As bobagens que dizem em Seu nome

Aí pela época do Natal o Discovery exibiu alguns documentários sobre o “Jesus histórico”. Vi um deles. E fiquei impressionado com o jeito como se manipula a história de acordo com os seus interesses.

Documentários históricos deveriam ter um compromisso, pelo menos: com o bom senso. Não é o caso desse, cuja maior parte consiste em tentativas de comprovar episódios do texto bíblico. A estrela de Belém teria sido então um alinhamento de planetas, os reis magos viriam de determinados lugares, Jesus nasceu numa estrebaria porque era o andar de baixo de estalagens, e por aí vai.

O problema não está no método usado, que afinal é um bom método. Está no fato de utilizá-lo sob premissas falsas.

Em primeiro lugar, um pouco de psicologia de massas deveria ser sempre levada em conta. Por exemplo, deveriam levar em consideração a forma como boatos nascem, crescem e às vezes se perpetuam. Se alguém estava vivo nos anos 70 deve lembrar que diziam que Peter Frampton tinha perdido o braço direito. As pessoas acreditavam nisso. O boato tinha um fundo de verdade: Frampton tinha sofrido um acidente e quebrado o braço. Mas o membro continuava lá.

Boa parte do texto bíblico é basicamente isso, exageros da tradição oral. Cabe aos homens de fé e extrema boa vontade acreditar nisso; a um historiador caberia investigar o que há de verdade aí, mas não tentando provar alguma coisa.

Com os evangelhos aconteceu, seguramente, a mesma coisa. Uma cura de Jesus se transforma na ressurreição de Lázaro; e de boca em boca, ao longo de mais de 40 anos, a epopéia do filho do carpinteiro passou a ter uma dimensão fantástica e micraculosa. Meio século, no mínimo, é bastante tempo para se inventar milagres — e inventar de boa fé.

É improvável que tenha havido alguma estrela de Belém, ou estrebaria em Belém, reis magos levando ouro, incenso e mirra, multiplicação dos peixes, ressurreição. Eu pessoalmente acho que Jesus era, sim, descendente de Davi; isso justificaria a sua sensação de ser especial, príncipe entre os príncipes (e certamente não era nada difícil ser descendente de um sujeito com tantas esposas e concubinas). Como acho que a maior parte dos fatos em sua vida adulta é essencialmente correta, ao menos nos fatos básicos.

E tem Judas.

É o mais interessante de todos esses temas, principalmente nos últimos tempos, quando o Evangelo Segundo Judas chegou às manchetes do mundo inteiro.

O furor causado pelo manuscrito era artificial. Porque é um documento como qualquer outro evangelho apócrifo, sem muita base histórica. E de resto não dizia nada novo, além de uma interpretação que, a propósito, não aparece como nenhuma novidade. Qualquer pessoa que se tenha questionado sobre o cristianismo, ainda sob a premissa de que Jesus era realmente o filho de Deus, já se perguntou se Judas não fazia parte do plano e não era, portanto, um traidor, e sim uma peça no jogo divino. É tão lógico que chega a doer: se Jesus era filho de Deus e sabia que Judas ia traí-lo e não fez nada porque era tudo parte do Plano Divino, por que então Judas é um traidor? Digamos apenas que ele fez sua parte. O mundo precisa de garis.

Historicamente é mais que provável que Judas tenha sido apenas isso: um traidor, movido por quaisquer que tenham sido seus motivos — seja desencanto com um Jesus que ele queria guerreiro, seja simples ganãncia. Mas o documentário tenta apenas provar que Judas agiu de acordo com Jesus.

Em vez de ficar perdendo tempo com elocubrações bobas, esses documentários deveriam se preocupar em encontrar respostas para as perguntas que ninguém responde.

É quase unanimidade entre os historiadores o fato de que Jesus tinha irmãos. Que Tiago, chefe da Igreja adversário de São Paulo nos primórdios da Igreja, era irmão de Jesus. Então onde estão seus descendentes? Tanta gente por aí se orgulhando de ser descendente de qualquer degredado português quatrocentão, ou de marginais que se diziam bandeirantes — por que, então, não há descendentes de filhos, ou de primos de Maria, de José, de qualquer dos apóstolos?

A última queda de Hitler

The Unknown Soldier é um novo documentário sobre o papel da Wehrmacht na condução do Holocausto durante a II Guerra Mundial. Dirigido por Michael Verhoeven e lançado lá fora com alguma repercussão, dificilmente vai chegar ao Brasil. Certamente não vai ter a longa vida nas redes P2P que “Tropa de Elite” teve, por exemplo.

O tema escolhido é importante. Durante algumas décadas, uma Alemanha derrotada e envergonhada se agarrou a uma idéia que a libertava, um pouco, dos compromissos assumidos pela nação durante a era nazista: a de que a Wehrmacht, o Exército alemão, era composta por soldados absolutamente profissionais e isentos das atrocidades cometidas contra os judeus.

A Wehrmacht não foi escolhida à toa. Era uma instituição sólida, herdeira da personificação militar da própria identidade alemã e prussiana. Era algo de que os alemães podiam se orgulhar, uma instituição que por seu histórico parecia convenientemente separada do nazismo: a função da Wehrmacht era guerrear, um objetivo nobre e aceitável, e não matar judeus indefesos. The Unknown Soldier, a julgar pelas resenhas, se pretende uma denúncia dessa mentira.

O ponto frágil dessas novas denúncias é que elas não são, em absoluto, novas. Em 1997, por exemplo, novos documentos e fotos mostraram o que muita gente sempre soube: que a Wehrmacht, a única instituição cuja reputação se manteve incólume depois da derrocada do nazismo, tinha sido participante ativa do processo de limpeza étnica que culminou na Solução Final. Ou seja: do ponto de vista histórico, não há nada de realmente novo em The Unknown Soldier.

