Esprit d’escalier

Sem modéstia, eu sou dono de um dos maiores esprits d’escalier que conheço.

Esprit d’escalier é aquela resposta adequada na qual você só pensa muito tempo depois de levar um belo desaforo nas fuças. Por isso o nome, espírito de escada: a frase perfeita que só lhe vem quando você já está descendo a escada, batendo em retirada, humilhado. É o consolo dos idiotas.

Depois da hora certa, eu posso ser genial. Sem ninguém na minha frente, eu sou brilhante.

Mas de vez em quando eu penso na coisa certa na hora certa, e esses momentos me enchem de orgulho, e meus netos me ouvirão repetir essas mesmas histórias vezes e vezes a fio, daqui a muitos anos — tanto mais porque são muito poucas as vezes em que consegui esse feito.

Aconteceu isso em Londres, uns meses atrás, ali perto do Ritz. Eu estava com fome. E já estava meio cansado de comprar aqueles takeaways nas Sainsbury’s da vida para comer sentado em algum parque ou praça.

Foi quando a gente viu uma Pizza Hut. Pizza Hut deve ser barato, foi o que a gente pensou. É a única vantagem dessa comida ruim que se espalha pelo mundo: o gosto pode ser uma droga, mas pelo menos os preços são acessíveis. É o que faz você tolerar um McDonald’s, uma Pizza Hut, uma Domino’s, um Burger King, essas coisas que se espalham como praga com seu paladar uniformizado e industrializado e que tornam o mundo um pouco mais pobre.

Quando a gente entrou, uma moça veio nos receber com o menu na mão e nos encaminhou para a nossa mesa.

Era um sinal, e mau. Obviamente, nós não fomos inteligentes o suficiente para perceber o óbvio: uma Pizza Hut nas imediações do Ritz poderia ser tudo, menos barata.

Sentamos à mesa que a moça indicou e abrimos o cardápio. E então os preços saltaram aos nossos olhos, e eram libras pesadas sobre nossos bolsos depauperados.

Eu não ia comer ali. Era caro demais. Eu podia dar à minha pobreza uma outra desculpa, a de que o preço não era apenas alto, era exorbitante diante de comida ruim, mas para ser honesto não era essa questão, não diante da minha fome: era só falta de dinheiro, mesmo.

O que me deixava com um novo problema, que se juntava à minha fome.

A gente tem vergonha de umas coisas bobas na vida, que à medida que o tempo passa vão ficando mais ridículas. Isso de sair de um restaurante porque não pode pagar, por exemplo. Se eu fosse rico, não ligaria de olhar os preços, torcer o lábio e me levantar fazendo cara de nojinho, e ainda dizer no mais esnobe sotaque inglês “Oh, dear, it’s improperly expensive, and it’s not worth it!”. Mas para mim, que aprendi com minha mãezinha que a gente era pobre mas era limpinho, é uma coisa meio vexatória esse negócio de levantar de uma mesa depois de ver os preços. É uma confissão meio humilhante. Dá vergonha. Se eu pelo menos tivesse saído antes de abrir o cardápio.

Mas não era só isso que me mortificava. Imagem de brasileiro lá fora já é tão ruim, meu Deus. Pior em Londres, lugar onde a polícia gosta de matar brasileiro no metrô. E lá ia eu avacalhar ainda mais a impressão que as pessoas têm do meu cantinho. A partir daquele dia, a moça que nos recebeu à porta, quando entrasse mais um brasileiro, diria baixinho para as suas colegas: “Olha, lá vem mais um brasileiro que não pode pagar uma pizza. Vai lá atender esse povo, Elizabeth”.

Mas Deus protege os tolos, é o que dizem, e enquanto me levantava e me encaminhava para a saída eu de repente percebi que havia, sim, uma frase que eu poderia dizer e que resgataria a minha honra e a minha decência, e defenderia a honra do meu país como um Duque de Caxias ou um Almirante Tamandaré, e falei bem alto, para que todos me ouvissem:

— Yo me voy, acá es muy caro! En Argentina no es asi!

E saí de lá com a impressão de que fiz mais pela imagem do meu país do que quinze Lulas e oito Celsos Amorim.

Esprit d'escalier

Sem modéstia, eu sou dono de um dos maiores esprits d’escalier que conheço.

Esprit d’escalier é aquela resposta adequada na qual você só pensa muito tempo depois de levar um belo desaforo nas fuças. Por isso o nome, espírito de escada: a frase perfeita que só lhe vem quando você já está descendo a escada, batendo em retirada, humilhado. É o consolo dos idiotas.

Depois da hora certa, eu posso ser genial. Sem ninguém na minha frente, eu sou brilhante.

Mas de vez em quando eu penso na coisa certa na hora certa, e esses momentos me enchem de orgulho, e meus netos me ouvirão repetir essas mesmas histórias vezes e vezes a fio, daqui a muitos anos — tanto mais porque são muito poucas as vezes em que consegui esse feito.

Aconteceu isso em Londres, uns meses atrás, ali perto do Ritz. Eu estava com fome. E já estava meio cansado de comprar aqueles takeaways nas Sainsbury’s da vida para comer sentado em algum parque ou praça.

