, ao unificar as discografias em todo o mundo em 1976, substituíram o lançamento original por ele.

No Brasil foi lançada uma série diferente de discos, com nomes, capas e músicas diferentes do orignial inglês: o “Beatlemania” (1963), “Beatles Again” (1964), “Os Reis do Iê, Iê, Iê” (1964; era o único com as mesmas canções do original inglês, o A Hard Day’s Night), “Beatles 65” (1965) e “Help!” (1965); só a partir do Rubber Soul os discos passaram a ser iguais aos originais. São versões diferentes das inglesas e também das americanas. A propósito, algumas das gravações americanas eram levemente diferentes das inglesas. As brasileiras eram iguais.

Mas a maior barbaridade escrita pelo Giron nesse artigo absolutamente ignorante diz respeito à versão de Love Me Do presente no Past Masters: “o compacto [a versão incluída no disco, com bateria tocada por Ringo, diferente da versão do LP Please Please Me, que tem bateria tocada por um músico de estúdio chamado Andy White] traz a versão lenta do primeiro sucesso da banda, com um arranjo mais acústico. Bem diferente da gravação percussiva que figura no LP de estréia.”

É uma das idéias mais estúpidas ditas sobre os Beatles ao longo dos anos, quase igual a uma matéria antológica de Ruy Castro sobre a banda na Folha de São Paulo há uns 20 anos, um samba do crioulo doido escrita por alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe onde.

A pergunta que eu faço, nesse caso, é simples: custava pelo menos ouvir a droga da música? Porque as duas versões são virtualmente iguais, e eu duvido que um ouvinte médio consiga distinguir uma da outra. Tudo isso que o Giron falou só existe na cabeça dele. Não seria um grande trabalho se informar um pouquinho sobre as canções antes de falar essas bobagens.

Giron se pergunta ainda se faz sentido lançar esses discos apenas em CD, e não nos sites de música como o iTunes. O volume de vendas devia ser uma boa resposta. Dos dez CDs mais vendidos da Amazon hoje, oito são dos Beatles. A caixa estéreo está no top 100 há 60 dias — quase dois meses antes de ser sequer lançada. Me desculpe, Giron, mas isso faz todo o sentido do mundo. O que os Beatles perceberam foi que, ao não oficializar as canções em downloads, pelo fato de serem ícones da cultura pop, valorizam momentaneamente o produto que estão lançando, que tem alguns diferenciais em relação ao já disponível e que agrega muito mais valor que os downloads. Essa estratégia não deve voltar a funcionar, mas por enquanto tem dado muito certo. Provavelmente, quando a empolgação pela novidade passar, as músicas irão para o download.

Minha sorte é que eu não leio a Veja. Tenho a impressão de que seria ainda pior. Porque essa é a situação atual do jornalismo cultural pátrio: os jornalistas são os mesmos de 20, 30 anos atrás, com os mesmos vícios e a mesma ignorância. Mas agora há a internet, e as pessoas não podem mais escrever esse tipo de besteira (ou cópias como a matéria da Veja sobre o lançamento do Anthology, em 1995; o jornalista Celso Masson basicamente traduziu uma matéria da Newsweek) impunemente.

Beatlemania

Um dos posts que comecei a escrever e que nunca terminei ou publiquei, há uns três anos, comparava a Apple Corps, a empresa dos Beatles, a um elefante. Na época todo mundo batia na dita por não ter aderido ao iTunes, por estar perdendo dinheiro com o P2P, essas coisas.

Eu achava que a Apple estava correta. Que não tinha necessidade de correr atrás da última inovação. Se não me engano, eu tinha um título para o post: quando elefantes se movem. Elefantes são lentos, mas seus movimentos nunca passam despercebidos. Por isso eu achava que na hora em que eles se movessem em direção ao comércio eletrônico, depois de passada a primeira empolgação do mercado e depoois de criada uma certa expectativa quanto a eles, eles ganhariam mais dinheiro. Do ponto de vista de mercado, os Beatles não são exatamente o Bon Jovi. Podem se dar ao luxo de criar suas próprias condições. E podem esperar o momento propício, porque quando isso acontecer nada disso passará em branco.

Eu devia ter terminado e publicado o post porque eu hoje poderia dizer: olha, eu sei ver o futuro. Não exatamente, porque a Apple ainda não anunciou o que vai fazer do comércio eletrônico. Ou mesmo se vai fazer: eles estão ganhando um dinheiro danado apenas reempacotando o que já tinham.

O lançamento dos CDs remasterizados dos Beatles ontem virou a grande notícia do showbiz deste ano. Para que se tenha uma idéia, a New Musical Express está distribuindo uma edição com 13 capas diferentes — uma para cada álbum dos Beatles. Gente insuspeita de beatlemania está desesperada pelas caixas com os CDs. A primeira prensagem das caixas já se esgotou. Respeitadas as proporções, é uma nova pequena beatlemania. Nada mal para uma banda que no próximo dia 20 completará 40 anos de morta, embora a notícia oficial só tenha sido dada meses depois.

