Uma hiena falou com a outra

Biajoni diz:
tá ocupado?

Rafael diz:
Finalizando o programa, vim checar o e-mail pra ver se mandaram os offs. E esperando o tempo abrir pra fazer uma externa fundamental.

Rafael diz:
mas fala.

Biajoni diz:
nada, queria saber se vc ouviu o novo morrissey.

Rafael diz:
Eu não leio mais, não ouço mais nada, não durmo, raramente almoço pra não ficar com sono e se você me disser que existe uma coisa bonita, cheirosa e peluda chamada mulher eu não vou acreditar. Isso responde à sua pergunta?

Biajoni diz:
uh…

Biajoni diz:
vai morrê!

Rafael diz:
Só depois que eu entregar o programa.

Biajoni diz:
mas vc não deve estar mais estressado que eu; acabei de mudar de casa, minha filha deve nascer a qualquer momento, guincharam meu carro na sexta, perdi meu melhor cliente e voltei a trabalhar em TV por salário mixo…

Biajoni diz:
isso sim é que é DRAMA.

Rafael diz:
É, minha situação tem uma vantagem: pelo menos eu não tenho mais vida pra dar errado.

Oh, Sir

Ah, um dia eu vou deixar de ser só um paraíba, e vou afiar o meu inglês tão pouco usado, e então vou escrever neste blog misturando as duas línguas.

Vou me sentir como a aristocracia russa, aquela que falava francês em seus salões enquanto nos aposentos de empregados a revolução fermentava, até que os mujiques grosseirões, incapazes de admirar a beleza dos ovos Fabergé só porque não podiam comê-los, tomaram conta do Kremlin e aquela aristocracia sobreviveu apenas como paródias patéticas nos livros de Nabokov.

Farei isso porque almost everything que leio na internet é em inglês, e às vezes uma expressão me vem mais facilmente na língua do bardo do que in portuguese, e o tempo que gasto para achar sua correspondente na última vagabunda do Lácio é tempo perdido que não vou recuperar nunca. Fazer parte desses 10% de brazilians que têm internet me serve como desculpa, e então finjo que o meu crazy nigger’s samba é praticamente uma obrigação e um compromisso com a modernidade. Tenho certeza de que algumas pessoas vão acreditar.

Farei isso para me sentir elite, maluco, para mostrar a todo mundo que sei inglês, you see, e não vai adiantar nada, absolutamente nada alguém dizer para mim que em tempos de universalização falar inglês não significa que sou chique, que apenas denota uma jequice inenarrável, uma sensação de ser lorde na W Flagler St em Miami, que quase fechou em 1998 quando a ilusão de sermos saxões foi destruída pela desvalorização do real e percebemos que, no matter what, éramos apenas botocudos arremedando um colonizador que mal conhecíamos.

Mas so what? Eu quero viver assim, e o jeito como vivo não é nobody’s business, vou ser feliz olhando para a etiqueta da Brooksfield na minha camisa e fingindo que a comprei na Harrod’s. E eu, criado no pão com ovo, vou fingir que em vez disso tomo o meu chá das cinco, e vou olhar para o mundo com aquele olhar que pretendo fleumático mas é só deslumbrado por algo que apenas finjo compreender.

Eu não quero mais ser naïve. Vou fugir da naiveté como fujo hoje da bourgeoisie que me acorrenta em seus grilhões de mediocridade, e essas serão as únicas palavras em outra língua que não o English que usarei, porque a New Yorker me disse que anglo-saxão que fala assim é mais chique que o anglo-saxão que fala yo!, disse, sim.

Ninguém diga que tudo isso é oh so twatty; it’s only words, and words are all I have, e não importa que eu cite Bee Gees porque afinal de contas this is oh so English. Ou oh so Australian. So proper, anyway.

E então meu blog vai sofrer a much needed upgrade, e vou viver happily ever after.

Eu vou ser um viralata de lacinho.

Post promocional com updates

Tô duro.

E nessas horas a gente sempre tem uma idéia brilhante. A minha veio olhando um anúncio do Mercado Livre no meu MSN: “Venda seu beijo aqui”.

Foi assim que eu descobri que essa minha língua poderia servir para algo mais lucrativo que falar mal da vida dos outros.

Então este é um comercial. Fiz minha tabela de preços, e estou pronto para montar o meu próprio negócio.

Beijo na bochecha: R$ 0,50
Beijo na testa: R$ 0,75
Selinho: R$ 1,00
Beijo no pescoço: R$ 1,50
Beijo na nuca: R$ 2,00
Beijo na boca: R$ 3,00
Beijo de língua: R$ 4,00
Beijo de língua com direito a chupão daqueles de 10 minutos: R$ 5,00

Update: Devido à grande procura, estamos oferecendo desconto de 20%.

Update 2: A grande procura continua. Tudo pela metade do preço!

Update 3: Sucesso absoluto! Agora com desconto de 75%!

