De como Heather McCartney destruiu os Beatles em apenas 9 minutos

E você aí falando besteira, dizendo que foi Yoko Ono quem acabou os Beatles.

Mentira, mentira canalha. Quem acabou a banda foi Heather McCartney, no dia em que algum insano deu um microfone para ela durante as gravações do Let it Be.

Um bebê que assim daria à sua mãe motivo real para infanticídio com requintes de crueldade, e seria absolvida por qualquer juiz do mundo, absolvida até pelo Papa Francisco. Ainda hoje não sei como George Harrison não se levantou e bateu em Heather com o seu guitarra até que restasse apenas uma papa ensanguentada no chão, gritando palavras incompreensíveis em chinês, babando com olhos vítreos.

Enquanto isso Lennon, que queria ver o circo pegar fogo, encorajava Heather: “Come on, Heather! Come on, Heather!” Ou talvez ele estivesse apenas chapado, ou então tenha visto na menina uma digna seguidora de Yoko. “Essa menina vai longe…”

Eu não sei. Mas tenho certeza de que foi ali, nesse dia, que os Beatles acabaram. E então a pobre Yoko, vítima de uma campanha canalha levou a pecha que deveria recair sobre aquela menina lourinha de 6 anos.

Yoko Ono and her Beatles

No dia 10 de janeiro de 1969, diante das câmeras que filmavam o que viria ser o filme Let it Be, Paul McCartney e George Harrison discutiram. George, cansado de ser guiado por Paul em I’ve Got a Feeling, mas apenas deixando transbordar anos de ressentimento, disse que tocaria como Paul quisesse, ou simplesmente não tocaria, era só McCartney dizer.

A discussão continuou no horário de almoço, na cantina do estúdio, e se agravou ainda mais. Finalmente George empacotou sua guitarra. “Vejo vocês nas boates”, disse ele, e foi embora decidido a nunca mais voltar.

Sozinhos, os Beatles restantes iniciaram a tarde com uma jam session. Era apenas barulho, os três maltratando seus instrumentos e descontando neles a frustração que vinha se acumulando desde as gravações do Álbum Branco, e que agora chegava ao ápice com o aparente fim da banda como ela era. Curiosamente era talvez a coisa mais heavy que os Beatles já tinham feito.

E então Yoko Ono se sentou no lugar de George e pegou seu microfone, certamente atenta a tudo o que isso simbolizava. O que se seguiu foram alguns minutos de loucura sonora. Enquanto Yoko grita histericamente, realizando o seu conceito de arte e de música tendo como banda de apoio nada menos que o maior grupo do mundo, Ringo bate alucinadamente em sua bateria, John tenta manter uma base mínima, McCartney arranca o máximo de microfonia possível do seu Hofner. Yoko é a única que sorri no que para os outros é apenas uma catarse, feliz por ter uma chance secretamente acalentada e sempre negada.

Mais tarde, já sem McCartney, a jam degringola ainda mais, restrita a um Lennon aparentemente chapado de heroína brincando de fazer microfonia e Ringo Starr tocando uma bateria deslocada no tempo e no espaço.

Senhoras e senhores, eis um momento antológico dos Beatles, e o que é talvez seu ponto mais baixo.

Beatles 65

Alguns anos atrás, o apartamento onde eu morava pegou fogo. História resumida, ele ficou desabitado por alguns meses, até que questões de seguro fossem resolvidas, reformas fossem feitas e ele se tornasse habitável de novo. Nesse meio tempo um vazamento inundou o quarto onde ficavam livros e discos. Estragou alguns livros, muito poucos, mas os discos ficavam no chão e pegaram o pior de tudo aquilo. Quando vi o estrago, e peguei nos discos, as suas capas grudadas se soltavam como peles de leprosos. Desisti de separá-los e limpá-los e os guardei assim mesmo.

Demorou anos até que eu tivesse coragem de olhar os discos novamente. Olhei apenas uns meses atrás porque um amigo queria ouvir os vinis dos Anthologies e do Live at BBC dos Beatles. Eu não tenho tara por vinil, nunca tive. Melhor invenção do mundo foi o .mp3. Mas eu gostava do que tinha, principalmente porque faziam parte de uma época em que eu queria ter tudo dos Beatles.

Como eu imaginava, muita coisa se perdeu. E algumas perdas doem muito. Uma caixa com as gravações completas de Sinatra e Dorsey. Um LP raríssimo de Louis Armstrong. Uma caixa de Hoagy Carmichael. E as capas de tantos discos: do Live at the Hollywood Bowl, dos Anthologies e do Live at BBC. Mas nada doeu tanto, naquele momento, quanto perder as capas dos Anthologies. Três álbuns triplos, acho que lançados só na Inglaterra, e que eu tinha comprado por acaso em Roma, muitos anos atrás. O resto do mundo, na época, viu apenas os CDs, mas eu tinha orgulho dos meus LPs. Dois deles jamais tinham sido tocados; a eles, bastava existirem — perfeitos, belos, assim como o duplo Live at BBC.

Algumas boas notícias: discos que eu imaginava perdidos ficaram inteiros: o Decca Tapes, meu primeiro pirata dos Beatles. O Beatles Story, disco curioso que, na verdade, acho que nunca escutei inteiro. Um exemplar da primeira tiragem americana do Let it Be, com capa dupla e selo com maçã vermelha. A discografia brasileira original. Meus Magical Mystery Tour, ainda com os livretos — tanto os compactos originais quanto o LP pós-1976. Muita coisa manchada, com as marcas da água, mas acima de tudo muita coisa em estado aceitável, pelo menos.

E então bateu outro arrependimento.

Durante quase 15 anos, a discografia brasileira foi diferente da inglesa. Até o Help!, os discos brasileiros eram diferentes dos originais ingleses, tanto em capas quanto em ordem e número de faixas. Apenas a partir do Rubber Soul os lançamentos foram unificados.

E eu tinha todos eles. Todos menos um.

O “Beatles 65” era a versão brasileira do Beatles For Sale. Procurei por ele durante muitos anos, mas só fui achá-lo em 2005, na Baratos da Ribeiro. 20 real, se lembro bem. Comprei e fui dar uma volta em Copacabana com a Carol. Esqueci o disco num caixa eletrônico ao lado do Copacabana Palace, e quando voltei ele obviamente não estava mais lá. Esses cariocas são uns loucos, porque é preciso ser louco para roubar um disco vagabundo de uma banda que funkeiro carioca que se respeite jamais ouviria. E, claro, uns ladrões safados sem vergonha, uma ruma de filhos da puta que jamais mereceriam sequer o purgatório.