A máquina de relações públicas dos Beatles é impressionantemente competente.

Mas apesar disso, e apesar de assumidamente beatlemaníaco, até hoje não comprei os CDs dos Beatles. Porque já tinha tudo em vinil e porque me parece muito mais simples (e justo) copiar os MP3 de qualquer canto da internet. Mas havia um outro motivo para não comprar os CDs: eu não gostava do trabalho porco que foi feito com a remasterização (que eles sempre negaram, mas que foi realmente feita) de algumas canções e álbuns.

Para não ser injusto, algumas canções foram bem realçadas, especificamente os da segunda fase — o Magical Mystery Tour pós-1987 tem uma sonoridade geral muito melhor que as disponíveis até então. Feitas as contas, o resultado foi positivo. Mas algumas canções foram massacradas. Quem nunca ouviu o Rubber Soul em vinil não sabe exatamente quão bom é aquele disco, e que em Drive My Car há pequenos trechos que foram modificados. Quem nunca ouviu I Feel Fine no Oldies But Goldies ou naquele álbum duplo vermelho antes da remasterização sequer sabe que os Beatles ficam latindo no final da música. O som do Please Please Me em CD é ruim, metálico, culpa da má masterização dos CDs e muito inferior aos LPs em fake stereo disponíveis até 1988.

A nova remasterização pode resolver esses problemas de violação de cadáveres, e é o que eu espero. Eu estou curioso para ouvir — embora jamais o suficiente para gastar 1500 reais numa dessas caixas. Porque no fim das contas, muito disso que se discute agora é uma grande bobagem. Não há nenhuma música nova; o que se vai ouvir é a mesma coisa que se ouve há quase meio século, apenas com uma qualidade de som um pouco melhorada. No fim dos anos 90, quando relançaram o desenho animado Yellow Submarine, deu para se ter uma amostra de como a sonoridade das canções ficariam. Muito boas, é verdade. Mas continuam as mesmas canções. E agora, com remasterização ou não, elas continuam as mesmas.

Mas depois disso, fica-se imaginando o que restará para ser lançado e chamar a atenção de novos compradores.

Eu apostaria no Let it Be restaurado e com horas de cenas extras. Por pior que seja o filme — e acredite, é um filme realmente ruim –, seria a última coisa realmente interessante que a Apple Corps poderia oferecer aos fãs.

Beatlegs

Decca Tapes, o pirata primordialA minha primeira bíblia sobre os Beatles foi a revista Beatles Documento (ou Documento Beatles), uma edição especial da revista Somtrês escrita pelo Marco Antonio Mallagoli, do fã clube Revolution. Era 1985, uma época em que informação era difícil de achar. Minha primeira cópia se desfez de tanto uso, e comprei outra. Depois eu veria que tem muita informação errada ali. Muita, mesmo, além de opiniões bastante descartáveis. Mas independente disso, foi a revista responsável por eu querer entender um pouco mais sobre a banda. A Beatles Documento foi inestimável.

Ela foi também minha introdução na pirataria. Uma seção da revista fazia uma boa lista de discos piratas. De repente, eu ficava sabendo que além das músicas que eu já sabia que existiam — eu ainda não tinha ouvido todas — havia também uma infinidade de outras que não estavam facilmente disponíveis. Foi lá que fiquei sabendo do The Decca Tapes, o primeiro álbum pirata que comprei na minha vida, ainda naquele ano, e de tantos outros. As imagens que acompanham este post são de discos mencionados naquela revista.

Pirataria dos Beatles é coisa de fã, mesmo. A maior parte é simplesmente ruim. Não é algo que interesse realmente a ninguém, porque são geralmente canções descartadas ou incompletas. Mas mesmo levando isso em consideração, pirataria já foi mais interessante. Até há 15 anos, uma boa porção de material inédito bastante interessante era encontrado apenas em discos piratas. A Apple contornou esse problema lançando o Live at the BBC em 1994, e nos anos seguintes a série Anthology, com um montão de sobras de estúdio e algumas gravações ao vivo. Com isso, eliminaram boa parte dos atrativos desses discos. Pirataria é para completistas que se dão ao trabalho de tentar escutar tudo que a banda fez. Ou seja: para bobos.

O conselho que dou para qualquer pessoa que queira escutar isso é: não perca seu tempo. O que fez dos Beatles uma grande banda não foi o material que descartaram por considerarem ruim; é o que está nos discos lançados entre 1962 e 1970. Mas o mundo também tem lugar para malucos como eu. Então aqui vai uma breve introdução para aqueles que querem conhecer um pouco mais sobre pirataria.