Foi quando a gente viu uma Pizza Hut. Pizza Hut deve ser barato, foi o que a gente pensou. É a única vantagem dessa comida ruim que se espalha pelo mundo: o gosto pode ser uma droga, mas pelo menos os preços são acessíveis. É o que faz você tolerar um McDonald’s, uma Pizza Hut, uma Domino’s, um Burger King, essas coisas que se espalham como praga com seu paladar uniformizado e industrializado e que tornam o mundo um pouco mais pobre.

Quando a gente entrou, uma moça veio nos receber com o menu na mão e nos encaminhou para a nossa mesa.

Era um sinal, e mau. Obviamente, nós não fomos inteligentes o suficiente para perceber o óbvio: uma Pizza Hut nas imediações do Ritz poderia ser tudo, menos barata.

Sentamos à mesa que a moça indicou e abrimos o cardápio. E então os preços saltaram aos nossos olhos, e eram libras pesadas sobre nossos bolsos depauperados.

Eu não ia comer ali. Era caro demais. Eu podia dar à minha pobreza uma outra desculpa, a de que o preço não era apenas alto, era exorbitante diante de comida ruim, mas para ser honesto não era essa questão, não diante da minha fome: era só falta de dinheiro, mesmo.

O que me deixava com um novo problema, que se juntava à minha fome.

A gente tem vergonha de umas coisas bobas na vida, que à medida que o tempo passa vão ficando mais ridículas. Isso de sair de um restaurante porque não pode pagar, por exemplo. Se eu fosse rico, não ligaria de olhar os preços, torcer o lábio e me levantar fazendo cara de nojinho, e ainda dizer no mais esnobe sotaque inglês “Oh, dear, it’s improperly expensive, and it’s not worth it!”. Mas para mim, que aprendi com minha mãezinha que a gente era pobre mas era limpinho, é uma coisa meio vexatória esse negócio de levantar de uma mesa depois de ver os preços. É uma confissão meio humilhante. Dá vergonha. Se eu pelo menos tivesse saído antes de abrir o cardápio.

Mas não era só isso que me mortificava. Imagem de brasileiro lá fora já é tão ruim, meu Deus. Pior em Londres, lugar onde a polícia gosta de matar brasileiro no metrô. E lá ia eu avacalhar ainda mais a impressão que as pessoas têm do meu cantinho. A partir daquele dia, a moça que nos recebeu à porta, quando entrasse mais um brasileiro, diria baixinho para as suas colegas: “Olha, lá vem mais um brasileiro que não pode pagar uma pizza. Vai lá atender esse povo, Elizabeth”.

Mas Deus protege os tolos, é o que dizem, e enquanto me levantava e me encaminhava para a saída eu de repente percebi que havia, sim, uma frase que eu poderia dizer e que resgataria a minha honra e a minha decência, e defenderia a honra do meu país como um Duque de Caxias ou um Almirante Tamandaré, e falei bem alto, para que todos me ouvissem:

— Yo me voy, acá es muy caro! En Argentina no es asi!

E saí de lá com a impressão de que fiz mais pela imagem do meu país do que quinze Lulas e oito Celsos Amorim.

Twitter

A Aline perguntou se eu iria para o Twitter.

Eu adoraria. Mas não vou.

Não é uma questão de dilema existencial como o que o Hermenauta atravessa. O Twitter fez o Hermê se tornar o Hamlet da blogoseira brasileira, dividido entre o desejo do novo e a compreensão da realidade. No meu caso, é em primeiro lugar uma questão de falta crônica de tempo, mesmo.

Mais precisamente, faltam dois tipos de tempo. Jorge Semprún dizia que, mais que o tempo objetivo, é preciso tempo interior para escrever algo. Eu nunca acreditei em quem se diz ocupado demais para fazer certas coisas, mas sei o que é falta desse tempo interior de que o sujeito fala. Quem já passou pela experiência tenebrosa de abrir um livro e não conseguir entender as frases escritas ali porque a cabeça teima em não voltar de outro lugar sabe exatamente o que é isso.

Talvez seja por essa razão que olho para o Twitter como quem contempla uma brincadeira de criança que nunca viu antes. Pode parecer coisa de velho que não consegue compreender direito o progresso, e talvez seja, mas vejo o Twitter como algo para quem passa o dia inteiro ligado na internet e que tem esse tempo disponível. Gente que consegue encontrar sites e notícias interessantes para compartilhar. Que tem algo a dizer. Que consegue fazer sentido da rede social que se cria ali.

Não é o meu caso. Eu sinceramente não tenho tanto a dizer. Indo um pouquinho além, acho também que a imensa maioria das pessoas que usam o Twitter tampouco têm; mas isso não interessa, porque não cabe a mim ou a ninguém dizer o que as pessoas devem fazer com seu tempo.

Além disso, a internet não me interessa tanto assim. De certa forma, nunca interessou: eu nunca consegui ver graça no Orkut; nunca consegui me mover no Facebook. Um pouco disso, certo, é só cansaço; quantas bobaginhas anunciadas como revoluções eu já vi passar apenas nos últimos dois ou três anos: del.icio.us, Digg, Tumblr — e as pessoas voam de um para o outro como mariposas encantadas por uma luz mais forte, uma luz que mais cedo ou mais tarde se apagará e será substituída por outra. Há também as “verdadeiras”: em quase 15 anos de internet, eu já devo ter assistido — às vezes de camarote — a várias dessas revoluções: homepages, IRC, MSN, blogs. É revolução demais para uma vida só — principalmente para um baiano que, por índole e por talento, gosta de ver essas novidades deitado numa rede e achando graça da ligeireza das pessoas. Ninguém precisa de tanta revolução.