Update 4: Promoção relâmpago! Além do desconto de 90%, pague um e ganhe outro inteiramente grátis!

Update 5: Só até amanhã! Pague um e leve 4 — com 95% de desconto!

Update 6: Ô vida.

Update 7: Eu e minhas idéias.

Eu sou apenas um rapaz latino-americano

E-mail interessante:

Olá, costumo ler o seu blog. Não consigo definir a sua pessoa, vc é um ricaço enrustido? Estou precisando de 5000 dolares ou 12000 reais, é o que me falta pra comprar um bem de consumo o qual ampara minha felicidade; Se souber de alguem que possa, por favor me indique.. Abraços, continue escrevendo assim.
Att,
André

E eu fiquei pensando.

O André não me conhece. Se conhecesse, saberia que eu não sou ricaço. E se me conhecesse mesmo saberia também que se fosse rico eu seria qualquer coisa, menos um rico enrustido.

Eu seria o pior tipo de rico, aquele que esbanja, que ostenta, que não sente culpa pela miséria em derredor. Seria um rico que acredita piamente que a única forma de demonstrar respeito ao dinheiro é não o respeitando em absoluto. Que compraria as coisas unicamente porque pode comprar. Que não dispensaria mais tempo pensando no dinheiro em si do que nos objetos inúteis que compraria num impulso.

Mas Deus não dá asa a cobra, e o Bezerro de Ouro só abençoa aqueles que não sabem venerá-lo comme il faut.

Eu não consigo compreender que a riqueza seja o resultado de trabalho, disciplina e acumulação. Não consigo conceber que para ser rico você tenha que trabalhar e trabalhar e trabalhar. Porque se você trabalha não consegue gastar o dinheiro, não como se deve, com o vagar e a despreocupação necessários. Você não pode conhecer o Tibet se tem que continuar a trabalhar para ganhar dinheiro para ir para a Alemanha. E então para que serve o dinheiro?

Aqueles que podem dar essa resposta são os ricos. Os outros que calam diante dessa pergunta são como eu, parte da multidão sem nome que apenas sonha em ser rica mas não perde muito tempo nesse exercício fútil, como não dedica muito tempo à teoria das cordas porque sabe que lá adiante chegará o momento em que não conseguirá compreender nada.

É isso que dói em nós, esse conformismo em saber que nunca conseguiremos entender os verdadeiros mecanismos do dinheiro. E é essa incompreensão atávica e imutável acerca dos mecanismos da riqueza que me tira todas as chances de ser um ricaço, mesmo enrustido.

Por causa dela, por causa dessa miopia ibérica que me batizou ainda no berço, leio a fábula da cigarra e das formigas e não consigo entender, não de verdade. Apenas finjo que entendo, como finjo ao recitar um trecho ou outro de “Ulysses” ou dos “Lusíadas”. Porque me parece uma profunda injustiça que sejam as formigas as únicas a ter comida no inverno. Elas não têm esse direito. De que vale um verão se ele só serve para que se acumule comida? Qual a graça em ver o sol brilhando, se ele só serve para fazer com que as idiotas, carregando folhas mais pesadas que elas às costas, suem um pouco mais?

Enquanto isso a pobre cigarra, que viveu o verão como o verão deve ser vivido, que se divertiu e divertiu os outros — menos as formigas, prenhes de despeito pela alegria e pela beleza da cigarra, antecipando com prazer mórbido e vingativo o dia em que ela não teria o que comer e justificando assim a sua existência minúscula e excessivamente ordeira — se vê às margens da fome quando o sol vai embora.

Algumas pessoas entendem isso, entendem que essa é a ordem correta das coisas. Outros, não. Para estes é uma injustiça, uma alteração da ordem correta das coisas que a cigarra tenha que se humilhar diante de formigas que só existem como estatística, como parte de um grupo informe e feio de escravos e soldados, em que mesmo a rainha só existe para parir.

É por isso que não, eu não sou um ricaço enrustido ou declarado. Não posso te enviar, portanto, os cinco mil dólares que amparariam a sua felicidade. Apenas posso te dar um mau conselho, que de maus conselhos sim, eu sou rico, imensamente rico, e deles tenho uma caixa-forte maior que a do Tio Patinhas: cinco mil dólares é muito pouco para amparar qualquer felicidade verdadeira. Só ampara as pequenininhas. E as pequeninhas não são felicidade, são só umas contentezas daquelas de nada, que logo, logo vão passar.

Vidas paralelas

Patrick numa casa de chá, falando sobre medicina e sobre a indisposição estomacal do dia anterior, tratada com chá de boldo:

— Eu namorei uma médica por dois anos, é por isso que sei essas coisas.

Rafael, desconsolado por ver que a vida nem sempre é um bom aprendizado:

— Eu namorei uma advogada por um tempão. E tudo o que aprendi foi a sacanear os outros.