Durante muito tempo, esses discos foram lançados por “selos” tão verdadeiros quanto uma nota de 3 reais. Alguns, como a Yellow Dog, Audifön, Vigotone e Great Dane se notabilizaram pela alta qualidade dos seus lançamentos. Mas até há alguns anos era extremamente difícil achar discos piratas — e quando se achava, eles eram caríssimos. A coisa melhorou muito com o surgimento do CD. Mas a grande virada, mesmo, foi a consolidação da internet como canal de distribuição. Foi quando surgiu a Purple Chick.

A Purple Chick é, provavelmente, um grupo de fãs (ou um louco só) que está realizando compilações quase perfeitas e abrangentes de todo esse material disponível e distribuindo-as gratuitamente na internet. Hoje, Purple Chick é, se me permite o paradoxo, garantia de qualidade em gravações de má qualidade.

Basicamente, os discos piratas dos Beatles vêm de seis fontes distintas: gravações caseiras, gravações de programas de rádio na BBC, shows ao vivo, outtakes das sessões de estúdio, e as sessões de gravações do Get Back/Let it Be, como o show no telhado da Apple, que na última sexta completou 40 anos.

Decca Tapes
É o meu preferido, e o único que tenho em vinil. É a gravação da audição dos Beatles na Decca, aquela que fez o diretor da gravadora, Dick Rowe, dispensá-los e dizer que “bandas de guitarra estão fora de moda”, para seu eterno arrependimento. É um bom disco. As gravações são encontradas em vários outros, hoje em dia, mas esse é o original. É um clássico absoluto.

Demos
Demos é como são chamadas as gravações caseiras feitas para não esquecer uma música que acabaram de compor ou para mostrar aos outros membros da banda. Antigamente elas estavam espalhadas por vários discos diferentes, em coletâneas como a série Artifacts, mas hoje há uma série chamada The Complete Home Recordings, que abrange desde as primeiras gravações, ainda com Stuart Sutcliffe, até o final. A maior parte é chata de doer, mas aqui e ali uma ou outra canção se sobressai. Serve também para entender que, na época do “Álbum Branco”, as canções já eram apresentadas ao resto da banda praticamente em sua forma final.

BBC
Foi uma das grandes fontes de pirataria dos Beatles durante muito tempo. Nos seus shows na BBC, eles tocavam músicas inéditas — são dezenas delas –, brincavam, etc. Durante muito tempo a melhor compilação desses shows foi o The Complete BBC Sessions; hoje, se alguém quer a mais completa, deve procurar pela edição com mesmo nome da Purple Chick. Está tudo ali. É a melhor de todas. Mas o fato é que mesmo para fãs o disco oficial Live at the BBC é mais que suficiente. Com algumas poucas exceções, praticamente tudo o que os Beatles gravaram de interessante na BBC está lá. O resto é redundante.

Shows
Os dois únicos discos ao vivo oficiais dos Beatles foram lançados 7 anos depois do fim da banda. O Live at Hollywood Bowl, uma mixagem de pedaços dos shows de 1964 e 1965, ainda não foi lançado em CD, e o The Beatles Live! At Star Club, Hamburg 1962 sempre enfrentou problemas legais, já que nunca foi autorizado pela banda. (Em 1998 eles finalmente venceram um processo judicial para tirá-lo de catálogo, e hoje é um disco pirata. Mas é brilhante. Serve, quando menos, para mostrar que os Beatles eram uma grande banda de rock and roll e que eram extremamente empolgantes ao vivo, antes da rotina dos shows da beatlemania.) A maioria dos discos de shows têm qualidade de som muito ruim, servindo principalmente como registro histórico. Mas há exceções. O Shea Stadium é o maior show da história dos Beatles (embora tenha sido “aperfeiçoado” em estúdio algumas semanas depois), e o primeiro mega-show da história. No Live in Atlanta, 1965, você pode ouvir Lennon esnobando a sua audiência, que obviamente não podia ouvir nada por causa dos seus próprios gritos. O Five Nights at a Judo Arena, dos shows japoneses da última turnê dos Beatles, tem som excelente mas mostra uma banda que já não faz o mínimo esforço em tocar sequer afinada. E finalmente há o Candlestick Park, o último show ao vivo dos Beatles, em São Francisco (e melhor que os outros shows dessa turnê).

Out-takes
Ah, qualquer um. Tem um monte por aí. A maior parte é deprimente — mixagens da sala de controle, essas coisas. Com raras exceções, são todas inferiores ao que foi liberado. Não valem a pena. Há uma série chamada “The Alternate…” (The Alternate Help, The Alternate Rubber Soul, etc.) que faz um bom resumo do que foram as sessões de gravação de cada um desses discos, e se você quer se aventurar por esse pântano, são os mais recomendáveis. Costumam ser os discos com melhor qualidade de som — afinal, foram tirados diretamente do estúdio. E sempre se pode achar uma ou outra coisa realmente interessante nelas, uma versão esquisita de alguma canção, coisas desse tipo.