Não que o Twitter seja igual a essas novas novidades que citei agora. Também não digo que não é: mas certamente acho que existe um grande exagero em tudo isso — e é aí que entra o tal cansaço de que falei antes, a impressão de que se eu ficar paradinho a moda vai mudar e eu não vou ter perdido muita coisa. Um exemplo foi a importância que deram a um sujeito que narrou seu resgate do avião em que estava, e que tinha acabado de amerissar no Hudson, como uma revolução jornalística: e aquilo não era nada, porque não era relevante, não fez diferença. É só a neurose da informação de última hora, a ditadura vazia do “real time“. Não acho que alguém precise realmente disso.

Que me desculpem todos aqueles que gostam do Twitter, mas não vejo sentido em tanta informação. Por dever de ofício, leio alguns jornais por dia; por prazer, leio alguns blogs. Por graça, tento escrever um blog; por tristeza, namoro as lombadas dos livros que comprei e que não tive tempo para ler. O Twitter iria estragar essa rotina simples. Tudo isso é mais informação do que consigo processar.

Finalmente, há uma outra razão: eu gosto deste blog. Anda ruinzinho que dói, esparso como nunca, mas eu gosto dele. São quase 6 anos e alguns milhares de loucos que por alguma razão ainda gostam de ler isto aqui. O Twitter acabaria com ele. Se houve um tempo em que havia novos posts todos os dias, às vezes mais do que um, hoje se consigo colocar um ou dois por semana eu me dou por feliz. Com o Twitter, não teria nem isso. E quando este blog morrer não vai ser porque eu o canibalizei. Pelo menos isso eu devo a ele.

De qualquer forma, a esperança de tempos mais tranqüilos permanece, e já reservei o meu lote ali. Um dia, se ele ainda existir daqui a algum tempo, eu entro no Twitter. Mas vai demorar. Eu sou só um baiano preguiçoso.

A vida, negra e esfumaçada

A Vivien me encaminha um e-mail sugerindo um boicote à Coca-Cola.

Um e-mail desse tipo teria mais chances de sucesso se me propusesse matar minha mãe.

Eu não bebo água. Eu bebo Coca-Cola. Ninguém teria a pachorra de me mandar um e-mail pedindo que eu parasse de beber água. Mas por alguma razão incompreensível acham que eu, Rafael Galvão, marquês de Qüem-Qüem, senhor das luxúrias e deflorador das madrugadas (título usurpado de um amigo pândego que acaba de comemorar 33 anos de prisão e tortura na última grande ofensiva da “ditabranda”, a Operação Cajueiro) vou realmente cometer um crime de lesa-majestade e deixar de beber Coca-Cola.

Falem o que quiserem da Coca-Cola. Mas eu vou continuar trocando água por ela, porque água não tem gosto de nada e Coca-Cola é uma delícia — e o que é a vida além das lembranças das coisas boas que a gente provou ou sentiu? A Coca-Cola é a evolução da água. É a superação dos sonhos de Prometeu: se Deus criou a água, essa coisa insípida, inodora e incolor, nós conseguimos por conta do nosso engenho criar algo ainda melhor, uma neguinha agridoce e efervescente, quase tão gostosa como uma baianinha sambando no ensaio do Araketu. A Coca-Cola é o xeque-mate da humanidade em Deus.

Além disso, em um momento de crise econômica como este, seria o caso de perguntar se essas pessoas sabem quantos empregos a Coca-Cola gera em todo mundo. E deve gerar ainda mais impostos. Eu acho fascinante gente que quer ser politicamente correta à custa dos empregos dos outros. Que quer salvar as pessoas tirando seus empregos.

Esse email — e tantos outros recebidos ao longo dos tempos porque email, afinal, não custa nada — me lembra que as coisas podem ser piores.

Eu fumo, também. Pouco mais de dois maços por dia. É, eu fumo muito. Não precisa me dizer. Eu sei. Por causa disso, entre as coisas que mais ouço cotidianamente está uma frase que, ao longo desses vinte e tantos anos, já sei de cor: “Pare com isso. Sabia que cigarro dá câncer?” E então tenho que controlar a vontade de pedir para a pessoa deixar de ser idiota, ou sugerir que arranje uma trouxa de roupa para lavar, porque essa informação é uma das mais redundantes que pode haver, e só essas pessoas, em sua arrogância e ingenuidade, não percebem isso.

Eu sei que cigarro aumenta os riscos de câncer. Não tem como não saber. Eu e todos os fumantes ouvimos essa arenga todos os dias. Todos os dias.

O problema com essas boas intenções é que a sua repetição monótona é inútil em um primeiro momento, e aborrecida depois. Talvez seja algo no DNA dos não-fumantes, essa idéia de que uma informação tão banal será apresentada a mim como grande novidade, e que a súbita revelação dos riscos à minha saúde, combinada ao seu samaritanismo, me fará deixar de fumar como por milagre.