Em 2010, de volta ao Rio, achei novamente o disco, em outro sebo. Já não custava 20 real, custava 50. E como eu tinha perdido tudo nem me dei ao trabalho de pensar em comprá-lo — mas bem ali do lado tinha um “Canções Praieiras” do Caymmi, e eu acho esse um dos maiores discos da história da MPB.

Agora vejo que nem tudo estava perdido, que eu ainda tinha aqueles discos, e que naquele dia eu finalmente poderia completar a minha coleção.

Idiota, mil vezes idiota.

O tempo passou, eu não ligo mais para isso, os .mp3 e .flac no meu computador e no celular quebram meu galho — na verdade os .mp3 são o bastante, mas algumas coisas eu realmente só consigo baixar em .flac — e eu não tenho mais tempo para ficar admirando capas de disco. O último disco de McCartney que comprei foi o Run Devil Run, o último de Lennon foi a caixa Anthology, e lá se vão uns 15 anos, acho. Eu não compro mais discos. Cá entre nós, sequer ouço tanta música assim.

Mas lá no fundo fica a sensação de que está faltando alguma coisa, uma única coisa. E essa coisa é o “Beatles 65”.

Beatlemania em 2014

Durante oito anos, esperei pelo lançamento do livro que Mark Lewisohn estava escrevendo.

Lewisohn é o maior especialista em Beatles do mundo. É autor de dois livros fundamentais sobre a banda: The Complete Beatles Recording Sessions, recentemente relançado depois de uns 20 anos fora de catálogo, e The Complete Beatles Chronicle. Nos últimos 25, 30 anos, teve enorme acesso aos ex-beatles, a Yoko Ono e aos principais satélites da banda, como Neil Aspinall, George Martin, Derek Taylor e Tony Barrow.

Tudo indicava — eu, pelo menos, tinha certeza — que a biografia anunciada no meio da década passada seria uma obra fundamental, provavelmente definitiva. Demorou mais de oito anos até ficar pronta. Quando finalmente foi definida uma data de lançamento, o tamanho de All These Years: Tune In impressionava: mais de 800 páginas, e isso apenas cobria o período até 31 de dezembro de 1962, antes mesmo do início da beatlemania. Não havia mais dúvidas de que essa seria não apenas a mais abalizada, mas também a mais detalhada biografia da banda.

A pergunta que me faço agora é se o livro corresponde a expectativa tão grande e fatalmente injusta. A resposta é sim e não.

De longe, All These Years: Tune In é a melhor biografia dos Beatles já escrita, e merece todos os elogios possíveis. É abrangente e rigorosa. Lewisohn não parece sentir muito prazer com o texto em si, não se abandona em maiores aventuras estilísticas e parece deixar escapar chances demais de fazer seu texto mais atraente. Mas é um historiador competente e desce a detalhes inesperados.

Tem a vantagem do rigor historiográfico. É mais que óbvio que ele ama seus personagens e não os aborda com a iconoclastia regicida de um Albert Goldman, por exemplo; mas tampouco se abstém de relatar os fatos mesmo quando pouco lisonjeiros, e claramente se esforça para manter um mínimo distanciamento como historiador. Evita explorar em excesso o lado negativo de seus biografados — o preconceito e a crueldade do Lennon adolescente, marcas que perdurariam por toda a sua vida, são mencionados algumas vezes, mas Lewisohn não faz disso um cavalo de batalha. Curiosamente, ele não fez nenhuma nova entrevista com os ex-beatles — provavelmente por reconhecer que nem McCartney nem Ringo têm algo novo a dizer, e a esta altura já acreditam piamente nas versões que foram burilando ao longo de 50 anos.

O livro traz algumas revelações, como uma nova versão sobre o abandono de Lennon pelo pai, finalmente contada por alguém que também estava lá, e o uso de maconha por parte da banda anos antes do que se imaginava (dizia-se que foi Dylan quem os apresentou à marijuana, informação tirada da biografia de McCartney escrita pelo Chris Salewicz). A mais relevante diz respeito a uma das principais peças do folclore beatle: a de que o produtor George Martin tinha ficado impressionado com a banda durante uma audição e convencido a EMI contratá-los.

Em The Complete Beatles Recording Sessions, Lewisohn já tinha notado que o contrato dos Beatles datava de dois dias antes do teste da banda: era de 4 de junho de 1962. Creditava essa discrepância a um erro de datilografia. Agora ficamos sabendo a verdade, e ela é surpreendente: Martin só ouviu os Beatles depois de já contratados, e não teve papel nenhum nessa transação. Na época, estava às voltas com um caso extraconjugal com sua secretária (que viria a ser sua segunda esposa), com problemas financeiros decorrentes disso e não tinha condições de escolher muito. Ou seja: embora ele mesmo tenha recontado a história e se dado importância fundamental no processo de reconhecimento do talento dos Beatles, os Beatles lhe foram impostos goela abaixo.

De qualquer forma, não são revelações bombásticas que fazem as grandes qualidades de Tune In. A essa altura, há pouca coisa importante que se possa desenterrar sobre a banda — é até curioso que uma informação dessas tenha conseguido escapar às centenas de livros escritos até agora, por mais de meio século. O que realmente importa é que isso não diminui a importância de Martin na realização da visão dos Beatles ao longo dos anos 60; apenas arranha um pouco a sua própria pompa.

A grande surpresa do livro é que, contrário do que eu e milhares de fãs esperavam, Tune In não esgota o assunto. Em vários momentos se tem a impressão de que Lewisohn poderia ter tentado elaborar melhor algumas análises, e apresentar uma visão mais abrangente sobre elementos menos factuais da banda. Em “The Beatles”, de Bob Spitz, aspectos mais intangíveis da vida familiar de McCartney, principalmente após a morte de sua mãe, são mais bem delineados, e o leitor entende melhor não apenas a dinâmica íntima dos Mohin/McCartney, mas também a leve superioridade com que McCartney olhava a vida familiar de Lennon. A reação de John à morte de sua mãe — Julia tinha ido “devolver” John a sua irmã Mimi, porque seu marido tinha perdido o emprego por dirigir bêbado e John não poderia mais ficar tanto tempo na casa deles — é apresentada aqui de maneira quase lacônica e não acrescenta nada ao que já se sabia. Ao contrário, pode-se encontrar melhores descrições em outros livros.