Let it Be
Essa é a outra grande fonte da pirataria. Afinal, foram mais de 90 horas de gravações. Há coisas inacreditáveis ali. Acho que chegam a centenas de canções diferentes. A série Thirty Days é clássica, e foi durante muito tempo a mais completa. Mas recentemente a Purple Chick lançou a série A-B Road, baseada nas fitas do filme — um “álbum” para para cada dia, com mais de 90 faixas em cada. Nos dois casos, a verdade é que qualquer ouvinte ficaria perdido entre tantas gravações dispensáveis, redundantes ou ruins. Diálogos, afinação, falsos começos, gravações sem absolutamente nenhum interesse — é uma infinidade de bobagens que não interessa a ninguém, além de colecionadores hardcore. É por isso que eu recomendaria os 3 discos de The River Rhine Tapes. Uma excelente seleção do que saiu de melhor daquelas sessões — John cantando Get Back, Maxwell’s Silver Hammer, Something e I’ve Got a Feeling, por exemplo, as melhores versões de Two of Us, e muito mais — com qualidade de som muito boa. É definitivamente melhor que o Anthology III.

The Beatles Virtual Museum

Durante muito tempo, imaginei escrever uma série de posts sobre cada álbum dos Beatles.

Teria um texto sobre cada um, incluindo seu contexto histórico, a descrição de cada canção com datas de gravação e mixagem, autor, lista de músicos, letras e cifras, e eventualmente um link para um arquivo qualquer — no caso dos covers, para as gravações orginais, apenas para mostrar como os Beatles conseguiam, na maior parte dos casos, recriar de maneira surpreendente cada canção; no caso das composições próprias, links para versões piratas diferentes, essas coisas.

Nunca fiz isso porque nunca tive muito tempo vago, nem paciência para compilar esses dados ou para escrever algo decente.

Só que agora eu não preciso mais. O The Beatles Virtual Museum é um belo site sobre os Beatles. Dados, imagens e, acima de tudo, links para muitos discos piratas.

Uma pequena bibliografia dos Beatles

Uns anos atrás publiquei aqui uma pequena bibliografia dos Beatles. Alguns anos e alguns livros depois, chegou a hora de atualizar a lista.

The Complete Beatles Recordings
Mark Lewinsohn
Comissionado pela EMI como parte das comemorações do seu centenário, em 1988, acabou se transformando no livro definitivo sobre os Beatles no estúdio de gravação — e foi ali, no estúdio, que os Beatles se tornaram o que são até hoje. The Complete Beatles Recordings é um diário de todas as sessões da banda, provavelmente o livro mais acurado que já se escreveu sobre ela. Infelizmente fora de catálogo há muitos anos, se tornou a bíblia dos beatlemaníacos, o livro a que se recorre para dirimir dúvidas. Ainda espero a chance de colocar novamente minhas mãos sobre um exemplar, é o único fundamental que falta na minha estante. Os anos passaram e veio a internet, um repositório muito maior de informações. O livro mostrou ter lacunas, e mesmo alguns erros pequenos. Mas continua sendo o livro mais importante já escrito sobre o dia-a-dia dos Beatles, e necessário para que se entenda a dinâmica que fez da banda a maior de todos os tempos. Nunca foi lançado no Brasil.

The Complete Beatles Chronicle
Mark Lewinsohn
Lançado depois do Complete Beatles Recordings, inclui as gravações, descritas de maneira mais resumida, assim como um relato das apresentações ao vivo e gravações de filmes, apresentações em TV, etc. Tem também uns bons resumos históricos e críticos sobre cada ano da banda. Nunca foi lançado no Brasil e passou um bom tempo fora de catálogo, mas vale a pena comprar via Amazon.

The Beatles Anthology
The Beatles
Parte do projeto Anthology — que incluiu também o documentário hoje disponível em DVD e os três CDs duplos (ou álbuns triplos em vinil), é a história dos Beatles contada por eles mesmos. É aceitável, apesar deles, claramente, saberem bem os limites da verdade a que podem chegar. Há pouca coisa realmente nova, mas serve como um resumo definitivo do que cada um deles tem a dizer sobre sua história, a sua versão para a posteridade. Independente disso, é um livro fantástico como objeto.

The Love You Make
Peter Brown
Brown era funcionário da Apple (citado por Lennon em The Ballad of John and Yoko). Portanto este é um relato de insider — cheio de todas as fofocas imagináveis. Foi o primeiro livro a revelar, de forma razoavelmente confiável, o lado negro da banda que dizia que tudo o que você precisa é amor. As chantagens sexuais sofridas por Brian Epstein, os maus negócios feitos por ele em nome da banda, a promiscuidade da banda, os problemas graves de Lennon com heroína, os processos de paternidade sofridos por McCartney, as picuinhas internas. Longe de ser o melhor livro para se ter, se você vai ter um só, é um daqueles livros necessários para que se tenha uma visão mais completa da história da banda.