Mesmo antes dessas denúncias, acreditar na isenção e inocência da Wehrmacht era principalmente um exercício de negação de bons indícios. Pela extensão do Holocausto, era impossível que a SS fosse sua única executora. Pelo número de campos de concentração, era inconcebível que não fosse criada uma rede de logística e informação extensa e complexa, que envolvesse boa parte da sociedade alemã e dos países aliados ou ocupados, muitos dos quais viram na possibilidade de perseguição aos judeus uma compensação justa pela invasão de seu país. Já faz muito tempo que o mito de que os alemães desconheciam a extensão da política de extermínio não é levado a sério. Eles sabiam, sim; o que ainda se tenta discutir é se concordavam ou não com essa política. Não se trata apenas de reconhecer a existência de movimentos de resistência como o Rosa Branca e alguns outros, localizados e sem verdadeiro apoio popular; e sim de encontrar uma oposição extensa na sociedade, ainda que silenciosa e passiva.

Infelizmente, até essa tentativa é malfadada. “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, livro de Daniel Goldhagen, já tinha derrubado essa tese há muito tempo. Foi mais além: demonstrava que a participação do alemão comum no Holocausto não era nada forçada, e que a alegria com que desempenhavam o mister de carrascos se devia principalmente ao anti-semitismo secular espalhado pela região. Matar judeus era algo feito com entusiasmo e senso de dever cívico.

Mas essa é sempre uma tese que incomoda. Como aparente medida de auto-preservação, os alemães preferem esquecer o que aconteceu. Poucas histórias nacionais foram reescritas com tanta sutileza como a alemã nos últimos 60 anos. Para isso, promovem oportunistas a heróis da resistência, fingem que não lembram, dizem que não sabiam.

Essa atitude é compreensível, mas perniciosa. Em última análise, impede ou dificulta o que deveria ser a mais importante tarefa alemã desde o pós-guerra: compreender a extensão do processo histórico que culminou no Holocausto, entender que o Partido Nazista só chegou ao poder por atender não apenas a exigências econômicas de uma Alemanha humilhada, mas a preconceitos e ódios que têm raízes na Idade Média e na perseguição cristã ao judaísmo.

Para isso, é preciso lembrar que não foram o totalitarismo político e o expansionismo bélico as principais características do nazismo: foi o anti-semitismo. Totalitarismo foi marca de regimes díspares como o socialismo soviético e o fascismo italiano — embora este tenha sido esculhambado e farsesco por sua natureza inegavelmente latina. O que fez do nazismo uma aberração única, nunca é demais lembrar, é que ele possibilitou ao Estado alemão montar uma máquina de genocídio étnico em escala industrial

Os alemães projetaram na Wehrmacht uma imagem ideal de si próprios: maiores que Hitler, imunes à histeria nazista, inocentes que se viram envolvidos num redemoinho de loucura com a qual não estiveram, em nenhum momento, comprometidos. A versão alemã de sua história é a negação desse compromisso. Mas, infelizmente, ele não pode ser negado. Como não pode ser negada a grande verdade daquela era: os alemães não foram vítimas de Hitler. Hitler é que foi o instrumento do povo alemão.

As medidas dos santos

Não consigo lembrar onde li isso, não lembro sequer o nome do sacerdote. Mas o monsenhor responsável pela Igreja do Bonfim, em Salvador, disse que a tradição de usar as fitinhas do Senhor do Bonfim vendidas ali para realizar desejos é apenas conversa de vendedor, que não tem origem em nenhuma tradição católica, que é artifício para enganar turista.

Isso me lembrou outro tempo, coisa de século e meio atrás.

Era o tempo em que as caixas de esmolas se espalhavam pelas cidades e a Igreja fazia dumping contra os mendigos. Em que vendedores ambulantes não podiam vender objetos abençoados por padres, mas podiam trocá-los por dinheiro, e nessa sutileza de termos conseguiam definir toda uma sociedade extremamente católica e extremamente permissiva.

Nessa época faziam muito sucesso as medidas de santos.

Eram fitas cortadas pelos padres, do tamanho das imagens dos santos a quem suas igrejas eram consagradas. Costumavam ser usadas em torno da cintura e, dizia o povo e diziam os padres, removiam dores, doenças e realizavam as vontades de quem as usava.

Algumas eram de veludo, com imagens de santos gravadas nelas; outras eram fitas comuns, a maioria, dadas àqueles que podiam contribuir pouco com os cofres da Santa Madre. A cor variava de acordo com o santo. Havia até uma “medida do Espírito Santo”. Como esse Senhor não tem tamanho ou forma, mas dele não queriam prescindir as almas pias dos fiéis, pegavam uma fita de tamanho qualquer, gravavam nela um triângulo e uma pomba e assim se tinha um remédio eficaz contra todo tipo de enfermidade, que o Espírito Santo, convenhamos, é bamba de verdade, mais bamba que quaisquer daqueles santos menores que se especializavam em uma ou outra mazela.

As mulheres costumavam usar fitas de santos do seu sexo; e nisso eram mais bem aquinhoadas que os homens, porque ainda melhor que o Espírito Santo costuma ser Nossa Senhora. Mas também usavam fitas de São Brás, Santo Antônio e São Gonçalo, este o santo que lhe poderia curar a mais grave das moléstias, o caritó — função apenas depois usurpada por Santo Antônio.

Seria fácil acusar o tal monsenhor de ignorância das tradições da sua própria igreja, inferir também que ele não deve saber que já houve tempo, esse mesmo tempo das medidas dos santos, em que no pavilhão de mini-deuses da Igreja havia até espaço para uma Nossa Senhora do Cabo da Boa Esperança, cujo altar ficava na Rua do Carmo, Rio de Janeiro; herança das grandes navegações portuguesas e bem adequada a um tempo em que o Brasil ainda ostentava trágica presença no comércio no Atlântico Sul.