Durante oito anos, achei que essa seria a mãe de todas as biografias. De certa forma ela é. É indispensável para fãs, repleta de pequenos detalhes e da mais assombrosa avalanche de dados que já se publicou sobre os Beatles. Quer saber quando Ringo Starr perdeu a virgindade? Está lá (George Harrison voltou da mesma festa com as mãos abanando; talvez se já conhecesse Ringo tivesse melhor sorte). É, com toda a certeza, a melhor biografia já escrita sobre a melhor banda da história — e até agora a única que parece não conter erros factuais, e certamente nenhum grave. É bem mais que o suficiente para o fã comum, e o bastante para estudiosos. Mas para naquele tipo especial de beatlemaníaco, aquele que sabe muito mas acha que tem que haver mais e que a verdade está lá fora, All These Years: Tune In não elimina a necessidade de leitura de outras biografias.

O segundo volume está prometido para 2020. É tempo demais para esperar. Mas pelo menos a espera não vai ser tão angustiante quanto foi até agora.

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On Air – Live at the BBC Volume 2, o novo álbum dos Beatles lançado em 11 de novembro, traz mais faixas retiradas das apresentações que os Beatles fizeram na rádio BBC entre 1962 e 1965. Junto com ele uma nova edição do Live at the BBC original, de 1994, remasterizado — seja lá o que isso queira dizer a essa altura — e com pequenas mudanças internas.

Em 1994, o lançamento do Live at the BBC foi a melhor notícia que fãs dos Beatles receberam em quase um quarto de século. Aquele não apenas era o primeiro disco com gravações inéditas dos Beatles em quase 20 anos (o último tinha sido o disco ao vivo Live at the Hollywood Bowl, hoje fora de catálogo porque odiado pela banda); era também o primeiro com canções oficialmente inéditas. Além disso, deu início a um novo período na vida da Apple Corps., que passou a lançar material novo de maneira razoavelmente regular. Com a maior parte das pendengas judiciais resolvidas a partir de 1995, os ex-beatles e seus herdeiros descobriram que poderiam voltar a faturar muito com gravações que, até então, vinham fazendo exclusivamente a alegria dos piratas. Seguiram-se, então, o projeto Anthology, o Let it Be… Naked, o Rock Band e finalmente a nova remasterização dos álbuns originais em 2009.

O primeiro Live at the BBC é um excelente disco. Embora tenha deixado gravações importantes de lado, finalmente trazia ao grande público parte significativa daquilo que John Lennon considerou um dia as melhores performances dos Beatles. O novo disco segue a mesma fórmula: traz dezenas de canções às vezes intercaladas com blá blá blá de programa de rádio, muitas vezes bastante interessante, e termina cada disco com entrevistas curiosas de cada um dos beatles, individualmente.

Mas não há muitas canções inéditas, além de Beautiful Dreamer, Talking ‘Bout You e Happy Birthday Dear Saturday Club. O resto são versões de canções já conhecidas, às vezes até mesmo do Live at the BBC original. Algumas são interessantes: a gravação de Words of Love parece estar no meio do caminho entre a versão original de Buddy Holly e a definitiva do Beatles For Sale. A maior parte, no entanto, é francamente inferior, como I Got a Woman (apesar do belo baixo de McCartney). Pelo visto, deram preferência às versões com melhor qualidade sonora, antes de mais nada.

Mas qualidade, ao que tudo indica, não é o motivo pelo qual deixaram de fora as gravações feitas com Pete Best, que têm maior valor histórico. Os Beatles se apresentaram duas vezes na BBC ainda com Best na bateria, em 25 de março e 11 de junho de 1962. Na primeira sessão gravaram Memphis Tennessee, Dream Baby e Please Mr. Postman. Na segunda, Ask Me Why, Besame Mucho e A Picture of You. Nenhuma delas foi incluída no novo disco. Devem ter decidido que o pobre Pete não merece faturar um pouquinho.

Essas são as canções inéditas deixadas de lado no novo disco: Dream Baby e A Picture of You são canções que jamais viram a luz do sol em qualquer outra ocasião; Side By Side e Pop Go The Beatles são temas de abertura de programas; Tie Me Kangaroo Down, Whit Monday To You… e All I Want For Christmas is a Bottle são gravações curiosas, que ficam entre o blá blá blá e paródias ou gracinhas (como a versão de Moonlight Bay incluída no Anthology). Tie Me Kangaroo Down tem, provavelmente, outra razão para ser excluída: nessa canção os Beatles acompanham Rolf Harris, recentemente envolvido em acusações graves de pedofilia. Obviamente ninguém consegue excluir nada definitivamente hoje em dia, e a canção pode ser facilmente encontrada no YouTube.

Há ainda outra categoria em que o novo disco falha: a ausência de gravações originais das quais não há nenhuma versão oficial ao vivo. O disco poderia ter incluído, então, I’m Happy Just To Dance With You, I Should Have Known Better, The Night Before, A Taste of Honey e I Call Your Name, em vez de trazer novas versões de canções já apresentadas no disco de 1994.

Durante muitos anos, The Complete BBC Sessions foi a melhor compilação das apresentações na rádio inglesa — a ponto de a Apple não negar que muitas das gravações de seus dois álbuns oficiais foram tiradas dali. Isso mudou em 2010, quando a série Unsurpassed Broadcasts foi lançada; ela está disponível gratuitamente na internet e pode ser encontrada aqui. E é ela que faz de On Air um lançamento redundante, desnecessário, perdido em meio a produtos superiores. De um lado, para o ouvinte comum, o primeiro BBC é mais que suficiente, e muito mais significativo. Do outro, para o fã e completista, é muito melhor dirigir-se diretamente aos bootlegs originais.

É claro que On Air vale a pena. É boa música, antes de tudo, tocada por uma grande banda de rock and roll. Mas não justifica a compra.

9 de dezembro de 1980

O dia seguinte ao assassinato de Lennon foi diferente dos tantos outros domingos do verão de 1980/1981. 32 anos depois e ainda lembro dele como um dia escuro, o que quer dizer que deve ter chovido em Salvador; ao menos nublado. A TV exibiu o Let it Be — acho que a única vez em que esse filme chatíssimo foi exibido na TV brasileira. Alguém foi lá para casa, e lembro de entreouvir sem nenhum interesse conversas estupefatas e tristes sobre Lennon. É essa a sensação que ficou desse dia: não era a morte de um parente, de um amigo próximo, mas era a morte de alguém que de alguma forma tinha sido importante e querido. Era tudo tão inesperado, todo mundo estava realmente chocado com aquilo.

Menos eu. Eu estava de saco cheio. Eu queria era ver desenho.

George Martin

Sir George Martin é objeto de um documentário, exibido ano passado pela BBC, que sai agora em DVD.

Martin foi o produtor de quase todos os discos dos Beatles (não produziu o Let It Be, perpetrado por Phil Spector, e parte do “Álbum Branco”). É uma lenda do rock, um entre os muito poucos produtores que conquistaram esse status.