The Lives of Lennon
Albert Goldman
Lançado em 1988 pelo sujeito que mostrou ao mundo a ruína drogada e inadequada que era Elvis Presley, The Lives of Lennon foi recebido como um exemplar particularmente imaginativo do Notícias Populares. Mas o fato é que esse é um livro excelente. Goldman se mostra, acima de tudo, um excelente pesquisador. Sem demonstrar simpatia ou compaixão por nenhum dos seus personagens, o autor revelou alguns detalhes sujos sobre a banda que, apesar de inicialmente descartados como pura fofoca maldosa, foram mais tarde comprovados. É um grande mergulho sobre a personalidade de Lennon; e Goldman foi o sujeito que deixou claro a todos que Lennon era uma mistura de carisma impressionante e personalidade complexa e detestável. O lado negativo do livro é que, às vezes, Goldman parece excessivamente iconoclasta, o que pode levar a alguns erros de avaliação e algumas presunções equivocadas.

Many Years From Now
Paul McCartney
Oficialmente a autoria é de Barry Miles. Mas isso não ilude ninguém. O livro é, na verdade, a autobiografia de Paul McCartney até o fim dos Beatles; o ghost writer apenas levou um crédito maior, provavelmente para que Macca se sentisse mais livre para falar as bobagens que quisesse e soltar as farpas que bem entendesse. De qualquer forma, é um daqueles livros fundamentais para a compreensão da história dos Fab Four. A versão brasileira é melhor que a minha, porque tem alguns acréscimos feitos depois da morte de Linda McCartney.

The Beatles: The Biography
Bob Spitz
Spitz se beneficiou da passagem do tempo e da abundância de material biográfico a respeito da banda para escrever um livro abrangente e equilibrado, que tenta fugir dos mitos sem explorar em excesso aspectos sensacionalistas. O resultado é a biografia mais completa dos Beatles, com um excelente grau de neutralidade. De modo geral Spitz tenta sempre ver todos os lados de uma questão, e mostra um bom entendimento do que era a dinâmica interna da banda. Consegue ter os fatos em boa perspectiva e evita dourar pílulas. Aqui e ali erros aparecem — alguns gravíssimos, como antecipar em um ano a reunião em que Lennon “pediu o divórcio” ao resto da banda, e outros menores; mas com exceção de Many Years From Now e do Anthology, que não contam, é o único traduzido para o português, que faz dele a melhor biografia dos Beatles disponível no Brasil.

***

Mas o livro definitivo sobre a banda ainda não foi publicado — está sendo escrito neste exato momento. Há alguns anos, Mark Lewisohn anunciou que estava escrevendo uma biografia da banda que deverá se estender por alguns volumes. Se ele mantiver nessa obra o mesmo nível de excelência demonstrado nas outras, o que se pode esperar é, finalmente, a biografia definitiva dos Beatles.

As nature intended

Jojo was a man, etc.

Phil Spector, o produtor legendário que estragou os Ramones e, segundo Paul McCartney, o último disco dos Beatles, deu o ar da graça. Ele não andava falando muito, a não ser em depoimentos na polícia para se defender da acusação de assassinato de uma moça.

Agora ele resolveu falar sobre o Let it Be. Também aqui Spector se defende, basicamente: diz que salvou o disco, esculhamba a versão recente patrocinada por McCartney, o Let it Be… Naked, e outras pequenas coisas.

A história resumida: no final de 1968, os Beatles tiveram a idéia de fazer um documentário sobre o processo de preparação de um novo show e um novo disco, que se chamaria Get Back. Tudo deveria ser ao vivo — “sem truques”, exigiu Lennon. As gravações e filmagens começaram no segundo dia de 1969 e duraram um mês. Foram um inferno, de acordo com todos os envolvidos. A banda estava indo para o buraco, e não fazia questão de manter a elegância.

George Martin cansou de tanta baixaria no estúdio e abandonou o projeto. O engenheiro de som Glyn Johns, transformado em produtor, apresentou uma primeira mixagem do álbum, depois uma segunda. Esta versão chegou a ser distribuída para algumas rádios (e foi resenhada pela Rolling Stone), mas recolhida logo depois. A situação era tão feia que até mesmo a banda, envolvida com o fim iminente, abandonou o projeto. McCartney ainda conseguiria fazê-los voltar para gravar o Abbey Road, com várias canções ensaiadas durante aquelas sessões no inverno londrino, e que se tornaria seu canto de cisne. Lennon e Harrison então chamariam Phil Spector — provavelmente o produtor mais famoso da história do pop, idolatrado por gente boa como Brian Wilson — para ver o que ele podia fazer daquele material disponível. Spector se trancou com as fitas e emergiu com o Let it Be — um disco esquisito, para dizer o mínimo.