Mas uma acusação dessas seria uma mentira. Porque não é isso, e o que parece ignorância é em verdade o disfarce para uma inveja e um despeito profundos, aquele tipo negro que corrói a alma e enche o esôfago de bile.

O monsenhor nega as origens religiosas das fitinhas do Senhor do Bonfim porque, se as reconhecesse, teria que admitir que se essa tradição sobrevive ali não é por causa de qualquer santo católico, nem mesmo de um São Jorge que encarna a persistência dos homens e mulheres daquela terra. É por causa dos santos de verdade do povo baiano, e as fitas já não têm as cores de Nossa Senhora da Glória ou de Santa Prisciliana, mas são azuis para Iemanjá, amarelas para Oxumaré, vermelhas para as filhas de Iansã.

E o monsenhor teria que admitir uma derrota fragorosa e inconteste, admitir também que o que eles dizem entender do sincretismo religioso está errado, e que na Cidade da Bahia foram os santos da ascese e da renúncia que sobreviveram encolhidos sob a proteção do manto branco de Oxalá.

Originalmente publicado em 9 de maio de 2006

No Natal de 1914

O último sobrevivente aliado da trégua do Natal de 1914, durante a I Guerra Mundial, morreu ontem. Ele tinha 109 anos.

O episódio é um dos mais famosos da guerra: britânicos e alemães interromperam o morticínio, apertaram-se as mãos, trocaram pequenos presentes e até jogaram futebol no dia 25 de dezembro de 1914. Fãs dos Beatles conhecem o episódio, lembrado por Paul McCartney no videoclipe de Pipes of Peace. A trégua ressalta a imbecilidade da guerra e lembra que não é o povo que a quer. A guerra é decidida por gente que não morre nela.

Aquela trégua foi, provavelmente, o último suspiro da era vitoriana, em um momento de crise em que noções arcaicas de honra e humanidade eram subjugados, definitivamente, pelas novas armas de destruição em massa e por uma nova concepção de guerra. Vista assim, a trégua foi um anacronismo. Não havia mais espaço para o cavalheirismo em um mundo povoado por tanques, aviões e metralhadoras, um tempo em que as mortes causadas pelo homem, pela primeira vez na história ocidental, se contavam na casa das dezenas de milhões.

Costumamos nos lembrar, principalmente, da II Guerra Mundial. Pelas dimensões, pelos 60 milhões de mortos, pela exacerbação do mal contida no nazismo, e porque é relativamente recente. Mas a I Guerra, sob vários aspectos, foi a mais importante da história. Marcou a ruptura entre dois mundos diferentes, o final da era vitoriana e o início de um um novo tempo. Por mais aterradora que tenha sido a II Guerra, e mesmo levando em consideração que o mundo que emergiu dali era bem diferente, ela não forjou esse novo mundo: ele nasceu ali, nas trincheiras da Bélgica. Foi a I Guerra quem deu origem à União Soviética e elevou os Estados Unidos à categoria de potência econômica e bélica. Acima de tudo, foi a I Guerra que mostrou à humanidade que o horror podia não ter limites.

O mundo que emergiu da I Guerra era outro. Em 1914 os alemães saudaram os soldados que partiam para a frente de batalha com pétalas de flores. Eram ainda felizes descendentes de Frederico II da Prússia, ainda aqueles que viam na guerra um sentido para uma vida. 25 anos depois, os mesmos alemães olharam taciturnos suas tropas marchando em direção à Polônia. Não havia mais alegria ou orgulho. Eles já conheciam o horror da guerra. E essa transformação, essa perda definitiva da inocência — algo que não pertence apenas aos alemães, mas a toda a Europa; os franceses justificaram sua covardia em 1939 com essa lembrança — se devem a 1914.

No ano em que comemoramos os 60 anos da II Guerra, seria bom olhar um pouco mais para trás e lembrar das verdadeiras mudanças. A II Guerra Mundial, para quem a viu nascer, era pouco mais que o segundo turno da I, com um intervalo de 20 anos. Hitler, em parte, foi cria de Versalhes; e se a guerra do Holocausto e de Hiroshima chama a atenção pelos extremos de ódio e de capacidade de destruição a que se chegou, a primeira foi ainda mais importante por ter descortinado uma era de trevas possíveis, e todos então perceberam que os limites haviam acabado.

A morte do último sobrevivente aliado daquela trégua é também um lembrete de que, a cada dia que passa, mais e mais pedaços de um passado não tão distante desaparecem. O mundo vitoriano pode ter acabado em 1914, mas enquanto houver sobreviventes daquela trégua, daquele pequeno momento de sanidade em meio à barbárie, ele ainda é mais que umas letras arrumadas em um livro qualquer de história, ainda que apenas nas lembranças de uns poucos. E talvez seja essa a sua verdadeira importância.

(A foto deste post faz parte de uma belíssima coleção de fotos coloridas da I Guerra.)

Originalmente publicado em 22 de novembro de 2005

Diário de Berlim

Meio por acaso, me bati com o “Diário de Berlim”, livro de William Shirer, autor de um dos maiores clássicos sobre a II Guerra Mundial, “Ascensão e Queda do III Reich”.

O livro não está mais em catálogo no Brasil. Não dá para saber que edição é essa: apenas que a editora foi a Record e que quando ele foi lançado a Guanabara ainda existia.

“Diário de Berlim” conta a experiência de Shirer como correspondente estrangeiro em Berlim. Obviamente não pode oferecer uma visão ampla das coisas, em uma época em que a censura era quase absoluta, em que o Voelkische Beobachter, o jornal de Hitler, publicava notícias que pareciam saídas do Planeta Diário e em que todos os países diziam mentiras atrás de mentiras sobre seus inimigos.