Eles não conseguem entender que nós, fumantes, temos mais consciência dos problemas associados ao tabaco do que muitos médicos, porque ouvimos tanto a mesma ladainha que não há como esquecer, em nenhuma hipótese. Todo dia, várias chatos bem-intencionados repetem a mesma coisa para nós, como se fosse uma novidade. É impressionante como pessoas de boa índole e vocação proselitista acham que são as únicas a transmitir esse importantíssimo conhecimento arcano. É a sina dos fumantes, encontrar em cada não-fumante um São João Batista anunciando a chegada do Messias — ou, mais propriamente, revelando que cigarro, ora vejam, dá câncer.

Normalmente eu respondo: “Rapaz, isso não é nada. Eu posso ou não ter câncer. Mas enfisema é quase certo” — e a maioria dos bobos fica com cara de quem perdeu a chave da bunda, porque aquela informaçãozinha que eles pareciam julgar tão importante na verdade não era nada; eles não conseguem compreender: como é que eu sei do mal que faço a mim mesmo e continuo acendendo meus cigarros?

Parece difícil colocar algo tão simples na cabeça das pessoas: fumantes sabem os riscos a que estão expostos. Fumamos, no entanto, a despeito disso. Eu não consigo entender bobos que correm sei lá quantos quilômetros por dia; eles não conseguem entender que eu goste de fumar. A diferença é que eu não digo aos corredores para pararem de correr porque podem ser atropelados por um caminhão da Souza Cruz.

Mas há outro argumento, esse o dos assumidamente chatos; aqueles que, não fosse a minha boa natureza pacífica e covarde, eu enxotaria a pontapés e delicadas referências às suas genitoras: o da poluição. É a gente sem noção que reclama que o meu cigarro está poluindo o seu ar.

Eu não tenho carro. Para mim é fácil argumentar que meu cigarro polui menos que o carro do chato que está falando. Alguns insistem, dizem que seu carro é necessário — e aí é só responder “Útil para quem? Para mim com certeza não é.” Outra resposta possível é perguntar se ele come carne. E depois, como os idiotas que nos lembram que “cigarro dá câncer”, lembrar que por causa disso o mundo está indo para o buraco, porque o metano dos peidos das vacas está acabando a camada de ozônio. Vacas peidonas são uma ameaça maior ao futuro do mundo do que fumantes inveterados.

É tão incômodo esse pessoal empenhado em salvar o mundo através da chatice.

Dia desses um amigo mandou um e-mail com um abaixo-assinado pedindo pelas foquinhas que são mortas no Ártico ou Antártida, não lembro bem. Respondi que um casaco daqueles ficaria bonito na minha mulher.

Na verdade, não tenho nada contra as foquinhas. Tenho algo contra peruas fúteis e idiotas que usam casacos de pele de foca. E tenho muito contra abaixo-assinados por causas bonitinhas. Não costumo respeitar gente que do conforto de seus lares com ligações irregulares de esgoto, consumindo supérfluos que custam um bocado em recursos naturais, resolve aliviar sua consciência desnecessariamente culpada fazendo coisas fáceis como encaminhar um abaixo-assinado achando que está salvando o mundo. Não acho honesto, só isso.

Só respeito, mesmo, as iniciativas de gente que se arrisca de verdade por aquilo em que acredita. Gente como os malucos do Greenpeace que jogam seus botes na proa de baleeiras. Esse pessoal eu respeito e admiro; até quase invejo, sentado aqui na minha poltrona na mais santa paz de Deus. Não diria que sinto o mesmo em relação a quem fica em casa tomando H2O ou Aquarius enquanto clama contra a Coca-Cola achando que está fazendo sua parte pelo meio-ambiente.

Então fica aqui um pedido público. Não me mandem abaixo-assinados. Não me engajem em causas bonitinhas porque eu não gosto de causas bonitinhas. Agora me dê licença, que eu vou tomar uma Coca e fumar um cigarro na varanda olhando o rio que corre aqui em frente.

Seis coisas que ninguém sabe sobre mim

O Sergio Leo me repassou um meme: seis coisas que não se costuma saber sobre mim.

1 – Já participei de uma peça de teatro. 1985. Eu estava com um grande amigo, Waltinho Seixas, e havia uma espécie de  festival de uma noite só no Teatro Santo Antônio, em Salvador — aquelas coisas com entrada gratuita, etc. Ele e Bertrand Duarte, um dos grandes atores baianos, acabaram participando. O título da peça, improvisada por eles, seria “Como Fazer Uma Revolução em Dois Segundos”. Eu dei uma sugestão de que até hoje me orgulho: seus personagens deveriam se chamar John Lênin e Paul McCarthy. Eu deveria entrar, no final, perguntar onde ficava Liverpool e sair platéia afora. Foi o que fiz. Foi o início e o fim de minha carreira teatral. Mas podia ser pior. Eu podia ter começado a fazer teatro infantil.

2 – Já acordei numa favela de Salvador me perguntando como tinha ido parar ali, com o Waltinho Passos. Depois de descobrir, e ainda meio bêbado, me vi discutindo o preço de um pedaço de terra ali, onde iríamos construir um loft com uma bela vista para um dos últimos pedaços de Mata Atlântica de Salvador e pertinho das mulheres do Cabula. O contrato foi redigido num bar próximo, em uma folha de caderno, mas nunca compramos o tal espaço — ou pelo menos eu não comprei.

3 – Já viajei de Aracaju a Petrópolis com 500 cruzados no bolso, equivalentes hoje a 20 reais, ou 20 Coca-Colas. Voltei uma semana depois ainda com 300 cruzados. São as vantagens de se alimentar de luz e se ter 17 anos.