Eu fazia parte daquele grupo que achava que Spector tinha salvo o disco. Concordava com a versão de Lennon porque o que se via no filme Let it Be era uma mixórdia confusa, e achava difícil que se conseguisse tirar algo dali. Mas Lennon estava errado, e eu também. Spector não salvou o Let it Be.

O fato é que nenhum dos dois produtos — a versão de Glyn Johns ou a de Phil Spector — era grande coisa. Nenhum produtor, por melhor que fosse, poderia fazer uma obra-prima a partir do material que os Beatles deixaram em suas mãos. Aquilo era inferior a praticamente tudo o que os Beatles já tinham feito em sua carreira. Claro que se podia fazer um grande disco com aquelas canções; bastava colocar a banda em estúdio e gravar do modo tradicional, como fizeram mais tarde com o Abbey Road. Mas àquela altura isso era impossível. Johns e Spector tiveram que trabalhar com o que tinham.

Mas a versão de Johns era mais orgânica. Com boa vontade, assim como os ouvintes acreditaram que o Sgt. Pepper’s era um disco conceitual, Get Back tinha a cara de um disco ao vivo, ou ao menos a representação de um processo de criação. A abordagem de Johns estava correta. Aquele era um disco mal acabado, confuso, cheio de erros — mas era essa a proposta original de Lennon e de todo o grupo. Havia, afinal de contas, um conceito por trás daquilo tudo, e Johns conseguiu traduzi-lo adequadamente — algo que Michael Lindsay-Hogg, diretor do filme, não conseguiu, a propósito. Get Back, como concebido por Johns, é um exercício de iconoclastia que faz todo o sentido no mundo fragmentado de 1969. De certo modo, chega a ser avant garde — “french for shit“, segundo o Harrison de alguns anos antes.

A versão de Johns tinha defeitos, obviamente. Ele nem sempre escolheu as melhores versões disponíveis. Algumas canções não precisavam estar lá, como Teddy Boy, que nunca chegou a um ponto aceitável de entrosamento, tosca até pelos padrões do disco. Não havia nenhuma necessidade de colocar Rocker e Save The Last Dance For Me — entre as musiquinhas que os Beatles improvisavam no estúdio pode-se citar umas cinco, pelo menos, que tinham melhor qualidade.

Ainda assim, o disco produzido por Glyn Johns tirava o melhor de uma situação extremamente adversa. Assumia que aquilo era uma gravação desleixada e e a transformava em um retrato sobre a intimidade de uma banda. A versão de Johns aparentava um sentido; a de Spector é apenas a tentativa desastrada de transformar um material ruim em algo comercial. A abordagem de Johns é mais inteligente, porque não tenta tirar leite de pedra, e os resultados são mais satisfatórios.

A versão de Phil Spector tirou boa parte da espontaneidade que se podia perceber no Get Back. Não apenas ao colocar cordas e corais em canções como The Long and Winding Road, mas ao picotar o disco e tirar a organicidade que, bem ou mal, a versão de Glyn Johns tinha. Por exemplo, é só ver o que ele fez com Dig It. Essa canção era um problema, por ser longa demais. A versão de Johns é basicamente a que aparece no filme Let it Be — que não é uma versão completa. Spector mutilou a música ainda mais, transformando-a em apenas uma vinheta perdida em meio a duas canções. Seria melhor tirá-la, ou colocar a versão de Johns (do meio para o final) para abrir o disco — “can you dig it?”

Spector está errado. Só está certo ao falar mal do Let it Be… Naked, um lixo sem razão.

***

Falando em Dig It, a canção é uma mostra de como as coisas são confusas quando se trata dos Beatles. Ela nasceu de uma jam session, com Billy Preston nos teclados e George Martin nas maracas. Por isso, está registrada como composta por todos os quatro Beatles. Mas é John quem improvisa a maior parte das letras. Talvez por isso, sempre que alguém se refere à canção, diz que é dos quatro, mas principalmente de John.

A gravação incluída no Get Back, com mais de 4 minutos e musicalmente mais interessante, mostra uma participação muito maior dos outros — principalmente de McCartney — na definição da canção. Só isso já deveria bastar para colocar em dúvida essa presunção de que Dig It é de Lennon.

Mas há uma outra canção que me intriga. No More Rhine Tapes, um dos melhores discos piratas tirados das sessões do Let it Be, ela tem o nome de Get Off e dura cinco minutos. É basicamente um bluesinho de 12 compassos. Paul canta: “White power!” e John responde: “Get off!” Aí começa uma brincadeira de perguntas e respostas entre Paul e John — Paul citando nomes e John gritando “Get off!“, quanto Ringo segura a base e George sola e arpeja durante a música. Entre os nomes desprezados por Lennon estão Judy Garland, Wilson Pickett e uma porção de outros, gente boa e ruim.

A música pára. Eles voltam. E Paul solta a frase: “Can you dig it?“, uma evolução da brincadeira do “get off“. “Winston Churchill; can you dig it?” A música continua evoluindo a partir daí.