Não conheço o teor do documentário e não sei se ele insiste em um mito muito difundido: o de que George Martin foi o grande responsável pelo avanço dos Beatles no estúdio, que sem ele a banda não teria avançado musicalmente da maneira como avançou.

É o tipo de bobagem que as pessoas escrevem e repetem sem pensar muito no assunto; pelo menos essa é a única explicação que encontro para que algo desse tipo ainda mereça espaço. Porque a prova dos nove desse mito frágil pode ser feita de uma maneira muito simples. Basta fazer uma pergunta: o que foi mesmo que Martin fez sem os Beatles?

Ninguém tem essa resposta. Não porque Martin não tenha produzido muita coisa — sua carreira pós-Beatles foi bastante movimentada, principalmente em seu estúdio em Montserrat, aquela ilhota destruída por um vulcão há uns 15 anos. Mas porque o que ele produziu é simplesmente desimportante. Do outro lado do aquário dos Beatles, George Martin participou de uma das maiores revoluções musicais da história. Sem a banda, foi só mais um entre tantos excelentes produtores, cuja função é fazer o melhor disco possível a partir da obra de um artista.

Isso não é um demérito. Martin foi um produtor brilhante, de bom gosto e sensibilidade impressionantes e uma enorme capacidade de ouvir. Mas é só isso. Objetivamente Phil Spector, o inventor do famigerado Wall of Sound, exerceu uma influência maior que a de Martin. Não se trata de diminuir o seu papel, mas de reconhecer exatamente qual foi ele.

De certa forma, aconteceu com Martin o que aconteceu com Ringo e, em menor medida, Goerge Harrison: caudatário da obra impressionante de dois gênios em um tempo especial, Martin acabou adquirindo uma aura muito superior à sua verdadeira capacidade. Talvez por isso, alguns anos atrás, McCartney — o único amigo de Martin entre os Beatles; Lennon chegou a ter uma briga pelos jornais com ele, em 1972 — tenha se mostrado ressentido ao ver que pareciam dar mais crédito a Martin pelo álbum Sgt. Pepper’s do que ele achava que o produtor merecia.

Mas tudo isso são apenas palavras. Há um jeito muito fácil de entender o papel real de George Martin no estúdio, e me impressiona que as pessoas não façam isso com mais frequência. Porque é tão fácil: pegue uma canção de Lennon/McCartney que ele tenha produzido tanto com os Beatles como com outra banda. Por exemplo, I Call Your Name. Lennon originalmente deu a canção a Billy J. Kramer, mas logo depois também a gravou. As duas versões foram produzidas por Martin.

Esta é a versão de Kramer:

E esta é a versão dos Beatles:

A versão de Kramer envelheceu mais que a dos Beatles — e é uma canção que não está entre os grandes clássicos da banda —, é muito mais pop e traz aqueles “vícios” típicos de sua época. A versão dos Beatles traz inclusive alguns compassos de ska, novidade então e que dá uma pista da inventidade musical e sonora da banda. O que faz a diferença, nessa e em tantas outras canções, é justamente a criatividade e o talento da banda. Não é o produtor. É simples assim.

O dia em que Paul McCartney perdeu seu swing

Um dia, muito tempo atrás, Paul McCartney dialogou com o futuro — e nesse diálogo foi um dos principais artífices da música que se seguiria.

Além disso, sem medo de errar, pode-se dizer que ele foi um dos melhores cantores da era de ouro do rock. Versátil como poucos, capaz de gravar na mesma sessão uma balada como Yesterday e um rock à la Little Richard como I’m Down. Sua voz não tinha a visceralidade de um Lennon, nem conseguia transmitir a emoção e verdade que ele passava; mas ia facilmente a extremos que poucos outros conseguiam.

Os anos passaram, muitos anos, e de uns tempos para cá ele vem se contentando em fazer música — muitas vezes muito boa, por sinal; seus últimos lançamentos não fazem vergonha a um ancião com mais de 40 discos nas costas (comentários sobre eles foram feitos aqui e aqui). Por outro lado, sua voz acabou há muitos anos; McCartney já não é capaz de chegar aos agudos que atingia nos anos 60, até mesmo nos 80; e para contornar esse problema, desenvolveu vícios que o tornam, em alguns momentos, quase brega.

Agora ele resolveu voltar lá para trás. Seu novo disco, Kisses on the Bottom, é uma coletânea de antigos standards americanos — a maioria relativamente desconhecida. Acompanha-o a banda de Diana Krall, responsável também pelo grosso dos arranjos. Pela primeira vez McCartney gravou um disco em que não toca nenhum instrumento (com uma única exceção, violão em The Inch Worm). Talvez isso contribua, em parte, para o fato de que na maioria das canções não há o seu toque, a sua marca. De modo geral, parece um disco de Diana Krall — principal arranjadora do disco e presente em virtualmente todas as faixas — com McCartney nos vocais.

É um erro. Talvez o mais incômodo em Kisses on the Bottom seja justamente isso, os vocais de McCartney.

Ele se aproxima das canções com um tom ao mesmo tempo reverente e autocondescendente; o resultado é apenas pretensioso. A intenção aparente de soar intimista e low key, então, soa caricatural. Sua abordagem das canções é completamente equivocada, deixando evidente sua incapacidade de alcançar as variadas nuances exigidas pelas canções. Isso fica mais claro em canções como Ac-cent-tchu-ate the Positive (duvida? Ouça a versão das Andrews Sisters).

A McCartney faltam tanto a versatilidade vocal e a riqueza tonal dos crooners d’antanho; mas acima de tudo lhe faltam as qualidades de intérprete que essas canções parecem exigir. Ele não tem aquele quê a mais que fazia Sinatra dar uma vida antes inimaginável a uma canção, ou o charme aparentemente preguiçoso de Dean Martin, ou ainda a sensação de casualidade que Bing Crosby imprimia ao que cantava — e, em todos esses casos, uma técnica perfeita. Interpretando velhos standards, McCartney é um mau intérprete, é só mais um cantor. Não é sequer dos melhores: é um cantor sem voz. Além disso, aparentemente o disco pretende ser minimalista; mas não se compara, por exemplo, ao que Fred Astaire fez em The Irving Berlin Songbook. É um minimalismo quase burocrático, o minimalismo batido do jazz aguado à la Diana Krall ou Harry Connick, Jr. que as pessoas ouvem hoje em dia.

Resumindo: o problema desse disco é que Paul McCartney não tem swing.