4 – Já cheguei ao ponto de entrar numa agência de propaganda às seis horas da manhã de um domingo, vindo de uma boa farra, e só sair de lá às 19 horas da sexta-feira seguinte. E o pior é que o trabalho resultante nem ficou lá essas coisas.

5 – A única coisa que me fazia ir à universidade eram as cabines da biblioteca, onde se podia namorar à vontade e com discrição.

6 – Já fui várias vezes mordido, escoiceado, derrubado por cavalos — mas o que me envergonha e irrita são as vezes em que caí por culpa única e exclusivamente minha.

A guerra dos clones

Há um surto de doppelgängers por aí, afetando blogueiros da velha guarda. Foi o Bia quem me mostrou as evidências, desesperado, arrancando os poucos fios de cabelo que ainda restam. Uma epidemia de clones ameaça alguns blogueiros que ainda não desistiram de escrever blogs.

O Nelson Moraes tem um. É espírita. E espírita reconhecido, com livro e tudo. Um de seus livros se chama “Os Talentos do Tonhão e do Luizinho“. Os talentos do Tonhão eu imagino bem quais sejam, que ninguém é Tonhão à toa. Fico, no entanto, intrigado em relação ao Luizinho. O que um sujeito chamado Luizinho pode fazer, afinal? Luizinho, em tese, não tem talento para nada — só para ouvir “Luizinho, meu filho, vai ali na venda comprar um laxante que sua tia tá com aquele problema de novo!” Ninguém percebeu que o Bia, por exemplo, só assina o sobrenome?

Conviver com um doppelgänger desses deve ser duro para o Nelson de cá. Porque para ele é fácil fazer o que faz. Não há honra em escrever o que o Nelson escreve, porque seus textos só conseguem elogios, sempre. É como um peixe dizer que nadar é coisa do outro mundo, quando é tudo o que ele sabe fazer. Difícil mesmo é escrever livros com os títulos que o outro Nelson Moraes escolhe. É preciso muita coragem, uma valentia sobre-humana para escrever um livro chamado “Para onde iremos após a morte?”. “Pra casa do caralho!”, responde alguém, e outro gaiato grita “Pra puta que pariu!”, e então a gritaria sai de controle, alguém começa a jogar rolos de papel higiênico na sala, e como levar alguém a sério dessa forma?

Como não admirar, por exemplo, um livro como “Autista do Além”, um dos títulos mais fantásticos que eu já vi em toda a minha vida? Você já imaginou um autista no Além? Você sabe o que é isso? Tente falar isso em voz alta sem rir. Viu? É impossível.

O Nelson de cá que me desculpe, mas macho mesmo é o Nelson de lá. Aquilo é que é coragem. Tivesse o Nelson de cá nascido em Goiás e eu relativizaria tudo isso — porque é preciso fibra para dizer em alto e bom som, “Eu sou goiano!”. Mas o Nelson nasceu em outro lugar. (Descobrir que o Nelson não nasceu em Goiás me faz perder metade das possibilidades de sacanagem com ele. Por isso, exijo que a Assembléia Legislativa dê ao Nelson o título de cidadão goiano. É justo. Ele é um goiano melhor que o Iris Rezende e, além de tudo, melhoraria consideravelmente a reputação duvidosa dos goianos.)

O caso do Nelson é triste, mas não é o pior. Veja o Alex, por exemplo.

O Alex tem um bocado de alter egos. Não é para menos: com um nome desses, devem nascer clones às pencas mundo afora. Eu sempre achei que Alex Castro é nome de decorador de festa de subúrbio, mas a verdade é que esse é um típico nome latino. Bata no Google: sob o nome Alex Castro aparece de tudo: de DJ brasileiro a traficante colombiano.

Um dos tantos clones do Alex é um lutador cubano com cara de michê de atriz velhinha da Globo. Tem a mesma boca do Alex, então eu presumo que é filho do seu pai com uma jinetera cubana. Essas coisas acontecem nas melhores famílias. Uma noite, uma garrafa de Havana Club, o esquecimento conveniente e temerário da camisinha: e eis no mundo mais um Castro. Além disso, o pai do Alex é baiano — o que explica uma porção de coisas.

O Alex de lá é o Caim do Alex/Abel de cá. É mau enquanto Alex é doce. Dá a cara para bater enquanto o Alex não deve ter entrado em uma única briga na vida. É o protótipo do macho latino enquanto o Alex se envergonha de ser heterossexual. O Alex Castro cubano é o nosso Alex no espelho. E por saber disso, a partir de agora nada vai tirar de mim a certeza de que o Alex foi para Cuba e se envolveu em todas aquelas aventuras, ano passado, em busca do seu irmão, o elo familiar perdido. Há meses venho lutando contra a vontade de escrever uma novela narrando as aventuras do Alex em Cuba; talvez o surgimento do seu irmão esquecido seja um sinal me dizendo que eu devo finalmente escrever essa joça.

A desgraça do Bia é ainda maior. O seu nome é um erro de tabelião analfabeto, como tantos por aí — e o seu pai provavelmente estava bêbado como o pai do Alex, e esqueceu de corrigir o equívoco. O nome do resto da família é Biagioni, nome bem mais comum, e essa deveria ser a garantia de que ninguém ia se meter a besta em arranjar um clone onomástico. O Bia se julgava a salvo — bobo, não sabe ele que ninguém está a salvo neste mundo? Ninguém pode imaginar a satisfação com que o Bia fazia ego searchs no Google e só via referências ao seu próprio nome. O Bia era único.