A canção não tem maracas nem teclados, o que quer dizer que provavelmente foi gravada nos estúdios Twickenham, antes de George sair e antes dele convidar Billy Preston para amenizar o clima no estúdio. A Dig It como se tornou conhecida é quase certamente uma evolução dessa Get Off.

Não seria justo creditar a canção a qualquer um dos Beatles. É uma obra coletiva, uma brincadeira de estúdio. Mas a insistência de “beatleólogos” em definir um autor específico para cada canção acaba levando a distorções como essa.

Novos factóides sobre Lennon

Livro novo sobre Lennon na praça: John Lennon — The Life, de Philip Norman.

Ao que tudo indica, parece ser um bom livro, razoavelmente honesto. Vem sendo elogiado, até porque Norman é autor de um bom livro sobre os Beatles, Shout!. A capa lembra a de The Beatles – A Biography, de Bob Spitz (livro traduzido no Brasil, a propósito), parecendo quase um desdobramento lógico dele.

A essa altura, há pouco o que se dizer de Lennon ou dos Beatles. É um assunto praticamente esgotado. Não resta muito o que dizer. A solução é apostar em pequenos factóides. A crítica fala de informações novas no livro: ensina que Eight Days a Week nasceu de uma frase dita a Paul McCartney por um taxista, e que Lennon teve um “lance” com Alma Cogan. Nada disso é novidade. As duas informações estão em Many Years Ago, a autobiografia de McCartney escrita por Barry Miles. Norman também fala da mitificação negativa sofrida por Freddie Lennon, pai de John — mas isso foi investigado a fundo em The Lives of John Lennon, de Albert Goldman, o primeiro a questionar a imagem santificada de Lennon. Norman diz que o livro de Goldman é “malevolente, risivelmente ignorante”, e certamente tem alguma razão em suas alegações — principalmente sobre a maldade de Goldman; o que, no entanto, não parece ter impedido que bebesse de sua fonte de dados.

Essas são informações pequenas e pouco interessantes, no entanto. Para chamar a atenção do mercado, o livro fala sobre duas pretensas fantasias sexuais de Lennon: com a mãe, Julia, e com Paul McCartney. Incesto e homossexualismo: nada melhor para atrair atenção para um livro que, no final das contas, não traz muita coisa nova.

Só que nada disso é realmente novidade, tampouco. E não significa nada. Para uma pessoa conturbada (ou complexa, se preferir) como Lennon — e com uma sexualidade maleável, como o pretenso caso com Brian Epstein demonstra — os dois aspectos são até de se esperar. Vulnerável, sensível, carente e agressivo, Lennon tinha dificuldade em lidar com suas emoções, ou em entender a sua natureza.

No caso da sua mãe, a relação absolutamente edipiana já tinha sido explorada pelo próprio Lennon em suas próprias canções, como My Mummy’s Dead, Mother (“I wanted you, you didn’t want me“) e, de maneira mais reveladora, em Julia — em que as figuras de Julia Lennon e Yoko Ono são confundidas e assemelhadas. Além disso, declarações a esse respeito do próprio Lennon são facilmente encontradas por aí, como o trecho em seu áudio-diário explorado por Norman, de 5 de setembro de 1979:

Lembrei da vez em que estava com a mão no peito de minha mãe, em 1 Blomfield Road. Eu tinha cerca de 14 anos. Faltei à escola, eu sempre fazia isso e ia para a casa dela. Nós estávamos deitados na cama e eu pensava, “Será que eu deveria fazer algo mais?” Foi um momento estranho, porque na verdade eu estava a fim de uma moça de classe baixa que morava do outro lado da rua. Eu sempre penso que deveria ter ido em frente — presumindo que ela tivesse deixado.

Fãs hardcore de Lennon já conheciam essas gravações, disponíveis em uma série de discos piratas chamada The Lost Lennon Tapes e já comentadas aqui e ali em listas de fãs, como o rec.music.beatles da Usenet. E dão a elas a importância adequada: uma mostra de confusão existencial de Lennon e incapacidade de entender seus próprios sentimentos ou resolver o seu complexo de Édipo.

No que se refere a Paul McCartney (segundo Norman, Lennon só foi barrado pela “heterossexualidade inamovível” de Mccartney), é muito mais simples. Não é nada realmente novo, pelo menos não do ponto de vista de Lennon; já se especulou muito sobre a natureza da afeição de Lennon por Stuart Sutcliffe, por exemplo — especulação que chegou a filmes como “Os Cinco Rapazes de Liverpool”. Não quer dizer nada. De qualquer forma, algo que nunca passou de uma fantasia na cabeça do sujeito, provavelmente pouco elaborada, não é exatamente algo importante.

De modo geral, essas revelações não acrescentam muita coisa à história de Lennon. E em termos de impacto, não chegam perto do estrago feito pelo livro de Goldman, o primeiro grande exercício de iconoclastia sobre Lennon.