Sonhos de consumo

Uma edição crítica definitiva de Machado de Assis, com texto fixado e notas de rodapé contextualizando as referências históricas e geográficas, introduções com boa apreciação crítica de cada peça e um apêndice com fotos de Machado e do Rio de Janeiro daquela época, em edição bem acabada, com capa dura e sobrecapa elegante.

***

Um DVD triplo de L’Armata Brancaleone e Brancaleone Alle Crociate, restaurado, em widescreen, com um disco extra explicando a produção e suas particularidades e um bom documentário sobre a Itália medieval.

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O relançamento, atualizado e corrigido, de The Beatles Recording Sessions, de Mark Lewisohn.

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O relançamento de uma coleção com as obras completas de Jorge Amado, como as tantas que a Record já lançou e que hoje infestam os sebos, com o texto definitivo, introdução a cada obra, notas de rodapé necessárias, as ilustrações de Carybé e Mário Cravo, e paginação, diagramação e tipologia decentes, o que nunca aconteceu.

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O lançamento prometido há anos de Let it Be em DVD, com pelo menos mais quatro horas de cenas cortadas, tudo devidamente restaurado e transposto para o formato 4×3, como deveria ser originalmente. De brinde, a última versão do Get Back de Glyn Johns, promessa quebrada quando a Apple lançou o Let it Be… Naked.

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Que me vendam aquela edição da Comédia Humana, pela qual babo há anos. Eu dobro a oferta inicial, amiga ingrata.

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A Ana Hickman. De qualquer jeito.

As grandes verdades da vida

De vez em quando alguém vem parar aqui e cita um bocado de filósofos, como se isto aqui fosse algo mais que um antro de bobagens, como se eu tivesse lido quaisquer um deles.

Tudo bobagem.

Cânt, Ráideguer, Quirquigard, Rêguel, Montesquiê, Loque, Robes, um bando de bobos que nunca passaram sequer perto das grandes verdades da vida.

Tudo besteira.

Digo isso com a tranqüilidade de descende de uma grande linhagem de pensadores, de quem nasceu na família de maiores filósofos que o mundo inteiro já conheceu. Gente profunda que investigou com vagar as grandes questões da vida, e de suas jornadas pelas brenhas da mente emergiram com frases que definem a existência e a metafísica. Ao invés de gastar páginas e páginas com palavreado difícil, souberam oferecer em poucas frases avaliações profundas sobre o ser humano, sobre o valor da prudência, sobre a capacidade de ver além das aparências e sobre as vantagens da falta de soberba.

Do velho Oscar Valois, meu bisavô:
“Tem gente para tudo neste mundo e ainda sobra um para comer merda”.

Do velho Romário Maia, meu avô:
“Bala não tem nome nem endereço.”

Do velho José Rabelo, tio-avô:
“Quem come cara é bexiga.”

De João Marcelo, primo distante e já velho, apesar de não admitir:
“Quem come qualquer coisa está sempre mastigando”.

Aí está toda a sabedoria acumulada em séculos de vida tranqüila e proveitosa. E mais que isso não é preciso.

Prestação de contas

Há tantas coisas de que, se não me arrependo, certamente não faria de novo: ficar pendurado no capô de um Maverick a 100 por hora em um carnaval, mandar gente demais à merda, mergulhar de lugares altos demais, caminhar sozinho de madrugada pela Saúde, não ter dito “não” mais vezes, estar ao lado de uma amiga prestes a jogar um coquetel molotov na polícia, ser grosso com umas pessoas e não ser com outras, viajar de Aracaju a Petrópolis com 500 cruzados — equivalentes a 20 coca-colas –, namorar quem não devia, não namorar quem devia, pegar um táxi no aeroporto de Veneza, dormir ao relento na entrada de Aracaju com a bunda para baixo por medo dos travestis que rondavam o lugar, montar uma égua chucra e ser jogado, humilhado, a alguns metros de distância, ser expulso de bares por comportamento impróprio, entrar no fosso dos jacarés, acordar sem saber onde estava, explicar a uma militante da UJS o trotskismo na visão do PCdoB em um ônibus cheio de professores paulistas trotskistas da Apeoesp, não ter feito a campanha de 1998, fazer um strip-tease coletivo no Cine Palace durante um filme dos Trapalhões, sair correndo do bar porque o sujeito que estava com aquela moça tinha um revólver na mão, vandalizar todo o condomínio com requintes pirotécnicos, mandar o sujeito que me assaltou tomar no olho do cu; e no entanto, à medida que o tempo vai passando e o corpo não quer mais que um sofá confortável com suco de mangaba e uma ruga fica cada vez mais tempo entre as sobrancelhas, isso é tudo o que sobra, porque de todo o resto eu esqueci, as coisas de que me arrependo e as que faria de novo, as coisas que deveria ter feito e fiz, e nenhuma delas me faz sorrir, hoje.