Em entrevistas ele diz ter evitado durante muito fazer esse disco porque não queria ser comparado a Rod Stewart, que andou perpetrando coisas parecidas nos últimos tempos. Ele devia ter mais medo de ser comparado com Ringo Starr. O que Ringo fez 42 anos atrás em seu primeiro disco solo, Sentimental Journey, McCartney fez agora. A diferença é que Ringo não se levava a sério, até porque não podia, e seu disco tem um tom moderno, ainda que paródico, que quase chega a dar alguma personalidade aos grandes clássicos que o baterista não teve vergonha de regravar.

McCartney, no entanto, está sempre tentando se manter à altura de sua história. Talvez por isso tenha tido o cuidado de evitar ao máximo os grandes clássicos do cancioneiro americano. Foi uma medida acertada. Se se aventurasse a interpretá-los, o resultado seria provavelmente trágico, evidenciando ainda mais suas limitações. Uma pista disso está em Bye Bye Blackbird. Sua interpretação aqui é, em uma palavra, tenebrosa. Cheque a versão de Doris Day — que dificilmente seria incluída entre as mais conhecidas — para ver como se pode cantar essa canção com simplicidade e alcançar resultados excelentes. Em vez disso, McCartney acrescenta floreios desnecessários e uma interpretação arfante a uma canção que deveria ser interpretada apenas com um banjo, um contrabaixo e uma washboard. (Pensando bem, cheque a versão de Ringo em Sentimental Journey. Até essa é melhor.)

Como você vai baixar o disco nas redes P2P da vida (afinal, a quem queremos enganar, não é?), dê preferência à versão deluxe, que inclui duas canções bônus. Entre elas uma regravação de Baby’s Request, a canção que fechava um dos álbuns mais subestimados dos Wings, Back To The Egg.

Baby’s Request simboliza tudo o que há de errado em Kisses on the Bottom. Em sua versão original era uma canção simples, despretensiosa, que pretendia apenas fechar com graça o disco. Era aquilo que sua letra dizia: uma música para tocar antes de empacotar os instrumentos, depois que todo o salão se esvaziou, uma canção boba para um casal apaixonado em fim de noite que reluta em deixar uma noite perfeita acabar. A nova versão, no entanto, tem outras aspirações; a musiquinha simples se tornou pretensiosa, a voz de McCartney, antes sedutora em sua simplicidade, agora tenta se alçar a maneirismos que já não é capaz de conseguir.

Eu sei que tudo isso parece uma condenação absoluta do disco. Não é. Kisses on the Bottom é agradável, os arranjos são de extremo bom gosto, os músicos são de competência ímpar. E se você deixa de se preocupar com a voz de McCartney, ou sua interpretação de cantor de baile, se aceita sem problemas a sensação de dejà vu nas canções, Kisses on the Bottom se torna o tipo de disco que se pode colocar no CD player em uma noite com os amigos. Ou se no seu carro ou em sua casa está uma moça ou um moço que gosta desse tipo de música. É um disco útil. O problema é que utilidade é a última coisa que se deveria dizer de uma obra de arte.

Kisses on the Bottom tem outra grande qualidade, e essa é inquestionável. As duas canções escritas para este disco são surpreendentemente bem construídas, melodicamente sofisticadas, mostrando que McCartney afinal é um compositor em pleno controle de sua técnica. My Valentine é de uma elegância estonteante, sem perder a marca registrada de seu autor; Only Our Hearts é virtualmente indistinguível do que se fez de melhor nos anos 40. São, provavelmente, o melhor do disco.

Daqui a alguns anos, quando McCartney estiver morto e enterrado e vermes carnívoros não respeitarem suas vontades vegetarianas e devorarem suas carnes, Kisses on the Bottom vai ser lembrado dentro do conjunto da obra de Paul McCartney, talvez o maior artista pop da história. Vai ser visto com um acréscimo importante à obra impressionante de um sujeito que foi capaz de ajudar a mudar o mundo, que escreveu de rocks a balés, de oratórios a sinfonias. Mas enquanto isso não acontece, Kisses on the Bottom é só mais um disco feito para tocar em BG.

Uma pequena bibliografia dos Beatles

Uns anos atrás publiquei aqui uma pequena bibliografia dos Beatles. Alguns anos e alguns livros depois, é hora de atualizar a lista.

The Complete Beatles Recordings
Mark Lewisohn
Comissionado pela EMI como parte das comemorações do seu centenário, em 1988, acabou se transformando no livro definitivo sobre os Beatles no estúdio de gravação — e foi ali, no estúdio, que os Beatles se tornaram o que são. The Complete Beatles Recordings é um diário de todas as sessões da banda, provavelmente o livro mais acurado que já se escreveu sobre ela. Infelizmente fora de catálogo há muitos anos, se tornou uma bíblia de beatlemaníacos, o livro a que se recorre para dirimir dúvidas. Ainda espero a chance de colocar novamente minhas mãos sobre um exemplar, é o único fundamental que falta na minha estante. Mas essa espera já foi pior: os anos passaram e veio a internet, um repositório muito maior de informações. O livro mostrou ter lacunas e erros. Mas continua sendo o livro mais importante já escrito sobre o dia-a-dia dos Beatles, e necessário para que se entenda a dinâmica que fez da banda a maior de todos os tempos.

The Complete Beatles Chronicle
Mark Lewinsohn
Lançado depois do Complete Beatles Recordings, é basicamente um roteiro das atividades dos Beatles ao longo de sua existência. Inclui as gravações, descritas de maneira mais resumida, assim como um relato das apresentações ao vivo e gravações de filmes, apresentações em TV, etc. Tem também uns bons resumos históricos e críticos sobre cada ano da banda, com excelente critério de julgamento. Foi relançado há alguns anos e vale muito a pena.

The Beatles Anthology
The Beatles
Parte do projeto Anthology — que incluiu também o documentário hoje disponível em DVD e os três CDs duplos (ou álbuns triplos em vinil) –, é a história dos Beatles contada por eles mesmos. É aceitável, e certamente uma fonte inestimável, apesar deles, claramente, saberem bem os limites da verdade a que podem chegar e evitem tocar em temas polêmicos. Há pouca coisa realmente nova, mas serve como um resumo definitivo do que cada um deles tem a dizer sobre sua história, a sua versão edulcorada para a posteridade. Independente disso, é um livro fantástico como objeto, com um projeto gráfico de fazer cair o queixo. Alguém já disse que, antes que uma biografia, é uma celebração dos Beatles; e como perguntaria McCartney, o que há de errado nisso?