Mas, em compensação, dá algo que os livros de história costumam perder: o frescor da notícia recente, o estupor diante da evolução dos fatos. As análises e previsões feitas, mesmo quando equivocadas, dão uma idéia clara e precisa de como se pensava naquela época. O livro ajuda a entender melhor a II Guerra Mundial, e principalmente o nazismo, porque oferece uma sensação de humanidade que a peripécia e a análise fria costumam expulsar dos livros de história.

“Diário de Berlim” ajuda a colocar algumas coisas em perspectiva. A atitude covarde da Inglaterra de Chamberlain é bem lembrada, e a figura de Churchill, solitário em suas denúncias de Hitler antes de quaisquer outros, cresce assustadoramente — assim como a de Roosevelt nos Estados Unidos, embora de maneira menos clara.

Nesse aspecto, o que realmente impressiona quando mostrada assim, a quente, é a indignidade da postura francesa. Não há explicação para a maneira covarde como a França reagiu diante de Hitler, nem mesmo a decadência da III República. Até quando a Alemanha invadiu a Polônia e as intenções alemãs já eram mais que claras, a França ainda insistia na paz. A única coisa decente que a França fez, em meio a sua tibieza, foi declarar Paris cidade aberta quando as tropas alemãs marcharam em direção a ela. Podem não ter mantido sua dignidade, mas pelo menos preservaram a melhor cidade do mundo.

À medida que o diário vai sendo escrito, a história vai acontecendo. A tomada da Renânia, o Anchluss da Áustria, a Tchecoslováquia entregue por Daladier e Chamberlain. O livro mostra que a data de 1o de setembro de 1939 só é lembrada como o início da II Guerra Mundial porque foi quando a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha. Mas demoraria ainda mais de 8 meses até os três países entrarem de fato em guerra, com ataques a seus respectivos solos; enquanto isso Hitler ia tomando a Dinamarca, a Noruega, o Benelux.

O livro mostra também o impacto do pacto Ribbentrop-Molotov, primeira parte de uma estratégia acertada de Hitler — o segundo viria a ser o Pacto Tripartite, feito para intimidar os Estados Unidos mas que acabaria justificando sua entrada na guerra na Europa. Se a Europa vinha permitindo o crescimento militar de Hitler, é porque tinha mais medo de Stalin do que do nazismo; de repente, sem que ninguém esperasse — e depois de várias tentativas de acordo entre Stalin e a Europa não-nazista — a União Soviética era deixada em paz por Hitler. Foi uma medida pragmática de Stalin; mas nem por isso aqueles que tinham lutado ao lado dos legalistas na Espanha conseguiram engolir ou compreender a atitude.

É no retrato do dia-a-dia alemão, entretanto, que está o melhor do livro. Shirer mostra como os alemães se prepararam para a guerra, vivendo numa pobreza e privações incompatíveis com o resto da Europa enquanto Hitler, em menos de dez anos, criava a mais fantástica máquina de guerra que o mundo já tinha visto.

Lendo “Diário de Berlim”, uma coisa fica clara. Claro que a esmagadora maioria dos alemães não era nazista. Mas quase todos, de modo geral, apoiavam Hitler. Aqui se confundem vários elementos, cada um importante na formação do fenômeno nazista. Um deles é sentimento de revanche depois da humilhação em Versalhes. Durante décadas, os alemães tentaram negar sua herança dizendo que foram vítimas de Hitler; o que transparece deste livro é outra coisa, é a aclamação de um grande líder, o apoio popular esmagador. Mesmo depois que as Leis de Nuremberg começaram a ser postas em ação, os alemães ainda apoiavam Hitler.

Nesse ponto o livro deixa ainda mais clara uma coisa óbvia, que vários revisionistas tentam ocultar: o anti-semitismo foi o elemento catalizador na imagem dos nazistas. Shirer mostra uma série de bons retratos de “traidores”, gente que aderiu ao nazismo e se mudou para a Alemanha. São pessoas de origens e formações diferentes. Mas todos têm um mesmo elemento em comum: o ódio aos judeus. Isso reforça a tese que Daniel Goldhagen defende em “Os Carrascos Voluntários de Hitler” e que tanta gente, até hoje, tenta desmentir.

Mas eles não eram apenas anti-semitas. De vez em quando tem-se a impressão de que eles eram anti-qualquer coisa que não fosse germânica. É um sintoma do famoso hegemonismo alemão, que ali ganhava as cores feias da eugenia, como no caso da política de Gnadenstoss, golpe de misericórdia, aplicado nos deficientes mentais alemães. Se em algum momento da História mundial um povo esteve pronto para a guerra, esse povo foi o alemão, por menos que a quisesse.

Um diálogo de Shirer com uma camareira ilustra bem esse sentimento alemão:

— Por que motivo os franceses nos guerreiam? — perguntou ela.
— Por que motivo vocês guerreiam os poloneses? — perguntei também.
— Hum — disse ela — mas os franceses são seres humanos.
— E os poloneses talvez sejam também — retruquei.
— Hum — voltou a fazer outro muxoxo.

Mas mesmo anti-semitas, anti-eslavos e anti quase qualquer coisa, mesmo apoiando Hitler, os alemães não queriam a guerra. Shirer compara a ida das tropas alemãs aos fronts da Primeira Guerra — em que os soldados marchavam sob pétalas de flores — com o silêncio e apreensão demonstrada pelos alemães diante dos desfiles de suas tropas em 1939.

O livro termina em dezembro de 1940. Antes do vôo de Hess, da invasão da União Soviética, de Pearl Harbor. Publicado em 1941, e podendo ser considerado parte da pressão doméstica para que os Estados Unidos entrassem na guerra, não se pretende um documento definitivo e não nega o seu caráter profundamente partidário; mas é provavelmente aí que está sua força e o seu interesse. É um grande livro, e vale a pena ser lido.