Agora, resta apenas esperar dois eventos. O primeiro é a biografia monumental que Mark Lewinsohn está escrevendo — Lewinsohn é provavelmente o maior historiador dos Beatles, autor de um dos livros fundamentais sobre a banda, The Complete Beatles Recording. Talvez não traga grandes revelações, mas é provável que venha a ser a biografia definitiva sobre os Beatles, o único livro que alguém precisará ter para conhecer sua história. Pelo histórico de Lewinsohn, pode-se esperar acurácia histórica e abrangência factual, os mais importantes elementos desse tipo de biografia.

O segundo será a morte de Paul McCartney. Até agora, quem escreve uma biografia sobre McCartney tem que escolher entre o máximo de cuidado possível ou o acesso a fontes razoáveis. Além disso, ele é um homem poderoso, o que certamente intimida aqueles que querem explorar eventuais escândalos em sua vida, e dono de uma forte camada de teflon, que impede que a má fama grude a ele. No entanto, é possível imaginar a avalanche de livros escandalosos que surgirão a partir de sua morte, explorando fatos como ele ser extremamente mulherrengo, de não ter reconhecido alguns filhos, de ter sacaneado amigos e colaboradores.

Escritores sensacionalistas devem estar torcendo para que o velho e bom Macca morra logo.

Pequena introdução à discografia de Paul McCartney

E então, sem ter o que fazer, resolvi fazer uma pequena lista dos discos de Paul McCartney.

Coisa chata, mesmo, só para fãs do sujeito.

Na lista não entram discos ao vivo, mesmo que todos eles tenham canções inéditas, nem os discos de música eletrônica ou, ainda, as peças de música erudita — acredite em mim, coisas como Liverpool Oratorio deixam os piores discos desta lista parecendo obras-primas. Além disso, a base são os LPs originais, o que quer dizer que deixa de lado vários compactos, muitos deles brilhantes, que foram mais tarde incluídos como faixas bônus nos CDs. Para mim, incluir esses compactos no disco original é como colocar Penny Lane e Strawberry Fields Forever numa reedição do Sgt. Pepper’s. É a mesma razão pela qual incluo uma coletânea que juntou uma série de compactos de McCartney que não existiam nos LPs.

Continue reading

A memória dos grandes

Das lendas vivas dos anos 60, apenas duas mantêm uma trajetória criativa significativa quase meio século depois: Bob Dylan e Paul McCartney. Os Rolling Stones, a outra lenda, estão no mesmo nível de um Chuck Berry e Little Richard, ou de Elvis em 1975, vivendo de shows em que reapresentam incessantemente um repertório brilhante composto décadas atrás; o que muda é apenas a magnitude. Apenas para comparação, nos últimos vinte e poucos anos os Stones lançaram apenas quatro discos com canções inéditas, todos medíocres, e são três compositores na banda. Nesse mesmo período de tempo McCartney lançou doze, incluindo dois discos de covers e três de música erudita, com alguns pontos altos.

O penúltimo último álbum de McCartney, Chaos and Creation in the Backyard, foi recebido com aplausos generalizados, inclusive por este blog. Menos de dois anos depois, e em meio a um dos divórcios mais públicos e escandalosos dos últimos anos, ele apareceu com um novo disco, Memory Almost Full.

Normalmente as pessoas resenham um álbum assim que ele é lançado. Mas algo de estranho acontece com McCartney: as pessoas elogiam seus discos durante o lançamento enquanto detonam o anterior, e esse processo segue infinitamente: a obvra elogiada hoje é detonada amanhã. Talvez a música de McCartney pareça biodegradável, não sei; por via das dúvidas, resolvi só publicar este texto pelo menos um ano depois do lançamento do disco.

Que a capa tenebrosa, provavelmente a pior de McCartney em quase meio século de carreira, não sirva de prelúdio ao conteúdo do disco: Memory Almost Full é um excelente álbum.

É curioso notar que, do ponto de vista do conjunto, Chaos and Creation é um disco melhor. É mais coeso, é claramente um álbum concebido como uma entidade única e orgânica. Mas Memory Almost Full tem uma vantagem nada desprezível: é um disco com melhores canções pop. Aqui se vê de volta o bom e velho Paul McCartney, com ecos dos Wings e uma capacidade de criar boas melodias que parecia perdida quando ele entrou em sua sétima década de vida.

O mais interessante é que, de repente, as letras de McCartney passaram a ser pessoais. É impossível ouvir o disco e deixar de pensar que algumas das faixas são respostas à crise por que ele passou nos últimos anos.

O disco foi gravado em dois momentos diferentes. O primeiro, em 2003, com a banda que o acompanha em shows e que estava presente em Driving Rain, disco de 2001. O segundo, a partir de 2006, com McCartney tocando todos os instrumentos. Depois do clique segue um comentário faixa a faixa.

Continue reading