The Love You Make
Peter Brown
Brown era funcionário da Apple (citado por Lennon em The Ballad of John and Yoko), e este é um relato de insider. Foi o primeiro livro a revelar, de forma confiável, o lado menos aceitável da banda que dizia que tudo o que você precisa é amor. As chantagens sexuais sofridas por Brian Epstein, os maus negócios feitos por ele em nome da banda, a promiscuidade generalizada, os problemas graves de Lennon com heroína, os processos de paternidade sofridos por McCartney, as picuinhas internas e brigas por dinheiro que levaram ao fim. Longe de ser o melhor livro para se ter, se você vai ter um só, é um daqueles livros necessários para que se tenha uma visão mais completa da história da banda.

Shout
Phillip Norman
Foi a primeira biografia realmente decente dos Beatles. Lançada no começo dos anos 80, apresentava um panorama abrangente sobre a banda. Infelizmente tem muitas falhas factuais, e até mesmo investe numa teoria conspiracionista absurda sobre a morte de Brian Epstein. Além disso, como Norman tem aparentemente ligações mais próximas com Yoko Ono, tenta passar uma visão excessivamente deletéria de McCartney. No início dos anos 2000 o livro sofreu uma revisão geral, mas sua essência continuou. Mais recentemente Norman escreveu uma biografia insípida sobre John Lennon, lançada no Brasil.

The Lives of Lennon
Albert Goldman
O livro de Albert Goldman foi recebido como um exemplar particularmente imaginativo do Notícias Populares, e o paradoxo que o cerca é curioso. Parece ser universalmente desprezado, mas é utilizado como fonte por todos os biógrafos posteriores dos Beatles. Goldman é malévolo, perverso, publica muitos erros factuais e de avaliação, muitas suposições absurdas que tenta passar como fatos, e dá ouvidos demais a fofocas e mentiras puras e simples; mas sua capacidade como pesquisador é reconhecida, e ele fez um livro importante para a compreensão do maior mito dos Beatles. O livro é achincalhado por todos, mas no que diz respeito à maior parte dos fatos nunca foi desmentido — Yoko Ono, por exemplo, nunca ousou processar o autor, e processos na época eram o café da manhã dos ex-beatles. Sem demonstrar simpatia ou compaixão por nenhum dos seus personagens, o autor revelou alguns detalhes sujos sobre a banda e sobre Lennon e Yoko que, apesar de inicialmente descartados como pura fofoca maldosa, por não se adequarem à imagem idealizada de Johnandyoko que eles tentaram passar, foram mais tarde comprovados. É também um bom mergulho sobre a personalidade de Lennon; e Goldman foi o sujeito que deixou claro a todos que o ídolo que ele tenta destruir aqui era uma mistura única e fascinante de carisma e talento gigantescos e uma personalidade complexa e muitas vezes detestável.

Here, There and Everywhere
Geoff Emerick
Emerick foi o engenheiro de som da maioria das gravações dos Beatles a partir de Revolver, e peça importante na evolução sonora da banda. É o relato de um sujeito que não apenas os conheceu, mas trabalhou com eles onde realmente importava, o estúdio. É um livro fundamental para entender a dinâmica e os processos das gravações, assim como a evolução da sua visão musical e, incidentalmente, de suas relações pessoais. Por outro lado, Emerick é ligado a McCartney até hoje, o que o leva a proteger em demasia a imagem do seu amigo. Isso faz com sua visão seja deturpada em vários aspectos, e o livro acaba se encaixando muito facilmente no esforço de revisionismo de McCartney. Emerick está na lista, e George Martin não, por uma razão: ele parece compreender melhor o seu papel real na história do que Martin, embora aqui e ali dê a impressão de tentar diminuir o papel do ex-patrão.

Beatles Gear
Andy Babiuk
É o livro mais específico dessa lista: uma história dos instrumentos e equipamentos de som utilizados pela banda desde a sua formação — indo do Zenith de McCartney e o violão “garantido contra rachaduras” de Lennon ao Fender VI usado nas últimas sessões. É um acessório importante para quem tenta entender o que havia na música dos Beatles. Incidentalmente, é o livro que melhor explica, em termos cronológicos, o processo de desligamento de Stuart Sutcliffe da banda.

Many Years From Now
Paul McCartney
Oficialmente a autoria é de Barry Miles, mas isso é apenas um disfarce para a autobiografia de Paul McCartney até o fim dos Beatles; o ghost writer apenas levou um crédito maior, provavelmente para que Macca pudesse agregar credibilidade a algumas de suas opiniões, se sentir mais livre para falar as bobagens que quisesse e soltar as farpas que bem entendesse. Isso quer dizer que é um relato parcial em que omissões e distorções dos fatos formatam melhor a versão de McCartney. De qualquer forma, abrangente e bem detalhado, é importante para a compreensão da história dos Fab Four.

You Never Give Me Your Money
Pete Doggett
Livro recente, dedicado às relações comerciais entre os Beatles a partir do começo do fim e os 25 anos de processos e contraprocessos posteriores. Cobre uma lacuna existente nas outras obras a respeito da banda, que tratam do período de maneira normalmente mais superficial e se apoiam nos estereótipos do Allen Klein ladrão, do Brian Epstein incompetente mas devotado e dos meninos que só queriam fazer música. Apesar de alguns erros crassos, o livro tem um bom senso de história dos Beatles, um bom nível de imparcialidade e boa apreciação musical; mas falha em não voltar atrás e detalhar a maneira como os contratos de Brian Epstein foram firmados. É um livro importante para entender o processo de separação da banda.

The Beatles: The Biography
Bob Spitz
Spitz se beneficiou da passagem do tempo e da abundância de material biográfico para escrever um livro abrangente e bem equilibrado, que tenta fugir dos mitos sem explorar em excesso aspectos sensacionalistas. O resultado é a biografia mais completa dos Beatles, com um excelente grau de neutralidade. De modo geral Spitz tenta sempre ver todos os lados de uma questão, e mostra um bom entendimento do que era a dinâmica interna da banda. Consegue ter os fatos em boa perspectiva e evita dourar pílulas. Tem um número talvez excessivo de erros factuais — alguns graves, como errar a data da reunião em que Lennon “pediu o divórcio” ao resto da banda, e muitos outros menores; mas com exceção de Many Years From Now, Anthology e Can’t Buy Me Love (de Jonathan Gould, e recomendado de modo geral), é o único traduzido para o português, o que faz dele a melhor biografia dos Beatles disponível no Brasil.