Originalmente publicado em 26 de agosto de 2005

Os velhos tempos é que eram bons

Sou só eu, que por alguma razão obscura não consigo deter a passagem do tempo, ou as coisas estão ficando sem gosto?

O presunto, por exemplo. Hoje é uma coisa aguada, insossa. Para se ter algo próximo do sabor antigo do presunto comum, aquele cozido que se compra fatiado no supermercado, é preciso apelar para o tender — que ainda tem gosto agradavelmente forte demais, mas que do jeito que as coisas andam em uns 10 anos terá o gosto exato do presunto de 15 anos atrás.

O queijo, também. O queijo do reino de antigamente continua com sabor forte — mas, por alguma razão, deteriorado. É, no mínimo, diferente. E o queijo prato, aquele queijinho barato, o queijo sempre comum nas mesas de qualquer pessoa de classe média, não ficou apenas cada vez mais borrachudo — está cada vez mais sem gosto. A impressão que se tem é a de que, se as coisas continuarem assim, daqui a alguns anos, para se ter um sabor parecido com o queijo prato de antigamente, será preciso apelar para o gosto de xixi do camembert.

O que eu não sei é se o meu paladar está decaindo, por causa de todos esses excessos que vão se acumulando vida afora, ou se as coisas estão realmente ficando sem gosto. Sou só eu? Eu estou ficando irremediavelmente velho, reclamando dos tempos modernos, achando que as coisas só eram boas mesmo em tempos idos — uma das maiores fraudes que a mente prega nas pessoas, porque as coisas nunca eram melhores antigamente — ou o mundo (pelo menos o mundo da comida industrializada) está ficando mais insosso?

It was twenty years ago today

Uma vizinha está ouvindo rádio. Deve ser a empregada, porque ninguém escuta rádio por aqui. Com exceção de programas noticiosos, rádio — ainda mais a uma altura dessas — é coisa que só se ouve no carro ou na cozinha.

Por alguma razão resolveram fazer um especial dos anos 80. Já ouvi New Edition (Is this the eeeend?), Berlin (Take my breath awaaaay), Culture Club (Mistake #3), Stevie Wonder (I Just Called to Say I Love You) Chris DeBurgh (The Lady in Red) e uma canção que assolou o Brasil em 1986, Yes, cujo cantor era um picareta brasileiro que fingia ser gringo, adotou o nome de Tim Moore e enrolou boa parte do Brasil; o Bia lembra dele bebendo caipirinha no camarim, antes de um show em Americana, enquanto resmungava: “Merda de cidade…”

A música de 20 anos passados interrompeu o Caruso que eu estava ouvindo. Não só por tocar mais alto, mas porque é um aviso de que estou ficando velho; lembro de quando essas músicas eram tocadas durante a programação normal, e não no que parece ser uma espécie de “Especial Para Caquéticos”. Essas notas musicais, boa parte das quais detestadas por mim já na época, me lembram também que quando cada geração chega à maturidade costuma usar a mídia para contar uma visão edulcorada de como os seus velhos tempos eram bons. Assim os anos 50 deram American Grafitti no início dos 70 e tudo o que se seguiu depois — Grease, Happy Days, e um revival completo nos anos 80. Era a visão tipicamente americana de um passado pretensamente dourado que o resto do mundo foi obrigado a engolir. Mais apropriadamente, era a saudade da classe média branca americana dos bons tempos de Eisenhower.

Antigamente demorava-se cerca de 15 anos (ou 3 gerações de consumidores) para que uma geração fosse entupida de lembranças cor-de-rosa, e muitas vezes falsas, de outra. Mas os órfãos dos anos 80 começaram cedo, porque ultimamente a juventude tem chegado chegado mais cedo ao poder. O primeiro sinal de recaída de que me lembro foi um filme com o John Cusack, Grosse Pointe Blank. Agora aqui e ali pipocam referências. Boa parte da revista Flashback, que conta com os textos brilhantes do Ina, é composta disso, de lembranças de uma década que, sabe Deus como, conseguiu definir uma identidade própria a partir de retalhos de décadas passadas.

Tudo isso me lembra quão ruins foram os anos 80.

Que ninguém me entenda mal. Não é que não goste deles. Tenho boas lembranças daqueles tempos, no fim das contas: foi nessa década que passei a adolescência e, como diz o Roger Ebert, a adolescência é o período mais miserável na vida de uma pessoa, embora depois nos lembremos dela com saudade. Com o tempo, as pessoas transformam experiências terríveis como andar a pé, fazer sacanagem na cama dos pais da namorada ou rodar a cidade atrás de mulher em boas lembranças, de um tempo que já passou.

Mas que os anos 80 foram uma droga, foram.

***

Há algo de muito errado na ordem cósmica quando os dois maiores ícones de uma geração são Madonna e Michael Jackson. Este a gente já sabe no que deu, mas não vamos ser injustos creditando sua degradação aos últimos tempos: ele nos avisou do que vinha pela frente. Nos anos 80 o sujeito usava uma jaqueta de couro vermelho e uma luvinha branca e brilhosa na mão, com o cabelo eternamente solto e molhado por uma tonelada de gel; algum ingênuo esperava que ele melhorasse?

Quanto a Madonna, cada vez que vejo as roupas que ela usava fico com duas sensações: a de reconhecimento, de ter feito parte daquela era, e a certeza de que aqueles são os trapos que usaria uma mulher sexualmente reprimida que pirou o cabeção e resolveu nos dar a sua versão ensandecida de uma puta. Isso pode ter lá seu significado social e histórico; aquele crucifixo sexualizado pode até ser uma ofensa aos puritanos americanos. Mas além de dizer pouco a brasileiros que há séculos se despedem de suas virgindades encostados no muro da igreja, tudo aquilo era absolutamente brega. Era como se quatro estilistas cafonas acumulassem, sobre a lourinha da voz esganiçada, os seus conceitos lisérgicos de mau gosto.