Não mais. Porque contra todas as chances um católico também chamado Biajoni deu as caras na blogoseira. Seu blog se chama “O Brasil Avivado“. O Brasil eu não sei, mas todas as beatas na sacristia da Igreja de Nossa Senhora d’Ajuda têm um orgulho danado do blog do outro Biajoni. O sujeito é católico-mas-católico-mesmo, com retrato de Bento XVI na parede, provavelmente.

Isso é uma ironia impressionante. Quando bebe, o Bia fica provocando a ira de Deus, falando besteiras que fazem sua avó macumbeira se persignar freneticamente. Mas o Bia é sub-reptício, não vai para o confronto direto como, por exemplo, o Alex (que só deixa de ser ateu no dia que provarem que Deus é preto). Por isso, Deus resolveu fazer com ele a mesma sacanagem sutil que o ímpio do Bia faz com Ele: pôs no seu caminho um homônimo improvável. Tão improvável que o blog do sujetio está na Canção Nova. É o troco de um Deus debochado. O Bia entende tão pouco dessas coisas de Deus que chegou a achar que o Carlos Biajoni é evangélico — e lá está o Senhor em seu trono rindo da cara do Bia, dizendo “toma nas fuças, cachorro!”.

Era aqui que eu queria terminar este post, sacaneando o Nelson, o Alex e o Bia. Mas agora fico sabendo que apareceu mais um clone para mim. Eu já tinha que me ver às voltas com um homônimo aqui na minha terrinha de cajueiros e papagaios; agora me vejo às voltas com outro Rafael Galvão. Há uma inflação de rafaéis por aí, e essa inflação diminui o valor do meu nome e achata o meu capital onomástico. Longe vão os tempos em que eu encostava numa Maria qualquer e ela dizia: “Rafael? Mas que nome lindo!” Agora, se eu fosse fazer isso, a resposta seria diferente: “Ah, Rafael é o nome do cachorro de minha tia. Mas você não é Galvão, não, né?”

Piorando as coisas para mim, o sujeito é poeta. Dorme, o desgraçado, com a minha inimiga. Dá vontade de dizer para o Amaral: olha, poeta, um Rafael melhorado!, mas eu ainda continuo com a minha política de dar rasteiras nas musas, aquelas vadias, e andar para a poesia. É por isso que não posso então gostar do novo Rafael que me apareceu. Se fosse só blogueiro, tudo bem, que ser blogueiro é desgraça pouca. Mas o sujeito é poeta. Vai arruinar minha reputação de homem sem poesia e sem beleza interior; o poeta Rafael Galvão pode fazer com que pessoas que eu não conheço digam: “ah, o Rafael Galvão? Ele tem uns poemas excelentes.” (Ou, pior, podem dizer: “Rafael, aquele poeta de merda? O sujeito é ruim demais.” Alea jacta est.)

É por isso que eu fico com inveja do Idelber. Segundo o Bia, o Idelber tem um nome tão desgraçado que ninguém teve coragem de copiar. Tem um vidraceiro por aí chamado Idelber Paganoto, mas não é mesma coisa — Rafael Oliveira, Rafael da Silva não me incomodam, esse Idelber não deve incomodar o Avelar. O problema é nome e sobrenome juntos, de uma só vez, o pacote completo. Roubem o meu nome, eu não ligo — na verdade esse meu também foi roubado — mas não roubem o patronímico. Porque eu achava que era essa combinação que me fazia único; essa combinação e a doçura que mamãe me deu. Agora só me resta a doçura.

Olhando esses clones todos, eu fortaleço a minha teoria que um doppelgänger é uma sacanagem da natureza, destinada a a baixar nossa auto-estima. E sim, estou dizendo aqui, com todas as letras, que sou melhor que o meu homônimo. Acho isso com sinceridade, do fundo do coração e com pureza d’alma. Mas, honestamente, tenho que admitir que é exatamente o que eles podem também dizer, com a mesmíssima razão: que são melhores que eu. O clone do Bia, por exemplo, pode olhar para ele e dizer: “Eu com o mesmo sobrenome dessa titica, Senhor? Ah, as provações pelas quais Satanás nos faz passar…” O Rafael Galvão que é poeta pode estar pensando: “Puta que pariu, eu aqui dando duro para para achar o alexandrino perfeito e lá vem esse babaca botar o meu nome na lama.”

É a minha vingança e o meu consolo. Os clones vão ter que passar pelas mesmas agruras pelas quais nós passamos. O Carlos Biajoni deve ter a mesma vergonha queo Bia sente ao olhar para ele, ex-viciado em Viagra e fã do Lou Reed. O Nelson Moraes médium pode pensar “Porra, tinha que ser goiano? Só pode ser um obsessor! Valha-me, meu Bezerra de Menezes!” E eu, bem, eu me contento em saber que envergonho o outro Rafael Galvão com a minha mera existência.