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O livro definitivo sobre a banda ainda não foi publicado — está sendo escrito neste exato momento. Todas as biografias dos Beatles, sem exceção, contêm erros, e muitas têm defeitos de interpretação e compreensão; mas há alguns anos, Mark Lewisohn anunciou que estava escrevendo uma biografia que deveria se estender por três volumes. Lewisohn é o sujeito que mais entende de Beatles no mundo, é próximo de todos os ex-beatles e é um bom historiador. O primeiro volume deveria ter sido publicado em 2008 e o último em 2016; a Amazon inglesa agora promete o livro para setembro deste ano, e o título será The Beatles — The Biography: Tune In, Vol. 1 (o que me leva a crer que o segundo se chamará Turn On e o terceiro, Drop Out; títulos adequados, a propósito). Quando finalmente for publicado, vai dispensar virtualmente todas as biografias dos Beatles, o que inclui a maioria dos livros recomendados aqui.

Pequena introdução à discografia de John Lennon

Já fiz uma pequena discografia de McCartney — que um dia reescrevo, melhorando e aprofundando; agora é a vez de Lennon.

Não é segredo para ninguém que considero McCartney um músico mais capaz. E apesar de altamente irregular, alternando bons e maus momentos, sempre achei que tem uma discografia mais consistente que a de Lennon. As personas públicas dos dois interferem de maneira excessiva na percepção de seus talentos como músicos: e isso beneficia Lennon enquanto prejudica McCartney — talvez até mais do que os seus piores álbuns.

Mas independente de qualquer coisa, John Lennon foi uma das personalidades que ajudaram a definir a história a partir de 1970. Como artista, de um ponto de vista geral, mas principalmente como músico, Lennon deixou uma marca indelével na história da cultura pop.

Essa imagem, infelizmente, costuma ser dissociada de sua música. Para milhões de pessoas, John Lennon é Imagine; e essa é apenas uma das suas tantas canções, uma de que, a propósito, ele não gostava particularmente. Ela foi fundamental na definição da imagem de John Lennon, mas ao mesmo tempo tornou essa imagem, além de unidimensional, falsa. Porque Lennon era muito mais que isso.

Abaixo segue uma pequena análise, disco a disco, deixando-se de lado bisonhices como Two Virgins e os discos ao vivo.

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George Harrison

Um comentário antigo do Luiz a um post sobre Michael Jackson me chamou a atenção: ele não concorda totalmente com o que eu disse sobre George Harrison aqui. O Bruno também é um dos fãs de George Harrison.

Então vamos lá.

Quando George Harrison morreu, em 29 de novembro de 2001, nasceu um santo. De repente, George conquistou tudo o que não conseguiu durante sua vida: reconhecimento absoluto como guitarrista, louvor como compositor, consolidação do papel de parte fundamental dos Beatles. Como eu já disse aqui, em alguns momentos se podia ter a impressão de que Lennon e McCartney eram apenas coadjuvantes de um gênio absoluto.

A morte faz isso com algumas pessoas. Cria um mito injusto e exagerado que não sobrevive a uma simples recapitulação dos fatos.

Harrison era um excelente guitarrista, e ninguém diz o contrário. Esforçado, diligente, capaz de repetir o mesmo solo indefinidamente — algo que Jimmy Page, por exemplo, não consegue. Mas ele viveu numa era em que guitarristas excepcionais tomavam conta do cenário pop: Jimi Hendrix, Eric Clapton, Page, Jeff Beck. Harrison não estava à altura deles. Nunca esteve. Aliás, se alguém esquece, alguns dos melhores riffs dos Beatles não são sequer de sua autoria (os de I Feel Fine e Day Tripper, por exemplo, são de Lennon).

Isso não quer dizer que Harrison era dispensável. Sem ele, os Beatles dificilmente seriam a mesma banda. Ao contrário dos Stones, que sobreviveram à saída de Brian Jones com mudanças apenas sutis em seu som, os Beatles perderiam muito de sua própria identidade se Harrison sumisse — nesse caso, seria mais acertado compará-lo a Ron Wood. Os Beatles não seriam uma banda melhor por ter um guitarrista superior como Hendrix — e esse é um dos aspectos mais interessantes do grupo, o fato de que sua importância e permanência não dependia de super-instrumentistas, mas sim da interação única entre eles. Harrison era, sim, fundamental. Mas não única, ou mesmo principalmente, por seus méritos como guitarrista.

Tampouco pelos seus méritos como compositor. Ninguém discute que a primeira grande canção de Harrison tenha sido While My Guitar Gently Weeps — e eu desconfio que sua importância venha principalmente do solo antológico de Eric Clapton. Seus dois outros clássicos são Something e Here Comes the Sun. Essas três canções são de 1968 e 1969; até lá — ou seja, durante praticamente toda a existência dos Beatles –, Harrison não tinha sido capaz de compor nenhum grande clássico, ao contrário dos seus colegas. McCartney e Lennon estavam certos no seu julgamento sobre Harrison: como compositor, ele simplesmente não estava no mesmo nível que eles.

Apesar da colaboração importantíssima de George Harrison e Ringo Starr, os Beatles tinham um núcleo duro bem claro, e esse era composto por Lennon e McCartney. (John Lennon: “Os Beatles eram Paul e eu.”) A relação entre os dois era especial, e todos sabiam disso. Além disso, eram os principais compositores e, digamos assim, os diretores musicais. Mas quando Harrison morreu — e cito especificamente a cobertura d’O Globo — ele foi chamado, literalmente, de “a alma dos Beatles”.

Pelo amor de Deus. Harrison não era suficientemente respeitado sequer pelos seus colegas. Quando Lennon saiu, McCartney e Allen Klein (que morreu há alguns meses) imploraram para que ele não contasse a ninguém, porque a banda acabaria e eles deixariam de renegociar um contrato importante. Quando McCartney passou a perna em Lennon e avisou ao mundo que tinha saído também, a banda acabou. Mas quando Harrison saiu da banda, em meio às gravações do que viria a ser o Let it Be, Lennon simplesmente comentou que poderiam chamar Eric Clapton para o seu lugar. Era uma brincadeira nervosa no meio de um turbilhão, mas com enorme fundo de verdade. Mais tarde, as opiniões de Lennon sobre Harrison não seriam das mais elogiosas — basta ver o que ele diz a respeito do ex-amigo em sua última entrevista à Playboy.

Seu papel na dissolução da banda é também subestimado. Normalmente, as análises mais primárias oscilam entre a culpa de Lennon e a de McCartney. O processo, claro, foi mais complexo, e envolvia uma série de outros elementos. Mas a atitude de George Harrison costuma ser subestimada em excesso.