Um consolo é que as roupas da Madonna podem ter sido imitadas pelas adolescentes de miolo mole nos EUA da época, como a gente costuma ver nos filmes, mas aqui no Brasil éramos mais comportados. Isso não quer dizer, no entanto, que tivéssemos bom gosto. Ah, não. Os anos 80 foram a década do rosa-choque e do verde-limão, provavelmente as cores mais medonhas já criadas — tanto que a Mãe Natureza, que tem lá sua carga de bizarrices, não ousou criá-las –, e que, como se sua própria feiúra não fosse suficiente, normalmente eram usadas ao mesmo tempo. Foram a época dos jeans verdes, de estampas berrantes que chamavam de new wave e que vilipendiavam a memória do finado Godard, das ombreiras, e mais tarde das saias balonê. Os anos 80 foram uma década de confusão e mau gosto.

Mas as coisas sempre podem piorar, e pioravam. Talvez nada disso fosse pior que os blazers com mangas dobradas copiados de Miami Vice, ou as barbas por fazer inspiradas no Mickey Rourke de “9 1/2 Semanas de Amor” (provavelmente a maior fraude erótica de todos os tempos). Como dizia uma antiga música de McCartney, no one left alive in 1985. Nos anos 80, era in ter cara de traficante cubano vagabundo da Jecolândia.

E os cabelos. Os cabelos. Mulheres com cortes que lembravam poodles epilépticos; homens com cabelos curtos mas compridos atrás, moda lançada a nós botocudos pelo Evandro Mesquita. As jubas piolhentas e embaraçadas dos hippies, em comparação, pareciam muito melhores; pelo menos exprimiam uma atitude. Não que aquele corte oitentista não tivesse nenhuma; o problema era saber qual.

Deus do céu, como é que alguém pode ter saudade daquilo?

***

Fãs dos anos 80 costumam lembrar de bandas como Smiths e U2 para mostrar que aquela, afinal, não foi a década perdida.

Duas bandas.

Acho que consigo lembrar de mais: Poison, Mötley Crue, Menudo, A-ha, Mr. Mister, Dominó, Tremendo, Dr. Silvana, Olivia Newton-John, Toto.

Chega. Bastam esses para lembrar que foi preciso que o grunge aparecesse para que a música pop fosse resgatada de um longo e tenebroso inverno.

Mas o que se poderia esperar de uma década que começou com um maluco dando cinco tiros em John Lennon?

***

Os anos 70 foram a década em que surgiram cineastas como Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Os anos 80 foram a década de John Hughes.

(Deixa-se aqui de lado a estética publicitária no cinema patrocinada pelos irmãos Ridley e Tony Scott e outros; isso é terrível demais para ser abordado assim, sem aviso.)

Alguns dos maiores sucessos da época foram dirigidos ou escritos por Hughes. “A Garota de Rosa Shocking”, “Gatinhas e Gatões” e “Curtindo a Vida Adoidado” são alguns dos filmes aos quais a gente recorre quando quer lembrar do que foram aqueles anos miseráveis.

(The Breakfast Club, talvez o filme mais “cabeça” dessa fornada, tinha originalmente duas horas e meia de duração. O estúdio, achando que ia ser um fracasso, cortou 50 minutos. O resultado é o único filme do Hughes que poderia ser bom, mas que parece episódico demais; essa é a explicação que encontro para rever o filme e achá-lo ruim.)

Não é que eu não goste desses filmes. Todos eles têm a capacidade de me lembrar uma época que vivi e que já passou há muito tempo. Queira ou não, eu estava presente aos anos 80.

Mas o fato de gostar de Some Kind of Wonderful, por exemplo, não faz com que ele se transforme miraculosamente em bom cinema. O melhor que se pode dizer desses filmes é que eles retratavam a juventude da época. Certo, e “Barrados no Baile” retrataria a juventude dos anos 90 nos mesmos termos. Além disso, é bom lembrar que “Sabrina”, “Júlia” e “Bianca” também retratam o amor. O problema é que “Sabrina” et al não são exatamente um soneto de Shakespeare, e juventude por juventude é melhor dar uma olhada no que Nicholas Ray andou fazendo 30 anos antes. Um antropólogo que tentasse compreender a juventude dos anos 90 a partir de “Barrados no Baile” concluiria que éramos todos todos estudantes lindos e ricos; se fizer o mesmo com os filmes de John Hughes vai ter a certeza de que éramos um bando de alienados fúteis com algum problema no juízo.

(E então lembro da diva dos anos 80: Molly Ringwald. A garota de rosa-choque. Diva adequadíssima à época: insípida, insossa, inodora. Nunca entendi por que investiram nela em vez de em delícias como Kelly Preston, cuja cena nua em “A Primeira Noite de Jonathan” é a única coisa que presta em um filme bobo. De qualquer forma, hoje ninguém ouve falar em Molly Ringwald. Tudo o que sei da ruiva é que mal começaram os anos 90 e a tonta cometeu duas grandes bobagens: dispensou os papéis principais de “Uma Linda Mulher” e de “Ghost”. As atrizes que fizeram esses filmes todo mundo sabe onde estão. Mas duvido que alguém saiba onde anda Molly Ringwald. Sumiu, coitada, como os anos 80 deveriam ter sumido.)

As pessoas podem até ter saudades dos anos 80. Acho que eu tenho, também. Mas isso deve ser uma versão degenerada da síndrome de Estocolmo. Talvez os anos 80 tenham sido tão ruins que as pessoas se acostumaram. Ou, o que é mais provável, do que as pessoas têm saudades é de um tempo em que eram melhores do que o que se tornaram. E nesse caso, não é dos anos 80 do que têm saudades. Elas têm saudades é de si mesmas.