Réquiem para mim mesmo

Sabe, olhando para trás vejo com uma certa surpresa que não tenho medo de muitas coisas, porque sei que sobrevivo a tudo, e as coisas sempre melhoram e sempre pioram e sempre melhoram de novo. No fundo, a vida me ensinou a ser imortal como todo adolescente, achando que coisas ruins, realmente ruins, jamais vão acontecer comigo.

Mas hoje eu fiquei com medo, um calafrio ruim percorreu minha espinha, uma ânsia de vômito apareceu assim, do nada. Percebi que coisas ruins podem acontecer, sim, a pessoas boas como eu. E é uma sensação angustiante, essa, uma certa impotência diante do imponderável, a sensação de ser tão menor que o mundo.

A filha do Biajoni está namorando um goiano.

Logo o Bia, pobre Bia, que sempre disse que “as goianas eram as mais poutas” e indiretamente causou uma cruzada dos michês goianos contra este blog. Isso é tão grave que não permite o Schadenfreude, clama somente pela solidariedade mais sincera, pela dor compartilhada e pelo medo, sempre o medo, um medo terrível que torna o provável quase certo.

Porque ao ver a tragédia que aconteceu com o Bia vi que ela pode acontecer a mim também, que minha filha pode namorar um goiano, um daqueles michês que vêm dizer desaforo neste blog. E nas reuniões de família vou ter que agüentar um sujeito que ouve Bruno e Marrone, Chitãozinho e Xororó, Chato e Enjoado, sei lá seus nomes. Um sujeito que fala de carros como quem fala dos peitos da Vanusa Spindler. Que usa calças apertadas com fivelas de vaquejada, e camisas abotoadas nos pulsos. Que não sabe quem é Humphrey Bogart, e nem quer saber. Os meus pequenos motivos de orgulho — como gravar um disco com músicas bobinhas dos Beatles como Ob-La-Di Ob-La-Da para minha filha e ver que ela prefere um blues pesado como I Want You — podem se esvanecer para sempre, porque o Bia acabou de me dizer que seus pesadelos se tornaram realidade, e sua filha namora um goiano para desgosto eterno de seu pobre pai, num gesto de revolta juvenil auto-destrutiva e aprofundamento do abismo entre gerações.

Se isso acontecer comigo vou ficar que nem o Bia, vou rasgar minha túnica e espalhar cinzas em minha cabeça sem sequer o consolo de escrever um salmo. Vou sair por aí pedindo para alguém por favor dar um tiro na minha cabeça: a dor não pode ser maior.

Tristes, os diálogos que se prenunciam:

“E aí, Rafael, como você está?”

“Meu genro é um goiano.”

E se tal desgraça pode acontecer, se esse cenário de apocalipse é possível — ai, quantas coisas mais podem acontecer agora? Minha mulher pode me dar um pé na bunda e eu posso namorar uma neopolitana: embora eu não tenha nada contra neopolitanas, ela infelizmente me traria um cunhado neopolitano. Agora, por causa da tragédia que aconteceu com o Bia, posso morrer espancado a pauladas por uma legião de moços de pinto pequeno — restando apenas o consolo de saber que eles vão ter que procurar cacetes de tamanho razoável por aí afora, mas consolo para morto é como pente para careca. Posso ser trucidado por uma legião de adolescentes de trinta anos em sua histeria — e que consolo resta aí, saber que para seu azar há menos um homem no mundo? Isso não é o bastante.

De repente o mundo ficou menos seguro para mim.

O medo é uma coisa ruim, que corrói a gente. E hoje eu não pretendo sair de casa, vou dormir com a cabeça debaixo do lençol, e vou tremer embaixo dele ante a mais fugidia sombra que aparecer, porque descobri que sou vulnerável e Deus nem sempre é justo, e coisas ruins podem acontecer comigo.

Post para uma amiga que não me entende

Oi, magrela.

No meio da campanha você leu este post e reclamou comigo que não ficava bem para o dotô redatô aqui escrever sobre putas quando tanta coisa estava em jogo. Aí esse conselho ficou passeando pelos becos da minha cabeça, até que agora consegui pensar numa resposta, que dou agora.

O post era inveja pura, não sei se você notou. Eu queria ser empresário do Paulinho, se ele aceitasse os conselhos que dei, porque fico maravilhado ao ver tanta gente ganhando dinheiro com música ruim. Sabe, tem umas coisas para as quais não tenho talento, mas tenho vocação; empresário de cantor brega era uma delas. Eu não sei cantar como o Paulinho, não sei compor nem fazer verso, toco uma guitarra ruim e um baixo pior ainda. Mas mesmo assim acho que ficaria bem no papel de empresário. E cantor brega sem isso, minha filha, está condenado ao oblívio. Ou, em palavras que seriam mais facilmente associadas a mim, está fodido.

Do jeito como eu vejo as coisas, o principal papel de empresário de cantor brega é arranjar umas putas bem voluptuosas, apetitosas, um monte de osas, com aqueles bundões enormes e cheios de celulite, para fazer no palco coreografia ruim de menina de 13 anos em festinha americana, e balançar a bunda para a platéia. Precisa de mais que isso, não. E tem que ser puta, mesmo. Moça séria que se respeita vai é terminar o segundo grau para ser comerciária. Moça direita não faz a platéia gritar em êxtase diante de uma rebolada mais bem dada ou uma baixaria mais bem feita.

E o único lugar que tenho para falar dessas minhas vocações desprovidas de talento é aqui neste bloguinho.