Seu descontentamento era ainda mais consistente que o de Lennon. Ainda que inconscientemente, Harrison sabotou todas as tentativas de união de grupo em sua fase final — era uma das principais vozes de oposição a McCartney, às vezes mais vocal do que o próprio Lennon. Eu não teria medo em afirmar que ele queria sair da banda muito mais do que Lennon, sempre bastante explícito em relação a isso. E tenho uma idéia do por quê. Lá fora, George Harrison era “O Venerável Beatle George Harrison”, merecedor de um respeito e uma deferência que ele jamais conseguiria dentro da banda e que infelizmente se devia, em grande parte, às qualidades de Lennon e McCartney. Lennon achava que os Beatles o limitavam, e em certo aspecto estava certo, embora essas limitações também o protegessem de micos federais. Harrison não percebia que, ao contrário, era o que mais se beneficiava do fato de ser um beatle: além do seu próprio grande talento, era também caudatário da genialidade absurda dos outros.

Ele tampouco conseguiu avaliar corretamente o seu papel dentro da dinâmica da banda. Em 1992, numa entrevista a uma rádio inglesa, disse que McCartney o tinha destruído como guitarrista. Se isso foi tudo o que ele conseguiu após 15 anos de convivência com um dos mais talentosos músicos da história da música pop, o problema é com ele, e é grave. A relação entre Lennon e McCartney apenas fez com eles dessem o melhor de si, misturando competição e colaboração em doses semelhantes — mas competir com esses dois, e especialmente com McCartney, fez com que Harrison achasse que era um eterno injustiçado e que isso o prejudicou.

O ego de Harrison, definitivamente, o atrapalhou. Não era maior que os de Lennon e McCartney, mas durante algum tempo, pelo menos, foi maior que o seu próprio talento. Em algum momento, Harrison achou que era capaz de sustentar uma carreira solo brilhante e consistente, mesmo quando tomava decisões equivocadas como a Dark Horse Tour, alienando seus fãs ao forçá-los a ouvir horas de música indiana. Quando saiu dos Beatles, resolveu mostrar para o mundo que o peso da entidade Lennon/McCartney estava sufocando um grande talento e lançou um álbum triplo, o excelente All Things Must Pass.

Mais que um álbum, era uma egotrip. Porque embora brilhante, All Things Must Pass poderia ter sido um álbum duplo excepcional, e certamente um disco simples absolutamente perfeito — tão bom ou melhor quanto o John Lennon/Plastic Ono Band. Há gordura demais em All Things Must Pass, um número excessivo de faixas desnecessárias, e essa gordura pode ser creditada a nada mais, nada menos que um ego inchado e sem noção de suas limitações. Em última análise, e independente de sua qualidade, All Things Must Pass é George Harrison gritando “Eu sou tão bom quanto John e Paul!”.

(E é aí que mora a diferença entre Harrison e Lennon. Quando Lennon dizia que os Beatles o limitavam, se referia ao fato de não encontrar na banda um canal para um disco como o Plastic Ono Band e canções como Cold Turkey. Aquilo, realmente, não tinha “cara de Beatles” — como também, por outro lado, bobagens como o Two Virgins; a competição entre ele e McCartney o protegia disso, além de garantir aos dois que suas piores canções continuassem inéditas. Isso não se aplica à obra de Harrison. Todas as suas canções solo poderiam, sem problemas, ser gravadas pelos Beatles. Afinal, eles gravaram Love You To e The Inner Light, não gravaram?)

Noves fora, a carreira solo de Harrison foi medíocre, superior apenas à de Ringo — o que não quer dizer absolutamente nada. Se as de McCartney e de Lennon têm altos e baixos, a de Harrison foi uma trajetória descendente — do brilhante All Things Must Pass ao deprimente Gone Troppo, de 1982. Não foi à toa que, em seus últimos 20 anos de vida, ele lançou apenas dois álbuns solo — sem contar os dois discos do Travelling Wilburys, a excelente banda à la Sgt. Pepper’s que formou com Bob Dylan, Roy Orbison, Jeff Lynne e Tom Petty.

Não é insensato arrsicar a opinião de que Harrison simplesmente não tinha mais o que dizer — por isso preferia se dedicar a aperfeiçoar os jardins de Friar Park, sua mansão que aparece na capa do All Things Must Pass, e a produzir filmes brilhantes como “A Vida de Brian”, do Monty Phyton.

E embora seja algo menos importante, uma das coisas que me impressionam são as referências constantes ao santo espiritualizado e superior ao mundo material que ele era. Porque definitivamente Harrison não era isso — ou, para ser mais exato, era muito mais complexo que isso. Sua generosidade e humanidade imensas são legendárias; mas elas também ajudam a ofuscar o outro lado de uma personalidade fascinantemente complexa. Sua sensação de inferioridade diante de Lennon e McCartney — mais velhos e mais talentosos — era compensada, por exemplo, em sua relação com Eric Clapton. Inseguro, Clapton permitia que sua relação com Harrison seguisse uma hierarquia rígida, na qual o beatle era o ente superior. George reproduzia, ali, a relação que tinha com Lennon, apenas invertendo os papéis. Em cima de alguém ele tinha que descontar, afinal.

Além disso, mulherengo em excesso, George ofereceu a mulher para Eric Clapton para tentar pegar a irmã dela; teve um caso com a mulher de Ringo, seu melhor amigo (e depois, quando perguntaram por quê, ele respondeu simplesmente: “incesto”). E mesmo Olivia Harrison, com quem George teve um casamento bem mais sólido e maduro que o anterior, teve que agüentar a vergonha de ver uma prostituta de Los Angeles (parece que os Beatles tinham uma queda por putas angelenas, a julgar por experiências semelhantes de McCartney) contar publicamente que, enquanto prestava um serviço sexual a Harrison, ele tocava o seu ukulele e cantava uma canção de George Formby.

(A propósito, Harrison ganhou pontos comigo quando fiquei sabendo disso. Não há dúvida: George Harrison, definitivamente, era um grande artista.)

Mas é preciso fazer uma ressalva. Depois de ler tudo isso acima é fácil ficar com a impressão de que George Harrison era um nada, e isso seria uma injustiça. Era um grande músico, capaz de compor canções extraordinárias como Something e All Things Must Pass, e autor de dois ou três discos solo indispensáveis em qualquer discoteca. Não era um grande cantor, mas não fazia vergonha. O problema é que é impossível deixar de compará-lo aos seus parceiros de banda. Harrison não fazia vergonha cantando? Certo, mas não era versátil como McCartney nem visceral como Lennon. É nesse contexto que George Harrison é diminuído: a sombra de dois gigantes como Lennon e McCartney dava a sua exata dimensão. Porque, bem ou mal, ele é o autor de algumas das mais belas canções da música pop, um guitarrista superior a 98% de todos os outros, e um homem cujo nome está na história. Seu único problema é que seus companheiros de banda eram muito melhores que ele. E essa foi a dor que George Harrison carregou até o fim de sua vida.