Originalmente publicado em 30 de junho de 2005

Um bandido chamado Lampião

Lampião e seu bando chegaram à fazenda de Z. no interior de Sergipe. Pediram abrigo, dinheiro, as coisas que sempre pediam. Ou exigiam.

Z. se recusou ou não tinha o suficiente, não sei, e os cangaceiros fizeram a festa. Não gostaram de algo que C., mulher de Z., falou, ou o jeito como olhou — porque quando se estava diante dos cangaceiros todo respeito era pouco. Lampião então pegou uma palmatória e lhe deu seis “bolos” na mão.

“E agora?”, perguntou Lampião.

“É só isso?”, perguntou C., tentando controlar a raiva.

Lampião lhe deu mais seis bolos.

B., o filho mais novo do casal, acordado com a barulheira, estava perto da parede. Naquela época se dormia com camisolões. Um dos cangaceiros arremessou um punhal — espadins finos, com lâminas de cerca de 40 centímetros de comprimento — contra ele. O menino ficou pregado à parede pelo camisolão.

Lampião foi embora. Z. vendeu a fazenda por uma ninharia e se mudou dali.

***

Não há nada mais equivocado que tentar justificar o ciclo do cangaço a partir das condições sociais da época, e usá-las para evitar chamar Lampião pelo que ele era, bandido. Elas explicam, claro; mas não justificam nem amenizam seu caráter criminal.

É como justificar o fenômeno no tráfico no Rio de Janeiro. Com uma diferença: as tais “condições sociais” são muito mais graves no morro, porque a desigualdade social é mais gritante, e o favelado é confrontado todos os dias com imagens de um consumismo desenfreado. No entanto, ninguém pensa em chamar um Elias Maluco de herói. Se em outros tempos, em que os traficantes tinham maiores ligações com a comunidade, essa lenda ainda persistiu durante um tempo, hoje ela já provou simplesmente não existir.

Aqueles que transformam Lampião em uma espécie de robin hood da caatinga provavelmente esquecem a história. Porque essa versão romântica esbarra no fato de que ele, tantas vezes, serviu apenas de jagunço para coronéis da região. É contradita pelo fato de que aterrorizavam pequenos sitiantes e vilas inteiras, tomando dinheiro de todos, mas poupando proprietários de terra que lhe dessem abrigo — os coiteiros.

Lampião era apenas um coronel sem terras. Seu comportamento era o mesmo, com a diferença que ele precisava ser ainda mais truculento por não ter nenhum estamento que lhe garantisse, diretamente, o poder que exigia.

Não interessa a miséria ou o que fez Lampião ou Antônio Silvino cangaceiros, porque a mesma miséria atingia um bocado de gente. O que interessa é que durante os anos em que assolaram o sertão nordestino sua atuação foi a de bandidos, de assassinos, ladrões e opressores.

Essa mitologia romântica a respeito de Lampião parece ter se consolidado a partir dos anos 70. Era época de ditadura, e aparentemente os movimentos de resistência resolveram tomar como aliados e modelos qualquer coisa que representasse combate ao Estado. Entre outros, isso desagüou no Comando Vermelho, o que deve ter posto de cabeça para baixo toda a crença pseudo-leninista na idéia de que o povo armado fará a revolução; pelo menos aqui, nas terras tupinambás, o povo armado sobe o morro e vende cocaína, que dá mais dinheiro.

Comparar cangaceiros a terroristas palestinos é apenas falsificação da realidade. Concorde-se ou não com seus métodos, os palestinos estão lutando por algo maior que eles. Lampião e seu bando lutavam apenas por si próprios. Para que houvesse alguma razão em não chamar Lampião de bandido seria preciso que alguém mostrasse algo de significativo que ele tenha feito para contestar o status quo social, e não usar a força para garantir o seu quinhão.

Mas com exceção de eventuais rompantes de generosidade, a generosidade do senhor feudal, eu não conheço nada parecido.

Originalmente publicado em 21 de junho de 2005

E assim se passaram 60 anos

Daqui a pouco, em maio, vai-se comemorar o fim da II Guerra Mundial na Europa. Alguns meses depois, agosto, vai ser a vez do fim da guerra no Pacífico.

Mais uma vez vamos ouvir a história sendo contada de acordo com os americanos. Por exemplo, vão falar de como venceram a guerra na Europa. Só vão esquecer que, entre junho de 1941 e janeiro de 1945, a União Soviética enfrentou 78% das tropas alemãs. Depois disso, com os EUA e o que restou da Inglaterra avançando (e também o general De Gaulle gritando sozinho “nós vencemos, nós vencemos”), esse percentual diminuiu. Para 58%. Os Estados Unidos perderam 400 mil soldados naquela guerra. A URSS perdeu 13 milhões.

Mas o que importa é que quem conta a história é quem decide o que se passou, e para todos nós, 60 anos depois, a verdade absoluta é que sem os yankees comedores de putas alemãs os nazistas teriam vencido. Claro.

Vão falar também, pela enésima vez desde 1989, quando o assunto voltou à baila, do pacto Ribbentrop-Molotov de 1939. Vão aproveitar para descer a lenha no canalha do Stálin, vão chutar cachorro morto e dar um jeito de encaixar sua habitual imprecação contra o marxismo — esse monstro que todos eles, ignorantes mas militantes fáceis de uma causa que sabem vencedora, não conhecem mas espancam assim mesmo — vão dizer que a URSS se aliou a Hitler em sua sanha de divisão do mundo, etc.