Me desculpe, mas sou sério o suficiente o tempo todo. Na verdade até que tenho feito um bom trabalho nesse troço de seriedade. Em nome dela, até escrevo direitinho quando a pressão é grande. Sabe, eu não tenho lá muitas ambições literárias. Eu gosto mesmo é de ver que o que escrevi funcionou e convenceu gente. É por isso que adoro os meus clichês: “Mas Fulano fez mais: construiu sei lá o quê, implantou aquilo e garantiu mais etcetera e tal.” Sabe Deus quantas vezes já escrevi isso na vida, e espero escrever muitas mais ainda. Porque se uma coisa é clichê é porque funciona, e o resto é bobagem.

Mas mesmo assim, mesmo ligando pouco para as musas feinhas, a cabeça da gente funciona de maneiras esquisitas, e de vez em quando sinto vontade de escrever umas coisas que não se encaixariam bem em uma locução em off. É por isso que tenho um blog, que se chama tão pura e simplesmente “Rafael Galvão”, e não “Rafael Galvão, Redator Publicitário À Disposição”: para escrever os merdas, bocetas e putaqueparius que eu quiser.

Não fosse por isso, por que caralhos eu manteria este blog depois de tantos anos? É difícil achar um tema sobre o qual eu não tenha escrito uma besteira qualquer. Acho que já escrevi mais sobre pinto pequeno que a Marta Suplicy — com uma leve diferença de enfoque, é claro. Não acho que tenha mais nada de relevante para dizer sobre qualquer coisa. E ainda que tivesse, foi escrevendo coisas relevantes que eu sempre ganhei a vida, ou achei que ganhava enquanto ela ria e se referia a mim à Providência como “aquele otário”. Eu já escrevo demais. Repetir tudo isso num blog deve ser um saco. Ter um blog, portanto, só serve se a gente puder falar as bobagens que quiser.

(A propósito, caralho é uma palavra que eu tento evitar, sempre. Acho que fica feio para mim, um rapaz de tão boa família, cuja ascendência mistura nobres franceses e escravos africanos, ser visto assim, cheio de caralhos na boca. Por isso que quando dou uma topada, ou esbarro nas coisas como vivo esbarrando, ou derrubo copos em mesa de bar, eu tento gritar: “Boceta!”. Sabe como é. Acho mais masculino.)

Por tudo isso é fundamental que aqui eu possa escrever puta, e esse é um direito do qual não posso abrir mão. Puta puta puta puta puta. Puta é um nome de que eu gosto, assim, de graça. Acho sonoro, rico, o U amacia a boca enquanto sai correndo mundo afora a 340 metros por segundo. É por isso que quando falo “puta que pariu” me demoro tanto no U: puuuuuuuta que pariu. Às vezes até dispenso o “que pariu”, e deixo que as pessoas presumam o que vem depois. O que importa é a puta, sempre.

(É diferente do porra, entende? No porra o que fica são os RR: “Porrrrrr (e então vem uma pausa imperceptível em que o R se revolve sobre si mesmo, e rasca a garganta como se estivesse se preparando para o apocalipse, mais ou menos como buquê de vinho na taça) — ra”. Mas deixe para lá, esquece isso. São as filigranas da boca suja, não é nada muito interessante.)

Obviamente, sei que talvez parecesse mais respeitável se eu escrevesse “prostituta”. Mas, com toda a sinceridade que posso encontrar neste pobre corpo combalido e preguiçoso, acho prostituta um nome horroroso, pernóstico se falado ou se escrito — a não ser quando alguém pronuncia “protistuta“, aí eu acho engraçado; fora isso prostituta é nome feio, uma combinação infeliz de sons. Fale alto agora, “prostituta”, e veja como soa feio. É antipático. E eu posso ser arrogante, metido e meio descompensado, mas antipático, nunca.

Mas puta, não. Puta é simples, leve, bonito. É também mais abrangente, porque prostituta é só aquela que dá por dinheiro, enquanto puta pode ser qualquer uma — “aquela puta”, por exemplo, pode muito bem ser a vagabunda que não deu para mim, ou a piranha que me deu um tranco no supermercado e não pediu desculpas. Puta, basicamente, é qualquer mulher de quem eu não goste. Devia estar no Houaiss: Puta (s.f): Qualquer mulher com cujos cornos Rafael não vá.” Puta é puro Bauhaus, é minimalista, e acima de tudo é um grande deus ex-machina — quando não resta mais nada a dizer, quando não há solução, é só soltar um “puta que pariu” incisivo que pelo menos uma parte da tensão se vai, você fica com a impressão de ter feito o que podia fazer.

É por isso que cortar a minha boca suja é uma injustiça comigo, porque é só aqui que eu deixo a coisa correr solta. Eu normalmente sou tão sério que não envergonho ninguém, só a mim mesmo, porque não falo o que penso e me conformo com um pensamento singelo: “Vou falar o que penso sobre isso no meu blog”, uma espécie de esprit d’escalier ainda mais vagabundo.

Então, se eu não posso escrever puta neste bloguinho de que eu gosto tanto e que minha mãe lê todo dia, o que vou fazer da vida? Me deixe cá com minhas putas e meus caralhos, é um precinho pequeno que minha credibilidade e respeitabilidade de homem sério têm que pagar para que eu possa dormir um pouquinho melhor à noite. A felicidade me custa tão pouco.