Só vão esquecer, de novo, que em 1934 Stálin avisava que uma nova guerra estava se formando na Europa, e era contra ele. Que a ascensão do nazismo foi tolerada pelo resto da Europa, e indiretamente e com muito menos solidez pelos Estados Unidos, como medida profilática para evitar que o comunismo se espalhasse pelo mundo — como se Stálin tivesse, naquele momento, alguma vontade em relação a isso, como se não tivesse traído os comunistas alemães em 1927. Vão esquecer que o anti-semitismo nazista, pré-Holocausto, foi tolerado como um mal menor dentro de um jogo político muito mais importante. Vão esquecer que o pacto era imperativo para Stálin, que imediatamente começou a transferir as indústrias soviéticas da Ucrânia para além Urais, sabendo que o acordo não iria durar para sempre e que mais cedo ou mais tarde Hitler iria partir para cima dele.

E isso só em maio. Em agosto vão comemorar — melhor dizendo, rememorar — Little Boy e Fat Man.

As explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki foram um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade. Em muitos aspectos — talvez aspectos demais — foi algo tão monstruoso quanto o Holocausto. Não pelo número de mortos (cerca de 110 mil nas duas cidades, além de 130 mil feridos e, nos cinco anos seguintes, mais 230 mil mortos em decorrência da radiação), mas pela capacidade de matar tanta gente, em tão pouco tempo, de maneira tão torpe mas tão eficiente. E porque há, sim, um componente de racismo naquela decisão. Não um racismo óbvio como o nazista, mas algo muito mais sutil, talvez até secundário.

Por mais que se negue, é difícil imaginar que os americanos explodissem dessa forma a Alemanha, embora o bombardeio da Berlim já ajoelhada tenha mostrado uma fúria injustificável — as imagens que sobraram mostram uma cidade completamente destruída, muito mais que o “necessário”.

Há algum tempo, assisti a um filme americano dessa época, típico do esforço de guerra. Os termos utilizados — de “amarelo nojento” para baixo — indicavam algo mais grave que a simples raiva de um inimigo. Havia racismo naquelas palavras. Não era sequer novo: orientais sempre tiveram vida difícil nos Estados Unidos. Se os americanos não tinham nenhum motivo específico para odiar os alemães, contra os japoneses foi diferente. Foram eles que bombardearam Pearl Harbor inesperadamente, tentando destruir sua marinha e prejudicar sua entrada na guerra, àquela altura já inevitável. O ódio justificado pelo ataque traiçoeiro catalisava o racismo. E já que eles tinham que dar um recado importante à União Soviética, nada melhor que juntar o útil ao agradável. Uma coisa é explodir a mãe Europa; outra, muito diferente, é dar uma lição àqueles amarelos comedores de peixe cru.

Hiroshima e Nagasaki deveriam bastar para colocar Truman e os Estados Unidos no banco dos réus em Nuremberg. Mas há uma lição que todos aprenderam há alguns milênios: não existem criminosos de guerra entre os vencedores. Vencedores não cometem crimes, apenas modificam a jurisprudência.

Bem, talvez nada disso seja importante agora. Tudo isso aconteceu há muito tempo, há três gerações. Nesses 60 anos as coisas mudaram. O Holocausto não foi apenas uma das maiores representações do Mal na história da humanidade; foi a justificativa que faltava para tornar a II Guerra Mundial a única guerra santa dos americanos. E agora, mais uma vez, vamos ouvir a história contada por eles. Eu só não sei qual é exatamente a lição que se pode tirar daí.

Originalmente publicado em 11 de fevereiro de 2005

Moema

Julieta é a menina-moça que personifica a urgência da juventude — pressa em amar, pressa em morrer — com aquela conversa fiada de “O happy dagger!, this is thy sheath“. Até na hora de morrer ela insistia em fazer drama, mulherzinha chata que não teve coragem de fugir com seu homem — na verdade, homem em termos, porque aquele menino nervosinho era outro songa-monga.

Nada disso a impediu de se tornar a heroína romântica por excelência.

Enquanto isso, do lado de cá do Equador, um mulher fez um sacrifício ainda maior, e mais significativo. Mas poucos reconhecem a dimensão do ato de Moema, sua disposição de morrer sem nenhuma condição, sem pedir nada em troca, menos ainda uma outra morte.

Não é, não pode ser Julieta o símbolo do amor. Mais amou Moema, que nadou sem esperanças atrás do navio que levava sua irmã e seu amado para a Europa, para as terras de onde veio Caramuru.

Julieta e outras da mesma laia são heroínas porque os poetas que as imortalizaram tinham uma visão deturpada e masoquista do amor. Julieta fez seu homem morrer; o destino do desgraçado que amou Heloísa foi ainda pior. Para esses europeus, que não sentiram o gosto do dendê, que não sentiram o cheiro da brisa que sopra do mar de Itapuã, o amor é um jogo de trocas.

Julieta não teria morrido se tivesse levado um pé na bunda. Teria amaldiçoado o sujeito que a levou para a cama, a enrolou com aquela conversa de rouxinol ou cotovia e deu no pé atrás de outra besta. Teria amaldiçoado os Capuletto, teria dito que seu pai — aquele sim, um homem de verdade — é quem tinha razão, que aquela raça tinha sangue ruim.

Mas foi justamente isso o que Moema fez: abandonar-se quando percebeu que seu amor jamais seria. E mesmo nesse momento ela não desistiu, simplesmente: até o fim ela foi em busca do homem que amava e àquela altura não mais por ele, mas por ela mesma. Sabia que a caravela não iria parar só porque ela nadava atrás de Diogo, sabia que os homens em terra, incapazes de compreender o amor tão grande que ela sentia e encantados com suas miçangas e espelhos, pouco ligavam para seu destino. Mesmo assim, Moema nadou.

E um cínico, coitado, diria que ambas, Moema e Julieta, não passaram de otárias.

Originalmente publicado em 06 de janeiro de 2005